domingo, abril 30, 2006

RUPTURA EM 3 ACORDES - Nick Hornby

Associated Press

MOVIMENTO QUE NOS ANOS 70 DERRUBOU TABUS CULTURAIS, LINGÜÍSTICOS E DE COMPORTAMENTO SOBREVIVEU COMO IDÉIA LIBERTÁRIA, MAS SEUS ÍCONES FORAM ABSORVIDOS PELO ESTABLISHMENT

ENRICO FRANCESCHINI

Londres. "Minha loja se chama Championship Vynil. Vendo discos de música punk." E não só de punk: também de blues, soul, R&B, umas coisinhas das Antilhas, pop dos anos 60, "tudo para o exigente colecionador de discos", como diz a frase na vitrine. "Alta Fidelidade" (Rocco), o romance que deu fama a Nick Hornby, 48, começa praticamente assim, se excluirmos o prólogo com o ranking dos "fracassos" sentimentais do protagonista.
Uma história fundamentalmente autobiográfica, tanto do ponto de vista amoroso quanto, talvez mais ainda, no aspecto musical. Porque o escritor gostava muito de punk. E, em certo sentido, continua gostando, como nos diz Nick Hornby 30 anos depois.
Pergunta - Qual a sua lembrança do nascimento desse fenômeno musical, social, cultural, enfim, do surgimento de uma enésima "moda" inglesa que conquistaria o mundo?
Nick Hornby - O ano de 1976 foi quando comecei a cursar a universidade, e a Universidade de Cambridge era talvez o lugar menos apropriado para entrar em contato com o punk. Qual o motivo que tínhamos para estar com raiva, ali, em Cambridge? Por outro lado, eu estava com 19 anos de idade, não tinha nada para fazer durante o dia, e o outono de 1976 parecia tremendamente excitante.
Comprei todos os discos de punk que me caíram nas mãos, mas não é que houvesse muitos à venda nos primeiros dois ou três meses.
Na época deviam existir uns 40 ou 50 punks em toda a Inglaterra, mas era absolutamente claro que alguma coisa estava acontecendo, e você tinha que escolher de que lado ficar.
Era possível optar pela velha guarda, pelas bandas de rock grandes, chatas e repetitivas como os Rolling Stones, o Led Zeppelin ou Rod Stewart; ou então escolher esses caras que, para ser sincero, não sabiam tocar, mas tinham uma extraordinária energia e atitude.
Pelos meus adjetivos, você pode deduzir de que lado eu fiquei.

Pergunta - O que o punk tinha de tão extraordinário?
Hornby - O grande lance é que, nos dez anos precedentes, o rock tinha começado a ser visto seriamente, de uma maneira muito pomposa, e o punk destruía essa seriedade pomposa. Por exemplo, havia um terrível crítico musical no "Sunday Times" que adorava o Yes e o Pink Floyd, defendendo que aquilo é que era música autêntica, séria e complexa como a música erudita. E, a meu ver, pessoas como ele estavam acabando com o rock, porque queriam vendê-lo a meus pais e a todo tipo de gente que não seria capaz de entender ou apreciar aquilo.
A essa altura, de repente, surgem uns caras que só conhecem três acordes, sujeitos crus e simples ao extremo, e isso era para mim, e continua sendo, o ponto central. Eu não estava à procura de uma nova música erudita nem buscava complexidade ou seriedade. Eu queria alegria, velocidade e o volume no máximo. Com os olhos de hoje, vejo que a música punk me fez pensar muito, sobre um monte de coisas. Foi uma fantástica educação cultural.

Pergunta - Como era Londres naqueles anos? Você sente saudade de alguma coisa?
Hornby - A revista musical mais recente que tenho no banheiro, datada de fevereiro de 2006, está cheia de propagandas para shows de Sparks, Joan Baez, Judy Collins, Bon Jovi, Bonnie Raitt, Eagles e Santana, só para citar alguns. Todos eles poderiam ter tocado na Londres de 1975, e alguns deles já eram veteranos naquela época. Ao que parece, estamos de novo enterrados na areia.
A saudade que sinto daquela época está ligada à explosão fulminante de coisas novas -novos hábitos, novos escritores, novas idéias e, naturalmente, novos grupos musicais. Clash, Sex Pistols, Jam, Elvis Costello, Ian Dury, Buzzcocks e muitos outros se tornaram famosos em menos de um ano e mantiveram a fama pelos 30 anos seguintes.
Não é um exagero dizer que, naqueles dias, alguma coisa nova, boa, importante e divertida acontecia praticamente toda semana. E é disso que eu tenho saudades.

Pergunta - Em sua opinião, quais foram os melhores momentos da era punk?
Hornby - Em 1977, a colisão do punk com o Jubileu de Prata da rainha [Elizabeth 2ª] foi um momento bem interessante. Em junho, a BBC maquiou as vendas de "God Save the Queen" [Deus Proteja a Rainha], dos Sex Pistols, para que a música não ficasse no topo da parada durante as comemorações do Jubileu.
Outros grandes momentos: o primeiro álbum do Clash, se bem que meu álbum preferido do grupo seja "London Calling" [1979], lançado na verdade quando os dias gloriosos do punk já haviam passado. E os concertos "Rock against Racism" [Rock contra o Racismo]. Mas não se tratava de muitos momentos grandes e isolados. Tudo foi um único, longo e forte momento.

Pergunta - E os piores momentos?
Hornby - A morte de Sid [Vicious, baixista do Sex Pistols] e Nancy [Spungen, namorada de Vicious] foi um caso sórdido e deprimente. Vicious sempre parecera um tipo brincalhão, uma paródia irônica da percepção que o establishment tinha do punk -e de repente nos demos conta de que tudo aquilo era sério, tão estúpido e confuso quanto parecia. Outro momento realmente baixo foi o do flerte com as suásticas, muito embaraçoso para os que estavam sempre prontos a defender tudo o que fosse ligado ao punk.

Pergunta - Mas você ainda gosta da música punk?
Hornby - Danny Baker, que fundou o primeiro jornal punk e depois se tornou um célebre DJ, disse recentemente: "A era punk foi a fase mais bela de minha vida, e eu me sinto agradecido por cada momento que vivi naqueles dias. Mas hoje eu poderia muito bem passar sem nunca mais ouvir uma nota punk, pois já não me importa". Também penso mais ou menos assim.
Às vezes ouço "London Calling", mas não acredito que, no geral, a música punk tenha resistido à prova do tempo. Exceto a versão americana do punk, que ainda soa fantástica aos meus ouvidos -Patti Smith, Television, Ramones. Talvez porque estivesse enraizada em todo tipo de coisas; já na Inglaterra, o ponto fundamental do punk era o fato de que 1976 era o ano zero.

Pergunta - Mas ainda se vê o visual punk por aí. Em Londres, é so ir ao bairro de Camden para ter a impressão de que se está no fim dos anos 70.
Hornby - Mas isso é uma moda para turistas, nada mais. Um punhado de jovens europeus mascarados, com cabelos coloridos e argolinhas no nariz. Não significa nada.

Pergunta - Mas então o que significa o fenômeno punk 30 anos depois?
Hornby -Acho que ele mudou algumas coisas para sempre. Em primeiro lugar, a Inglaterra ficou menos afetada, menos sensível ao que foge à regra. Quando os Sex Pistols falaram obscenidades na TV em 1976, aquilo foi um escândalo nacional de primeira página, e é difícil imaginar algo parecido hoje.
Também acho que, desde então, continua viva a idéia de que qualquer um pode fundar uma banda ou um jornal ou publicar um livro ou gravar um álbum.
De certo modo, as novas tecnologias nos ajudaram a preservar o espírito punk, porque agora é muito mais fácil fazer qualquer coisa. Mas, naqueles anos, minha geração aprendeu com o punk uma coisa fundamental: que era possível fazer mais do que nunca imagináramos.

Pergunta - Umberto Eco diz no "Nome da Rosa" (Nova Fronteira) que, no final, quando uma coisa desaparece, dela só fica o nome. E de fato a palavra punk sobreviveu, ainda que o sentido varie no tempo (ao pé da letra, quer dizer "pessoa insignificante", mas o significado mais comum na gíria inglesa é o de "delinqüente"). O que você sente, hoje, quando a ouve?
Hornby - Concordo com que seja usada para qualquer coisa, menos para a música. Gostaria de ler um romance punk, assistir a um filme punk, ver algo punk no teatro. Mas música punk significa sempre aqueles mesmos três acordes, aquelas calças sadomasoquistas de couro preto, aquelas cusparadas. Deixa pra lá, tudo isso já terminou.
Este texto saiu no "La Repubblica".
Tradução de Maurício Santana Dias.

