domingo, dezembro 14, 2008

Ruído industrial

MATRIZ DA MÚSICA ELETRÔNICA, TECNO TRANSPÔS PARA AS PISTAS A CULTURA DAS LINHAS DE MONTAGEM QUE MARCARAM A HISTÓRIA DA CIDADE

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA


O tecno foi inventado como veículo pós-humano, máquina de transporte para a distopia.
E Detroit foi a sua linha de montagem.
Matriz dos infinitos subgêneros da música eletrônica dirigida a pistas de dança, a emergência dessa mistura de funk minimalista aos ritmos maquínicos do Kraftwerk na Detroit do início dos anos 80 é explicada por um de seus criadores como efeito da privação sensorial e cultural da cidade.
"É o vazio na cidade que preenche a música. É como um cego -cheira, toca e sente coisas da maneira que quem enxerga nunca faz. Acredito que muitos de nós em Detroit estávamos cegados pelo que havia ao nosso redor. Foi como se pegássemos os outros sentidos e os tornássemos mais fortes.
Foi assim que nossa música se desenvolveu", define Derrick May ao jornalista britânico Simon Reynolds no livro "Energy Flash" [Lampejo de Energia, ed. Picador], em que Reynolds conta sobre os desdobramentos da dance music.
Para o pesquisador musical Mike Rubin, nascido em Detroit, "o jogo de forças na origem do tecno reflete o desacordo na cidade na qual ele emergiu. Detroit ainda se recuperava dos efeitos dos confrontos de julho de 1967, quando uma invasão policial de um bar desencadeou cinco dias de violência inter-racial -o mais sério confronto civil nos EUA antes dos ocorridos em Los Angeles em 1992".
"A fuga dos brancos para os subúrbios já estava acontecendo, mas os distúrbios aceleraram o abandono progressivo da cidade.
Nos primeiros 20 anos após aqueles confrontos, Detroit perdeu cerca de um terço de sua população. Uma cidade construída para abrigar 2 milhões de pessoas ficou reduzida a menos da metade disso."
"Em apenas uma geração, a população de Detroit mudou de 70% de brancos para quase 80% de negros. Depois, devastada pela indústria automobilística em declínio e com taxas de desemprego rumo à Lua, mais da metade do conjunto industrial e comercial havia desaparecido por volta de 1987."
"O termo correto para descrever isso seria "desindustrialização", mas "cidade fantasma" é mais adequado. Em vez de terra sem lei, como a cidade era definida pela mídia nacional, o sentimento predominante em Detroit era o de um vazio assustador. Ironicamente, foi o mesmo processo de automação, informatização, robotização e avanços tecnológicos na produção que causaram a perda dos cargos executivos e abriram o caminho para a entrada em cena do tecno."
Outro nativo de Detroit, o jornalista Dan Sicko, autor de "Techno Rebels" [Rebeldes do Tecno, ed. Billboard], colunista da "XLR8R" e colaborador do blog http://moodmat.com, aponta outras nuanças.
"A partir de uma perspectiva social, o tecno é um fenômeno específico. Ele é claramente resultado das classes médio-altas e médias afro-americanas e não é um produto das ruas ou de nada que se aproxime de algo assim tão poético."
"Por outro lado, dadas as condições econômicas de Detroit nos anos 70, é certo que foi ali que ele encontrou seu lugar. As condições econômicas da "cidade que encolhe" cada vez mais acarretaram a desativação de muitos espaços sociais ocupados pelos adolescentes naquele momento."
"Boa parte da cultura tecno nasceu em festas promovidas por aqueles garotos para suas turmas."
"O último e talvez mais importante fator, eu diria, foi a "abertura" dos programas de rádio do final dos anos 70 até o fim dos 80. O público de todas as idades e todos os grupos étnicos de Detroit estava exposto a uma variedade musical muito mais ampla do que hoje."
Em relação aos outros antecedentes musicais da cidade, como a Motown e o protopunk dos Stooges e do MC5, Reynolds aponta a ligação deles com o tecno "por meio da aura maquínica da música, que tem a ver com a proximidade da indústria automobilística e com o modelo fordista de produção, assim como a influência do automóvel e do próprio ato de dirigir no ritmo musical".
Sicko prefere enxergar na marginalidade cultural da cidade a raiz dessa exuberância.
"Detroit não está em nenhuma das costas. A indústria do entretenimento é completamente controlada a partir de Nova York e Los Angeles. Por isso, cidades como Detroit permitem crescer e amadurecer seus talentos fora dos holofotes, e o produto final se torna bem mais interessante, original e nuançado", defende.

Nenhum comentário: