domingo, novembro 25, 2007

Dogville

"Todos sabiam que menina estava no meio dos homens"

Moradores dizem que jovem aproveitava proximidade da cela com a rua para pedir ajuda

Segundo tia de um dos presos que foi transferido após caso ser descoberto, população tinha medo de denunciar a situação

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A BELÉM (PA)



Da rua em frente à delegacia de polícia de Abaetetuba, 130 km de Belém, tem-se visão ampla da carceragem, um galpão de 80 metros quadrados, três banheiros minúsculos e uma cela de segurança, separados da cidade livre apenas por um portão de grades enferrujadas.
Foi lá que, durante pelo menos 20 dias, uma menina de 15 anos, L., acusada de tentativa de furto, permaneceu encarcerada com mais de 30 homens, submetida a abusos sexuais, violência e estupros seguidos, que só tiveram fim no dia 15.
"Era um show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles homens todos, mas ninguém falava nada", disse uma mulher na delegacia, sexta-feira à noite.
"Antes de comer, os presos se serviam dela", lembra inflamada outra mulher, falando alto bem em frente à sala do delegado de plantão. Refere-se ao fato de os presos obrigarem a menina a praticar sexo como condição para lhe darem alimento.
"Ela gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar", afirma outra.
Nos bastidores do governo federal, em Brasília, existe a convicção de que o caso configura-se em uma das mais graves violações dos direitos humanos, uma ofensa ao Estatuto da Criança e do Adolescente, além de ferir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
O mais constrangedor, porém, é que todo esse horror foi patrocinado por instituição do Estado (a Polícia Civil) comandada pela petista Ana Júlia Carepa, governadora do Pará.
L. não poderia estar no sistema penitenciário, menos ainda sob acusação de tentativa de furto e, pior, presa entre homens. "Só se pode internar um adolescente por violência, grave ameaça ou prática reiterada de delito grave, o que não era o caso", diz a advogada Márcia Ustra Soares, 42, da subsecretaria de promoção dos direitos da Criança e do Adolescente da Presidência da República.
Os presos até que tentaram camuflar a presença daquele corpo estranho no meio de tantos homens. "Minha filha tinha cabelos lindos e encaracolados que iam até o meio das costas", diz a mãe biológica. "Cortaram o cabelo dela com um terçado [facão], para disfarçar que se tratava de uma menina. Cortaram é modo de dizer, escalpelaram a minha filha." Mas não funcionou.
L. continuou vestindo as roupas que usava ao ser presa -sainha curta e blusinha que deixava evidentes os seios adolescentes. Seu corpo mirrado, com menos de 1,40 m, tampouco permitia que ela fosse enfiada nas roupas de seus companheiros de cela.
A carceragem onde a menina ficou trancada agora está quase vazia -os homens presos que conviveram com ela foram todos removidos para penitenciárias próximas. Apenas um jovem de 19 anos, Landrisson André Santos Mauegi, acusado de tentativa de furto de uma bicicleta, estava detido no local na sexta-feira (ele foi parar lá depois da libertação de L.). A mãe de Landrisson, Maria Santos, 75, vai ao local todos os dias para levar sanduíches, cigarros e conforto ao seu caçula. Nem precisa passar pelo carcereiro. Basta esticar o braço.
Se era tão flagrante a identidade feminina e quase infantil de L., por que ninguém denunciou antes? "Medo de morrer. Aqui todo mundo tem medo", diz a tia de um dos presos transferidos. "Se a delegada põe uma menina na cela com os homens, e a juíza mantém ela lá, quem sou eu pra denunciar. Aliás, denunciar para quem?"
A delegada a que se refere a mulher é Flávia Verônica Pereira, responsável pela prisão em flagrante de L. A juíza é Clarice Maria de Andrade.
No dia 14, finalmente, o Conselho Tutelar de Abaetetuba recebeu uma denúncia. Anônima. A delegada foi afastada de suas funções no dia 20 e a juíza está sendo investigada pela Corregedoria de Justiça. A Folha tentou sem sucesso contatar ambas por telefone na sexta.

Amor moderno: meu orgulho atropelado pelo amor

De Margaret Meehan

Aos 23 anos, eu tinha me apaixonado por cigarros, suflê de chocolate, meu gato e (pela TV) James Franco em "Freaks and Geeks". Mas ainda não tinha experimentado um verdadeiro romance humano.

Depois de passar meus anos de colégio nas laterais do amor, eu naturalmente desprezava qualquer um que estivesse dentro do jogo. Então cheguei a Nova York dois anos atrás como uma anti-romântica hipócrita que zombava das idealistas de olhar brilhante, considerava o sexo um ato impensado entre dois imbecis e tinha pena das mulheres que perdiam sua identidade e sua independência ao mergulhar naquele vazio insignificante chamado "amor".

Eu, a anti-romântica, fiquei enlouquecida por esse ele, medíocre mas encantador

Se o Trem do Amor um dia parasse na minha estação, eu pretendia caçoar dos idiotas a bordo, acenando da minha plataforma de solteira auto-suficiente enquanto eles se afastariam e se tornariam um borrão de sentimentalismo no horizonte.

Mas então aconteceu. Numa noite de quinta-feira, enquanto eu entornava vodcas-sodas num bar do East Village, o Trem do Amor achou o caminho do meu coração de gárgula irritada. Freou junto à minha banqueta com um chiado, e ele desceu. Para minha surpresa, eu não apenas o recebi de braços abertos e com uma admiração apaixonada, como passei a sacrificar todo o meu orgulho, amor-próprio e moralidade durante nosso relacionamento de um ano. Tudo em nome do que eu mais detestava: amor!

Ele era absurdamente bonito, quase alienígena com seus lábios grossos, olhos azuis e pele morena. E como naquela virada improvável em todo filme de Molly Ringwald ele se aproximou de mim, uma antissocial. Fiquei cativada e caí presa daquela outra idéia repulsiva reservada aos idiotas: amor à primeira vista. Conversamos sobre Hemingway e Henry Miller, e então nos beijamos apaixonadamente. Depois que ele bateu com a garrafa de cerveja no balcão e declarou "Você vai ser minha namorada!", trocamos telefones.

Nos meses seguintes, sem a permissão de minha lógica ou o bom julgamento do meu intelecto, fiquei enlouquecida por esse músico medíocre mas encantador. Passávamos a noite toda acordados escutando Billie Holiday e Sam Cooke, andamos de mãos dadas a ponto de sentir cãibras pelo parque de Tompkins Square e admirávamos de modo nauseante cada movimento do outro.

Ele rabiscou poemas proclamando sua adoração por meu cabelo, e até por meus dentes, em vários objetos do meu quarto: o retrato de Patti Smith, o manual do meu DVD, uma garrafa de vinho vazia. Tentamos assistir "Antes do Amanhecer" várias vezes, mas sempre tínhamos de parar no meio do discurso meloso de Ethan Hawke, como se estivéssemos ansiosos demais para trocar nossas próprias histórias de traumas de infância, segredos de família e as dores de nossas existências.

Ele gravou canções sobre cavalos e poças de lama em um tom country choroso num gravador barato e me deu as fitas como gestos de amor. Eu as escutava sozinha, ignorando a culpa pelo meu passado de insensibilidade e arrulhando como uma pombinha idiota. Agora sentia-me próxima dos românticos franceses do final do século 19. Tinha passado de uma teimosa Holden Caulfield para uma inebriada Baudelaire.

Quando nos conhecemos, ele dormia num colchão de ar no chão da cozinha do apartamento de seu colega de banda, com a intenção de um dia alugar lugar um apartamento. Depois que ele dormiu em minha casa na primeira noite, mudou-se para meu apartamento sem perguntar, e sem eu realmente perceber. Logo senti falta da minha solidão, do conteúdo da minha geladeira e do dinheiro que eu periodicamente lhe emprestava (ele raramente tinha o suficiente para a passagem do metrô). Mas permiti que ele alimentasse seus vícios em minha casa e com meus recursos, desde que me deixasse alimentar o meu vício: ele.

Mas eu conservava sensatez suficiente para forçá-lo (mas não demais) a procurar um lugar para ele. E foi nessa época, em um passeio à tarde pela minha região do Brooklyn, que ele e eu passamos pelo dilapidado Greenpoint Hotel. Parecia bastante inócuo, não muito distante do rio East.

Mas então encontramos uma reportagem de um jornal online afirmando que era um dos estabelecimentos com quartos de solteiro mais usados por prostitutas e viciados em Nova York. E ele decidiu que por US$ 100 por semana o lugar era imbatível. Talvez ele acreditasse que poderia viver seu Kerouac reprimido —o artista torturado juntando-se a um bando de vagabundos depravados para alimentar a produtividade artística.

Minhas reservas aumentaram. Eu não conseguia mais suportar suas excentricidades com humor, dizendo a mim mesma "Ele é tão livre!" ou "É bacana como ele despreza as normas sociais". Mas ainda assim decidi reprimi-las, jogando meus padrões pela janela junto com meu cinismo. O amor provara que eu estava errada: era real e estava lá, suplicando-me para apaziguá-lo por mais deploráveis que fossem as circunstâncias.

Pouco depois de ele mudar para o Greenpoint Hotel, tivemos uma discussão acalorada diante de um bar em Manhattan onde eu tinha comemorado meu 24º aniversário. Para ele, a humilhação de não ter dinheiro suficiente para me pagar uma cerveja superou sua obrigação de ficar e cantar "Parabéns" para mim. Quando ele terminou a única cerveja que podia pagar, saí com ele, chateada porque ele ia embora, mas tentando não ser dramática.

Quando ele acendeu um cigarro, eu disse calmamente: "Estou decepcionada porque você vai embora". E ele respondeu: "Então agora você quer me fazer sentir culpado?" E lá se foi.

Na minha mente saqueada pelo amor, aquela criatura maravilhosa não era apenas meu namorado, mas a própria personificação do amor; a abstração antes intangível havia se tornado uma entidade viva e respirante na qual eu podia encostar meu rosto e envolver meus braços. E eu não ia deixá-lo fugir, ainda mais no meu aniversário.

Então fiz o que qualquer romântica autodestrutiva faria: corri atrás dele. Em plena Avenue A, de vestido de lantejoulas e sapato de salto, correndo como um animal faminto. E quando meus saltos alcançaram as botas marrons do Amor, eu pretendia subjugá-lo. Mas errei e em vez disso me tornei uma bola de raiva enlouquecida, chutando e gritando na noite enquanto ele se afastava cada vez mais —meu idiota, meu namorado, meu amor.

Depois da minha explosão ele parou de se comunicar comigo, um gesto que só aumentou minha paixão. Pela primeira vez na vida eu senti a dor esmagadora do coração; era como se meus órgãos internos estivessem inchados e pressionassem minhas costelas.

Minhas dores comuns pareciam totalmente originais para mim, quase revolucionárias. Passei uma semana inteira (ou foi o que pareceu) agachada nas esquinas das ruas com as palmas das mãos voltadas para o céu, pensando coisas novas como "Ninguém jamais entenderá" e "Esta é a primeira vez na história que uma dor semelhante é sentida por um ser humano".

Em tempos mais felizes, ele havia tocado para mim a canção "Damaged" do Primal Scream, dizendo: "Esta canção me faz amá-la tanto que eu quero morrer".

Então eu cantei a letra em sua caixa postal: "Doces dias de verão quando eu me sentia tão bem, só eu e você, garota, que tempo maravilhoso. Oh, sim, eu me sentia tão feliz, minha, minha, minha", com o "minha, minha, minha" final rouco, quase um grito silencioso, para fazê-lo ter ainda mais pena de mim. Então liguei mais 17 vezes, a cada vez adorando ouvir sua voz gravada.

Eu tinha uma última opção: ir até o Greenpoint Hotel. Depois daquela noite terrível de ligações incessantes, acordei às 8h banhada em suor, em um pânico amoroso. Saí do apartamento e fui na minha bicicleta até a porta do cortiço.

Ele tinha me mostrado seu minúsculo apartamento uma semana antes (sob a condição de que, para minha própria segurança, eu me escondesse embaixo de um capuz e ficasse ao lado dele), e me lembrei do andar e do número do quarto. Entrei hesitante nos corredores turquesa malcheirosos e percorri um labirinto de corredores, passando por homens mal-encarados e rapazes bebendo cerveja.

Prendi a respiração para evitar o fedor de água sanitária e urina enquanto subia os três andares de escadas cheias de papéis de comida, latas de cerveja, sacos de droga e gatos sem dono. Cheguei até a porta dele, na qual havia a seguinte mensagem, escrita em marcador preto: "Por favor não bata forte, sou cardíaco" (palavras aparentemente escritas pelo último inquilino, um velho que realmente morreu na mesma cama em que meu namorado dormia hoje). Sim, eu estava prestes a suplicar o amor de um homem que dormia na cama de um morto em um quarto de 2,5 x 2,5 metros, de aluguel semanal.

Levantei o punho trêmulo até a porta e bati suavemente três vezes, depois mais alto e mais forte, até que estava esmurrando como uma louca. Finalmente desisti e despenquei junto à porta em um monte de soluços.

Então lá estava eu, uma garota com educação universitária e um currículo brilhante, uma família amorosa e todas as outras características incômodas de uma vida maravilhosa, tremendo no chão manchado de urina de um cortiço. E eu fazia tamanha cena que o inquilino do lado, um homem enorme de shorts rasgados, saiu de seu covil, apontou um dedo acusador para mim e gritou: "Garota, você precisa arrumar a sua cabeça".

Eu lentamente me recompus e me arrastei para fora do prédio.

E então meu namorado voltou para mim! Por um mês. E aí anunciou que ia me deixar por outra mulher.

Eu me agarrei a ele e solucei, ensopando sua camiseta branca com minhas lágrimas, batendo meus punhos em seu peito, suplicando a ele e aos deuses que nos permitissem ficar juntos. Mas de repente parei de chorar e gritei, quase confusa: "Espere. Quem quer realmente namorar você?"

Meu momento de clareza finalmente havia chegado. O que eu estava fazendo?

Alguém poderia pensar que essa experiência me deixaria amarga para o amor e traria de volta, como vingança, minha hostilidade ao romance. Mas não. Pelo contrário, e mais uma vez negando a razão, ainda o quero muito. Ou, mais precisamente, quero aquela sensação que tudo consome.

Sim, sou eu. Antes totalmente cínica em relação ao amor, hoje sou prisioneira dele, ou melhor, uma passageira, tendo encontrado um lugar muito confortável no Trem do Amor, lotado com outros tolos patéticos e soluçantes e prestes a partir para destinos condenados, perturbados e talvez até insalubres —onde o coração manda e a mente obedece.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Visite o site do The New York Times

sexta-feira, novembro 23, 2007

Satisfação pessoal depende de comparação com outros, mostra experimento.

Mapeamento cerebral aponta área ligada a competitividade e inveja

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL


Um experimento demonstrou na prática o velho ditado de que "a grama é sempre mais verde no quintal do vizinho". Isto é, não é tanto o valor absoluto de uma recompensa que deixa alguém feliz, pois isso depende também da comparação com a situação de um rival.
"As pessoas não se importam apenas com o que elas próprias ganham; parece ser igualmente importante o que elas ganham relativamente a uma outra pessoa", declarou o economista Armin Falk, da Universidade de Bonn, Alemanha. O estudo sai hoje na revista "Science".
O experimento envolveu 38 homens, avaliados aos pares em aparelhos que mediam a atividade do cérebro. Os voluntários tinham de responder a perguntas simples -como estimar o número de pontos em uma tela- e eram premiados pelas respostas certas, com uma recompensa monetária que ia de 30 a 120. O valor não tinha relação com o desempenho, e um voluntário poderia receber, ao acaso, mais ou menos dinheiro que seu rival.
Uma região do cérebro vinculada ao registro de recompensas, o corpo estriado ventral, ficava mais ativa quando um participante recebia mais dinheiro que seu companheiro. "Mostramos pela primeira vez que existe uma resposta cerebral imediata, fisiológica, em caso de comparação", diz Falk.
A economia tradicional dá ênfase ao valor absoluto das recompensas, apesar de estudos de comportamento mostrarem como as comparações sociais influenciam o bem-estar e a tomada de decisões. O comportamento competitivo ficou claro quando um participante errava a resposta e não ganhava nada. A ativação chegava ao máximo no rival que deu a resposta certa e recebeu dinheiro. Quando os dois davam a resposta certa, mas um ganhava mais, a área de recompensa do que recebeu menos ficava menos ativa.

terça-feira, novembro 20, 2007

Reino Unido quer organizar o terceiro Dia Sem Música

De Michael White
Em Londres


A vida sem música seria um erro, afirmou Nietzsche sem rodeios. Mas esse é um erro que muita gente no Reino Unido está preparada para cometer, pelo menos durante 24 horas na próxima quarta-feira, quando será pedido à nação que faça o seu terceiro e anual Dia Sem Música.

Segundo o website oficial (www.nomusicday.com), "iPods serão deixados em casa", "bandas de rock não tocarão", "garotos de coral calarão a boca", "os jingles não soarão". Tudo isso, é claro, não passa de um desejo impossível, já que o "No Music Day" não tem nenhum valor legal. É simplesmente a idéia de um homem: o escritor rebelde, pensador, artista conceitual e ex-astro de rock Bill Drummond, cuja história como um dos membros da banda KLF, do início da década de 1990, confere a ele uma certa autoridade quando a questão é a auto-negação artística.

No auge do seu considerável sucesso, a KLF deixou abruptamente de tocar, apagou o seu catálogo inteiro e —sem nenhuma boa razão da qual Drummond atualmente se recorde— queimou publicamente o último milhão de libras esterlinas (o equivalente, em valores atuais, a mais de US$ 2 milhões ou quase R$ 3,5 milhões) de seus rendimentos. Desde então Drummond dirigiu os seus interesses para as atividades avant-garde e passou a pensar sobre a vida sem a fama. Mas, de maneira mais ampla, ele tem pensado na vida sem música, estimulado, segundo o artista, "pela sensação de que a música não estava tendo o efeito que eu desejava que ela tivesse sobre mim".

"Lembro-me de ir até lojas de discos e concluir que havia música demais. Daí, passei a pensar em como seria ficar sem música por um ano, um mês, uma semana, e nada disso pareceu prático. Assim, um dia decidi fazer algo. E foi dessa forma que a coisa começou: uma iniciativa inteiramente pessoal, cujo objetivo nunca foi ser uma cruzada, mas que, não obstante, teria caráter público".

Ele escolheu o 21 de novembro, porque 22 de novembro é o dia de Santa Cecília, a padroeira da música, e fazer uma manifestação na véspera dessa data seria algo coerente com tradições como a de comemorar o Mardi Gras, o equivalente ao Carnaval de lá, antes do início da Quaresma.

A coisa toda pode soar como uma das idéias conceituais de Drummond, ou, pior ainda, como um ato de exibicionismo. Mas nos três anos anteriores o No Music Day já trouxe conseqüências práticas. Neste ano, por exemplo, não haverá música na Rádio BBC Escócia, e milhares de pessoas que visitaram o website do No Music Day prometeram fazer silêncio.

Nem todos os comentários no website são de aprovação. Mas a maioria das pessoas que o visitam prometem "cortar as cordas das guitarras dos músicos de rua", ou, mais pacificamente, "fazer as minhas atividades no esplendor do silêncio".

"O que temos não é mais música", argumenta uma das mensagens similares. "Trata-se de ruído de fundo. É uma jogada para atingir um grupo demográfico, um público alvo".

E aqui temos a questão resumida. As pessoas apreciam a idéia do dia sem música porque acreditam que a comercialização da música atingiu um ponto de saturação: música demais, à qual se tem acesso de maneira muito fácil.

A argumentação não é nova. E historicamente ela foi feita por músicos famosos. Quando Benjamin Britten recebeu o primeiro Prêmio Aspen para o avanço da cultura em 1964, ele dedicou uma parte do seu discurso de aceitação do prêmio à condenação da música gravada e instantaneamente disponível. "O auto-falante é o principal inimigo da música" disse ele, tomando o cuidado de acrescentar que reconhecia que esse equipamento é importante "como um meio de educação e estudo".

Não dá para saber como —se seguíssemos os conselhos de Britten— teríamos lidado com a era dos aparelhos estereofônicos pessoais, iPods e similares. E existe um elemento de paradoxo nas palavras de Britten, vindas de um homem que passou grande parte da sua vida em estúdios de gravação, promovendo a disseminação dos seus próprios trabalhos para tirar vantagem disso. E, além do mais, o mundo claramente beneficiou-se do fato de contar com o acesso fácil aos trabalhos não só de Britten, mas também de Bach, Mozart e Beethoven.

Mas a reclamação por trás do No Music Day também leva em conta as músicas que não escolhemos: a música —ou, para usar um termo mais apropriado, Muzak (música de fundo)— que agride os nossos ouvidos desprotegidos a partir de auto-falantes e aparelhos de televisão instalados em restaurantes, bares, lojas, saguões de hotel e no local de trabalho. Os músicos profissionais tendem a desprezar a Muzak, e no ano passado juntou-se à legião desses profissionais insatisfeitos com o fenômeno o pianista e maestro Daniel Barenboim, que abordou a questão, enfurecido, nas suas Palestras Reith, divulgadas internacionalmente.

A resposta ao ataque feito por Barenboim foi tamanha que a BBC decidiu promover uma pesquisa a respeito. A rádio solicitou aos ouvintes que estes mantivessem um diário das músicas que surgiam, por escolha deles ou não, em suas vidas em um período de 24 horas, incluindo desde o canto dos pássaros até as baladas comerciais de rádio e as melodias eletrônicas dos telefones celulares.

O resultado revelou uma média de duas horas e 46 minutos de música escolhida pelo ouvinte, contra uma hora e 16 minutos de música não solicitada. E as reações às músicas não solicitadas foram 38% negativas, 28% positivas e 34% neutras: uma conclusão ambígua que potencialmente apoiou tanto o lobby favorável quanto o contrário à Muzak. Nem todos disseram detestar a música de elevador— a maioria das pessoa não se opôs ativamente a ela—, mas o maior grupo distinto mostrou-se hostil a esse tipo de música.

Alguns entrevistados disseram que apreciam a descoberta acidental de novas músicas que surgem em um rádio permanentemente ligado. Muitos afirmaram gostar dos músicos de rua, mas condenaram o hábito de cantar no trabalho. E os psicólogos não perderam tempo em enfatizar a relação comprovada entre a audição de música e a elevação do estado de espírito.

Bastante contundente foi a posição de um grupo chamado Pipedown International, que há 15 anos faz campanha no Reino Unido (e que agora conta com a companhia de um ramo norte-americano) contra a Muzak em todas as suas formas. O grupo argumenta que, como a apreciação musical é uma questão de gosto, a imposição tende a irritar um número de pessoas pelo menos tão grande quanto o das que se sentem positivamente estimuladas.

"Pensem no sofrimento dos funcionários de lojas que são obrigados a ouvir a mesma fita sem parar, especialmente nas temporadas de festas", diz Nigel Rodgers, o fundador do Pipedown. "Segundo o Real Instituto Nacional para Deficientes Auditivos, um funcionário médio de uma loja ouve "Jingle Bells' 300 vezes nos dias que antecedem o Natal —o que é suficiente para enlouquecer uma pessoa. E o mesmo ocorre em restaurantes e hotéis: é ruim para os fregueses, e ainda pior para os funcionários".

Um grupo pequeno, mas poderoso, o Pipedown inclui entre os seus membros o maestro Simon Rattle e o violoncelista Julian Lloyd Webber, que é bem direto em relação àquilo que ele chama de "o câncer disseminado da música de fundo por toda parte: uma poluição auditiva tão nefasta quanto a fumaça de cigarros".

No nível individual, os membros do Pipedown levam consigo cartões impressos que são fornecidos a gerentes de lojas e restaurantes. Os cartões são classificados em ordem de aprovação desde o "Obrigado por não colocar música" até o "A sua música fez com que você perdesse este freguês". De forma mais ampla, o grupo existe para fazer lobby junto ao parlamento britânico (onde o Pipedown está atualmente apoiando um projeto de lei para banir a Muzak dos hospitais) e para apresentar a sua posição aos diretores das grandes lojas.

"Conseguimos persuadir duas grandes redes de supermercados, a Tesco e a Sainsbury, a não reproduzir música nos seus corredores" diz Rodgers. "E suponho que a nossa maior vitória até o momento tenha sido a de persuadir o Aeroporto Gatwick a não desistir depois que uma pesquisa revelou que 43% dos passageiros não gostam desse tipo de música, 34% gostam e o restante é neutro. Mas perdemos outras batalhas, incluindo a da Marks & Spencer's, de forma que há um longo caminho a trilhar. E é por isso que apoiamos o No Music Day, embora, para nós, um dia por ano não seja suficiente".

Mas este único dia será significante neste ano na Escócia, com a decisão da Rádio BBC de não transmitir música. O produtor responsável, David McGuinness, diz que isso significa que "não haverá músicas, bandas ou orquestras".

"Mas quer dizer também que não haverá músicas para a introdução de noticiários, o que fará uma diferença qualitativa no que fiz respeito aos aparelhos de som que compõem uma estação de rádio", diz ele. "Estamos também fechando por um dia o website de música da BBC Escócia, que é um grande portal de música. E, para levar a mensagem às ruas, estamos despachando um esquadrão do No Music Day para simular a prisão de cidadãos que estiverem usando fones de ouvido".

Ou seja, jogada exibicionista.

"Não, não é nada disso", retruca McGuinness. "É claro que há um elemento de diversão, ou eu espero que haja. Mas também existe uma declaração muito séria embutida nessa ação. Queremos que as pessoas entendam como a música tornou-se onipresente, como ela invade as nossas vidas de maneira que não percebemos, e desejamos desafiá-las a parar e pensar no que isso significa, a ponderar como poderiam ser mais informadas nas suas escolhas. Essas são ações importantes. Não são de forma alguma brincadeiras teatrais".

Enquanto isso, Bill Drummond tem ambições para o futuro do No Music Day. "No ano que vem quero organizar uma busca nacional por filmes sem trilha sonora", diz ele. "E no ano seguinte espero fazer com que o iTunes deixe de funcionar por 24 horas. Isso será um desafio. Mas estou cheio de disposição".