quinta-feira, abril 27, 2006

A paixão do negativo
Por Monique David-Ménard



Leia o prefácio do livro do professor e ensaísta Vladimir Safatle, lançado pela Editora Unesp

Construindo o espaço conceitual comum a dois pensamentos que se ignoraram durante meio século, o de Lacan e o de Adorno, Vladimir Safatle faz muito mais que uma aproximação interessante. Ele confronta duas filosofias apoiadas, cada uma, em uma prática: a cura psicanalítica para um, a criação artística para outro; assim como obriga o pensamento a se interrogar sobre o que um sistema, que tem sua densidade própria de teoria, deve à prática ou à experiência que ele privilegia.

A tese de Vladimir Safatle é que uma certa relação dos sujeitos desejantes à opacidade dos objetos que causam seus desejos -e que faz Lacan dizer que o objeto do desejo e da pulsão, longe de completar o sujeito, divide-o ao mesmo tempo que o constitui-, representa uma experiência do mesmo registro que a prática artística descrita por Adorno. Ela libera o sujeito moderno, preso em um racionalismo estreito, das ilusões de identidade que o sujeito da ciência não pode deixar de desenvolver desdobrando-se, tornando-se assim solidário de um mundo social alienante. Há uma resistência, que vem dos objetos, à tentativa de completude subjetiva, diz Safatle, é apenas esta resistência -resistência dos materiais de uma criação à toda perspectiva dominadora e reificada, resistência da alteridade do Outro na transferência-, impede que nossos desejos assimiladores se fechem em um narcisismo mortífero. No entanto, ao desenhar a cartografia deste encontro entre Adorno e Lacan, Vladimir Safatle não faz reducionismo algum. Ele freqüenta assiduamente o itinerário e a lógica própria a cada um destes pensamentos.

Lacan situa o sujeito do desejo como o que deve ser reconhecido, mas este reconhecimento não entregue por uma outra consciência, nenhuma perspectiva de transparência, de domínio através do saber ou de partilha de um universal qualifica o que diz respeito, em psicanálise lacaniana, ao reconhecimento e à relação ao Outro. É exatamente para evitar conotações muito fenomenológicas e sartreanas de um desejo ligado ao reconhecimento que Lacan teria se transformado em estruturalista. Se o reconhecimento obtido em uma análise diz respeito à alienação do sujeito à série de significantes que estrutura a sua história, o sujeito está sozinho diante da arquitetura estrutural de seu desejo. Arquitetura marcada pela incompletude. Se um significante é o que representa o sujeito para um outro significante, o sujeito é este vazio determinado pelo seu lugar na estrutura. Ele se vê pois afrontado pelo nada a respeito do qual ele é a efetuação. E só saímos das ilusões de completude através do que Lacan chama de desejo puro, única maneira para um sujeito de se des-identificar de uma cadeia constitutiva, mas alienante.

Ora, esta inflexão do pensamento lacaniano só será corrigida, justamente, pela insistência na importância do objeto: objeto do desejo, ainda ligado a uma configuração significante, mas também objeto da pulsão, ao qual o analista leva o analisando permitindo-o, desta forma, atravessar a idealização própria ao amor de transferência. O momento estruturalista era apenas um momento do qual nos liberamos através do reconhecimento da importância do objeto, causa do desejo, retirado do Outro e, no entanto, opaco e inassimilável.

O trajeto de Adorno é totalmente diferente. A experiência da criação artística é, para ele, o que nos libera das ilusões de um reconhecimento intersubjetivo a partir do qual Habermas e Honneth ainda acreditam poder derivar uma teoria da socialidade. Um artista se identifica com o que não pode ser ele no que ele cria. Ele chega mesmo a freqüentar a impessoalidade das coisas e a dureza do inanimado, pois apenas isto lhe permite o repouso, sem o recobrimento de um véu de harmonia, no estranhamento do mundo social da modernidade. Toda problemática do reconhecimento inter-humano que não problematiza a questão da opacidade das coisas, da natureza, dos materiais, só pode nos reconduzir a uma racionalidade instrumental que aliena o homem da sociedade contemporânea. Apenas a arte reconhece este “fetichismo” do objeto e o transforma em obra, isto ao invés de deixá-lo desdobrar-se na realidade econômica e social alienada.

