Biografia do filósofo francês surpreende e revela os caminhos tortuosos e os becos sem saída das ciências
por Elias Thomé Saliba
O caderno secreto de Descartes, Amir D. Aczel, trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Jorge Zahar Editor, 232 págs., R$ 44
Se você ainda associa “cartesiano” a algo ou a alguém sistemático, regrado e racionalista, esqueça. E se nunca leu nada de tão detalhado sobre a vida de René Descartes porque acreditava que fosse uma daquelas biografias chatas, sonolentas e repetitivas, também pode esquecer. As últimas sondagens biográficas têm mostrado que nada está mais longe do incrível personagem que foi René Descartes. E nada a estranhar num filósofo que viveu intensamente a conturbada e dramática primeira metade do século XVII, cuja expressão estética mais saliente foi o caótico, multifacetado e indisciplinado Barroco.
Num livro fluente e claramente sintonizado com as mais recentes prospecções a respeito do filósofo, Amir D. Aczel mistura biografia, mistério e matemática para rever a contribuição e o destino das idéias de Descartes na história da nossa cultura. O mistério começa com as circunstâncias da sua morte, em Estocolmo, em 1650. A narrativa tradicional conta que – convidado pela caprichosa rainha Cristina, da Suécia, para ensinar-lhe filosofia – Descartes faleceu em virtude de uma pneumonia, tratada pela medicina da época com o (também letal) método da sangria. Conta-se ainda que, quando o filósofo chegou, Cristina já estava obcecada pela dança, obrigando o criador do racionalismo moderno a escrever, constrangido, um libreto para o balé real. É provável que a pneumonia tenha sido uma doença oportunista advinda do profundo desgosto do filósofo com os caprichos da rainha. Mas, numa corte luterana, cheia de inveja, intriga e ressentimentos religiosos contra o católico Descartes, Aczel ratifica o que as biografias mais recentes apontam: o filósofo francês teria sido envenenado pelo médico holandês Weulles.
Já a narrativa sobre o destino posterior do corpo e dos despojos pessoais do filósofo surpreende, e provavelmente forneceria um ótimo roteiro para um bom filme noir: seu corpo foi exumado 16 anos depois e estava sem a cabeça. Foi repatriado, sem a cabeça, e novamente enterrado na França apenas em 1819, bem depois da Revolução. Em 1821 seu cérebro apareceu num leilão na Suécia, sendo arrematado pelo químico Berzellius, o qual, décadas depois, doou a relíquia ao governo francês. Em vez de restituir a cabeça ao corpo – enterrado em Saint-Germain-des-Près –, o governo resolveu expor publicamente o crânio do filósofo no Museu do Homem, colocando-o numa daquelas ignominiosas séries cronológicas, que começam com o Cro-Magnon, passam pela peça cerebral de Descartes e terminam com uma videocâmara que projeta a cabeça do visitante numa tela, com a inscrição: “Você, Homo sapiens, idade: 0-120”! Singular destino de um crânio que acabou por alimentar uma das mais estúpidas e etnocêntricas séries cronológicas.
Entre os manuscritos, estava um caderno de pergaminho, contendo símbolos matemáticos enigmáticos e desenhos geométricos que não puderam ser identificados – até porque o próprio caderno desapareceria em 1691. A sorte é que, 20 anos antes, Leibniz, o filósofo alemão – cioso em preservar suas próprias descobertas aritméticas – conseguiu fazer uma cópia de grande parte do tal caderno. Após a morte de Leibniz, contudo, tal cópia ficou perdida em meio às centenas de manuscritos deixados pelo filósofo alemão. Foi só no século XX, mais precisamente em 1987, que Pierre Costabel, um matemático francês, redescobriu o material e decifrou o mistério dos manuscritos deixados por Descartes – mistério que é explicado por Aczel por meio de vários exemplos didáticos. Enfim, a fórmula criada por Descartes a partir de uma análise dos sólidos tridimensionais praticamente inaugurava a topologia, uma das áreas mais importantes da pesquisa matemática, que estuda as propriedades do espaço, estendendo suas aplicações aos mais diversos campos científicos e tecnológicos.
A fórmula contida nos cadernos de Descartes – até então atribuída ao matemático suíço Euler, em 1782 – faz com que cada vez mais ela seja conhecida hoje como a “fórmula de Euler-Descartes”. Por que Descartes escondeu seu próprio trabalho? Porque ele sabia que a conexão direta entre os sólidos regulares da antiga geometria grega e o modelo cosmológico kepleriano faria com que seu trabalho fosse visto como um apoio à proibida teoria copernicana. Em resumo, Descartes teve de esconder seu trabalho por medo da fogueira da Inquisição, ainda forte e crepitante no início do século XVII.
Aczel trilha com competência as mais recentes fronteiras historiográficas, explorando caminhos tortuosos, vielas escuras e alguns daqueles formidáveis becos sem saída da história das ciências. Mostrando aos leitores que a ciência, afinal, é feita por seres humanos muitas vezes talentosos, às vezes estabanados, ocasionalmente execráveis e, de vez em quando – muito de vez em quando – geniais.
segunda-feira, maio 07, 2007
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