Lacan luta contra o existencialismo e as filosofias da consciência. Adorno luta contra uma filosofia da comunicação, eco pálido da filosofia kantiana do universal como horizonte de reconhecimento.

O trabalho de Vladimir Safatle nos dá vontade de prosseguir na direção por ele desenhada. Se problemáticas tão diferentes podem finalmente abordar uma “mesma” questão é porque, tanto Lacan quanto Adorno, apesar de tudo, confrontam-se a Hegel.

Este último, com efeito, nunca reduziu o direito à forma linguageira do agir comunicacional. Todo reconhecimento passa não apenas pela mediação mas, devemos dizer lendo Safatle, pela opacidade dos objetos. Conserva-se normalmente, principalmente na tradição marxista da leitura de Hegel, a idéia de que a história é a transformação social da natureza. A natureza trabalhada seria pois o que deve ser “espiritualizado” para que o espírito advenha real. E a materialidade seria o simples instrumento da mediação.

Não poderíamos, no entanto, sustentar o contrário? Sustentar que há uma opacidade das coisas, em Hegel, que mediatiza a relação entre as consciências-de-si, isto de tal maneira que o reconhecimento nunca é transparente a si mesmo e que ele continua ligado ao que se efetua no mundo dos objetos?

Isto é longamente descrito, na “Fenomenologia do Espírito”, não apenas através da análise do trabalho sob condição de dominação, mas também na dialética da “Coisa mesma”: esta experiência através da qual uma obra só adquire realidade social e simbólica quando os outros alteram seu sentido e a sua realidade, de tal maneira que este que se acreditava autor não pode mais nela se reconhecer. E não seria este o cerne de toda problemática do direito abstrato nas “Lições sobre a filosofia do direito”? O direito que Hegel chama de abstrato regula, com efeito, os vínculos que se tecem entre os homens através da propriedade, ou seja, que se tecem na relação fetichista das vontades ao que é outro, ao que é inerte.

Sabemos que esta prova de uma negação redobrada, de uma negação não imediata é rapidamente invertida, em Hegel, na positividade de uma realidade social e estatal. Apenas a arte, tal é a contribuição de Adorno, sabe plantar morada na consciência do que não tem lugar em nossa sociedade, criando uma realidade para o que está em crise em nossa realidade. Mudando de terreno, podemos dizer, com Lacan, que apenas a arte sabe transformar um sintoma em “sinthome”, ou seja, em uma produção que respeita o que, na sexualidade, está na borda do impossível.

Como vemos, o pensamento de Vladimir Safatle é fecundo. Ele se abre para uma nova avaliação do lugar da psicanálise nas sociedades que absorveram sua pertinência, e ele fornece um futuro à tradição de filosofias saídas de Hegel.

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Lançamento O lançamento de "A paixão do negativo" ocorre no dia 4/5/2006, a partir das 18h, na Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, em São Paulo

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Monique David-Ménard
É psicanalista, filósofa, professora da Universidade de Paris VII e autora, entre outros, de "A loucura da razão pura: Kant, leitor de Swedenborg" (Editora 34), "Construções do universal" (Companhia de Freud), "A histeria entre Freud e Lacan" (Escuta) e "Deleuze et la psychanalyse" (PUF).

segunda-feira, abril 17, 2006

Não leve o rock tão a sério

Essa história começou na virada dos anos 70/80, com a sempre exagerada imprensa musical inglesa, e não demorou a se refletir no Brasil.
É o vício de levar o rock a sério. De apresentar gente como Ian Curtis (do Joy Division), ou Morrissey (dos Smiths) como salvadores e porta-vozes de uma geração. De chamar a vocalista Elizabeth Fraser (dos Cocteau Twins) de "a voz de Deus". De passar uma vida inteira discutindo mensagens subliminares em letras do Led Zeppelin. De venerar guitarristas, escarafunchar versos de meras canções populares em busca de um significado maior.
Minha geração de jornalistas musicais tem responsabilidade sobre isso. Com avidez pelo novo, mas muito menos bagagem intelectual e musical do que nossos equivalentes gringos, adotamos uma versão rasa do estilo da imprensa londrina.
A crítica ficou reduzida a um jogo de palavras. À busca de algo que soe bem e falseie erudição -retórica vazia. Desculpe a pieguice, mas sinto culpa ao ver algum jornalista mais jovem formular teorias sobre uma nova banda de moleques ingleses que nunca devem ter lido mais do que cinco livros e cuja coleção de discos resume-se aos três dos Strokes e algo dos Ramones.
Agora, por exemplo, há o deslumbramento com os Arctic Monkeys, da Inglaterra. "As letras citam Shakespeare", comenta-se no mundo todo. Ora, na Inglaterra, aprende-se Shakespeare desde o ensino fundamental... Inegável que as letras dos Arctic Monkeys ficam muito acima da médica roqueira, mas daí a elevá-las ao status de grande poesia...
Letra de música -rock, samba ou o que for- não é literatura. É claro que existe Morrissey, culto, com suas letras recheadas de citações literárias. É claro que existe Chico Buarque, com a sofisticação de suas métricas incomuns e aliterações. Mas são só compositores populares.
Não vieram salvar ninguém.

Manchester Rules.

Paixão de Cristo ganha versão 'britpop' em Manchester
Noel Gallagher do Oasis
Além de Wonderwall, a versão contou com Cast No Shadow do Oasis
Cerca de seis mil pessoas assistiram a uma versão musicada da história da crucificação de Cristo na cidade de Manchester que apresentou canções célebres do pop britânico.

Os presentes na Albert Square na noite de sexta-feira viram atores cantarem clássicos de bandas da cidade em momentos cruciais da história bíblica.

Na Última Ceia, por exemplo, o ator que viveu Jesus cantou Love Will Tear Us Apart (o Amor Vai nos Separar*), do Joy Division e o personagem de Judas (vivido pelo vocalista do James, Tim Booth) entoou Heaven Knows I´m Miserable Now (Só Deus Sabe Como Estou Mal*), dos Smiths.

Os dois personagens também cantaram Blue Monday (Segunda-Feira Melancólica*), do New Order.

Sinceridade

Outro dueto ocorreu entre Cristo e Pilatos com o sucesso Wonderwall (Muro das Maravilhas*) do Oasis.

Presentes elegeram como um dos momentos mais dramáticos a interpretação do personagem do apóstolo Pedro para I Am The Ressurection (Sou a Ressureição*) dos Stones Roses, no momento em que ele renega Jesus.

Denise Johnson, ocasional vocalista do Primal Screem, interpretou a Virgem Maria.

Os atores foram acompanhados por uma orquestra e os discípulos também acumularam a função de músicos de rua.

O cenário foi contemporâneo. A última ceia aconteceu em frente a uma perua que vendia o tradicional peixe frito com batatas fritas da Grã-Bretanha.

A releitura das últimas horas Jesus ganhou a aprovação do Bispo de Manchester, o reverendo Nigel McCulloch, que disse que a interpretação "tem uma sinceridade e uma habilidade para chocar e conectar que não são diferentes de como os acontecimentos da Sexta-Feira Santa devem ter ocorrido".

fazer algo
(ainda)
mesmo quando não há nada a fazer

aprender
(ainda)
a obediência que vem do sofrimento

andar
(ainda)
sem pernas, mas com o pensamento

adiar
(ainda)
a vida, para continuar a vivê-la,,,,,,,,,,,,

terça-feira, abril 04, 2006

O tempo que passa e o tempo que não passa



Na psicanálise, tempo e memória só podem ser considerados no plural
Silvia Leonor Alonso

É muito comum pensar no tempo como tempo seqüencial, como categoria ordenadora que organiza os acontecimentos vividos numa direção com passado, presente e futuro, um tempo irreversível, a flecha do tempo, um tempo que passa. Também estamos acostumados a pensar na memória como um arquivo que guarda um número significativo de lembranças, semelhante a um sótão que aloca uma quantidade de objetos de outros momentos da vida, que lá ficam quietos, guardados, disponíveis para o momento no qual precisamos deles e queremos reencontrá-los. No entanto, a forma na qual a psicanálise pensa o tempo e a memória está muito distante desta maneira de concebê-los. Na psicanálise, tanto o tempo quanto a memória só podem ser considerados no plural. Há temporalidades diferentes funcionando nas instâncias psíquicas e a memória não existe de forma simples: é múltipla, registrada em diferentes variedades de signos.

Há um tempo que passa, marcando com a sua passagem a caducidade dos objetos e a finitude da vida. A ele Freud se refere no seu curto e belo texto de 1915, “A transitoriedade”, no qual relata um encontro acontecido dois anos antes, em agosto de 1913, em Dolomitas, na Itália, num passeio pelo campina na companhia de um poeta. Ambos dialogam sobre o efeito subjetivo que a caducidade do belo produz. Enquanto para o poeta a alegria pela beleza da natureza se vê obscurecida pela transitoriedade do belo, para Freud, ao contrário, a duração absoluta não é condição do valor e da significação para a vida subjetiva. O desejo de eternidade se impõe ao poeta, que se revolta contra o luto, sendo a antecipação da dor da perda o que obscurece o gozo. Freud, que está escrevendo este texto sob a influência da Primeira Guerra Mundial, insiste na importância de fazer o luto dos perdidos renunciando a eles, e na necessidade de retirar a libido que se investiu nos objetos para ligá-la em substitutos. São os objetos que passam e, às vezes, agarrar-se a eles nos protege do reconhecimento da própria finitude. Porém, a guerra e a sua destruição exigem o luto e nos confrontam com a transitoriedade da vida, o que permite reconhecer a passagem do tempo.

No entanto, no entender de Freud, a nossa atitude perante a morte não implica essa certeza. Se de um lado aceitamos que a morte é inevitável, quando se trata da própria morte tentamos matá-la com o silêncio, desmenti-la, reduzi-la de necessidade à contingência. “No inconsciente, cada um de nós está convicto de sua imortalidade”, afirma Freud, em De guerra e morte. Temas de atualidade. Nada do pulsional solicita a crença da própria morte. Esta só se constrói secundariamente, a partir da morte dos próximos, da dor e da culpa pela mesma. Nem a própria morte nem a passagem do tempo têm registro no inconsciente, afirma Freud.

O tempo do inconsciente não é um tempo que passa, é um “outro tempo”, o tempo da “mistura dos tempos”, o tempo do “só depois”, o “tempo da ressignificação”.

A forma na qual se constroem as lembranças nos mostra isso, assim o explicita Freud em um texto de 1899: “As lembranças encobridoras”, valendo-se de um exemplo que, embora não revele no texto, é uma lembrança dele mesmo que surge durante umas férias de sua adolescência. Quando Freud tinha 16 anos viajara para Freiberg, sua cidade natal, sendo este o primeiro retorno desde a sua infância. Nesta ocasião, vive uma paixão por Gisela, a primogênita da família que o hospeda. Trata-se de um momento no qual, para Freud, os projetos de futuro estão em jogo: a sobrevivência econômica e o amor. Nesse momento, surge nele uma lembrança infantil: três crianças, entre elas ele mesmo, brincam e colhem flores numa campina verde e coberta de flores amarelas. Formam ramos de flores e os meninos arrancam o que está nas mãos da menina por ser o mais lindo. Ela corre, chorando, até uma camponesa que lhe oferece, para seu consolo, um pedaço de pão. Eles vão também atrás de um pedaço de pão que a camponesa lhes entrega. Nesta lembrança dois detalhes se destacam: a força do amarelo das flores e o sabor do pão, tão acentuados que beiram à alucinação.

O retorno à cidade natal mobilizara em Freud as vivências da infância, reativando marcas mnêmicas, marcas sensoriais de detalhes aparentemente insignificantes – porém fundamentais – que são carregadas pelas lembranças e às quais estas devem a sua vivacidade. Marcas da erotização e também dos lutos, da ausência de objetos. Essas marcas se oferecem como pontos de contato com as fantasias posteriores que sobre elas se projetam, criando pontos de condensação. Assim, duas fantasias que tocam temas fundamentais da vida do jovem Freud – a fantasia amorosa com a moça da família que o hospeda e a fantasia sobre sua sobrevivência econômica – projetam-se sobre a lembrança infantil que lhe faz de tela. O amarelo do vestido que a moça vestia no primeiro encontro faz um ponto de condensação com as flores da infância, intensificando o amarelo das flores da lembrança. Da mesma maneira, a fantasia sobre a sua sobrevivência econômica, através da frase “ganhar o pão”, confere uma intensidade maior ao sabor do pão na lembrança. Fantasias, lembranças e pensamentos de épocas posteriores se enlaçam simbolicamente com as da infância, intensificando, deformando ou transformando a lembrança infantil. Estas lembranças são as lembranças encobridoras.

Mas não é um tipo especial de lembrança que nos interessa e sim a dinâmica psíquica que nela se põe em jogo e que pode ser estendida à construção das fantasias e ao funcionamento geral da realidade psíquica. Neste funcionamento, a memória não é única nem fixa, ao contrario, as lembranças vão sendo construídas num processo de retranscrição. Freud inaugura uma teoria da memória ao afirmar que o material das marcas mnêmicas reordena-se de tempos em tempos, formando novos nexos. Na constituição da lembrança há, portanto, uma mistura de tempos. Os tempos não mantêm uma cronologia, passado, presente e futuro se misturam, se confundem. A lembrança infantil é como um quadro. O espaço do enquadramento é dado pelo próprio texto da lembrança, no qual se combinam traços. Traços que revelam as marcas de erotização e também os processos de luto vividos que deixaram as marcas do objeto ausente. Ou seja, há um passado que se cria e se recria em novas articulações.

Ao assinalar a existência deste outro tempo que é o tempo da ressignificação, Freud distingue o funcionamento do inconsciente do da consciência e rompe com a idéia de uma causalidade linear, de um passado que determina um presente, afastando-se de um determinismo mecanicista. Não procuramos no passado a causa do presente. O que passou se fez realidade psíquica.

A historia de um sujeito não é, portanto, uma linha reta, mas é traçada por pontos de condensação nos quais as tramas do vivido se entrecruzam e pulsam, forçando a presença do passado no atual, resistindo a qualquer linearidade cronológica e construindo uma realidade psíquica que não coincide totalmente com a realidade material.

O tempo do après-coup é um conceito fundamental no arcabouço teórico freudiano. Há acontecimentos da infância que se inscrevem difusamente, marcas psíquicas que ficam informes, indefinidas, à espera de um acontecimento e que só depois adquirem sentido. Temos então a idéia de um passado que não é fixo, mas que se ressignifica no presente.

Nesse “outro tempo” que não respeita a cronologia, nesse tempo do só depois, há movimento - que retranscreve, que articula novos nexos, rearticula as inscrições do vivido - construindo sonhos no dormir, fantasias e pensamentos na vigília. Há movimento das dimensões pulsionais e desejantes que, misturando os tempos, produz novos sentidos. O tempo não passa no sentido do tempo seqüencial, em uma direção irreversível, mas, na mistura dos tempos, as marcas mnêmicas nas mãos do “processo primário” condensam-se, deslocam-se e criam novos sentidos.

Mas há também, no psiquismo, uma outra relação entre passado e presente na qual o après-coup parece não operar mais, a imobilidade impera, assim como “eterno retorno do mesmo”, como mera insistência pulsional, fazendo do passado um destino. “Neurose de destino”, dirá Freud. No funcionamento da compulsão de repetição, o pulsional mais puro, sem possibilidade de representação, se encarna no atual, se apossa dele como sombra vampiresca e, no fora da linguagem, perde-se qualquer possibilidade de fazer o luto, de transformar a perda em ausência. Nessa presença da pulsão pura, a expressão “o tempo não passa” ganha toda a sua força.

A diferenciação dos funcionamentos temporais no psiquismo está presente ao longo da obra de Freud, sendo um dos fios importantes da metapsicologia freudiana. As concepções de memória e causalidade psíquica subvertem a psicologia da consciência e são parâmetros básicos que fundamentam a clínica psicanalítica.



Silvia Leonor Alonso é psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso de Psicanálise deste Instituto desde 1980. É co-organizadora e autora das coletâneas Freud:um ciclo de leituras (São Paulo: Escuta, 1997) e Figuras Clinicas do feminino no mal-estar contemporâneo (São Paulo:Escuta, 2002). Autora (em parceria) do livro Histeria (São Paulo: Casa do Psicólogo,2004).


Referências bibliográficas

FREUD, S. (1915). De guerra y muerte. Temas de actualidad. Obras Completas Buenos Aires: Amorrortu editores (vol.14).

FREUD, S. (1915). La transitoriedad. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu editores. (vol. 14).

FREUD, S. (1899). Los recuerdos encubridores. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu editores. (vol. 3).

PONTALIS, J. B. (2005). Este tiempo que no pasa. Topia editorial. Buenos Aires.

LAPLANCHE, J (1980). La sexualidad. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión.