The New York Times
Noam Chomsky
Um debate está em andamento na ONU em torno de uma política que pode parecer sem controvérsia: uma estrutura legal internacional para prevenir crimes graves contra a humanidade.
Uma estrutura se chama "responsibility to protect" (responsabilidade de proteger), ou R2P, no jargão da ONU. Uma versão restrita da R2P, adotada pela Cúpula Mundial das Nações Unidas em 2005, reafirmou direitos e responsabilidades aceitos pelos países membros no passado e às vezes implantados por eles.
Entretanto, as discussões sobre a R2P ou sua prima, "intervenção humanitária", são regularmente perturbadas pelo chacoalhar de um esqueleto no armário: a história, até o presente.
Por toda a história, alguns poucos princípios de assuntos internacionais se aplicam de modo geral. Um é a máxima de Tucídides de que os fortes fazem o que desejam enquanto os fracos sofrem como devem.
Outro princípio é o de que virtualmente todo o uso da força em assuntos internacionais é acompanhado de retórica elevada sobre a responsabilidade solene de proteger as populações que estão sofrendo, assim como de justificativas factuais para isso.
Compreensivelmente, os poderosos preferem esquecer a história e olhar para frente. Para os fracos, não é uma escolha sábia.
O esqueleto no armário fez uma aparição na primeira disputa considerada pela Corte Internacional de Justiça, há 60 anos, o caso do Canal de Corfu, um incidente envolvendo o Reino Unido e a Albânia.
A corte determinou que "só pode considerar o suposto direito de intervenção como a manifestação de uma política de força, como as que, no passado, deram origem aos abusos mais sérios e, dessa forma, não pode, quaisquer que sejam os defeitos na organização internacional, encontrar um lugar na lei internacional (...); dada a natureza das coisas, (a intervenção) seria reservada aos Estados mais poderosos e poderia facilmente levar a uma perversão da administração da própria justiça".
O mesmo ponto de vista informou o primeiro encontro da Cúpula do Sul, envolvendo 133 países em 2000. Sua declaração, certamente tendo em mente o bombardeio contra a Sérvia, rejeitou o "chamado 'direito' de intervenção humanitária, que não tem base legal na Carta das Nações Unidas ou nos princípios legais da lei internacional".
Os termos reafirmam a Declaração das Nações Unidas sobre Relações Amistosas (1970). Eles foram repetidos várias vezes desde então, entre outros pelo Encontro Ministerial do Movimento de Países Não-alinhados, na Malásia em 2006, novamente representando as vítimas tradicionais na Ásia, África, América Latina e mundo árabe.
A mesma conclusão foi apresentada em 2004 pelo Painel de Alto Nível das Nações Unidas sobre Ameaças, Desafios e Mudanças. O painel concluiu que o Artigo 51 da Carta da ONU "não precisa de adendo e nem restrição ao seu campo bem-entendido".
O painel acrescentou: "Para aqueles impacientes com essa resposta, esta deve ser a de que, em um mundo cheio de ameaças potenciais percebidas, o risco para a ordem global, assim como para a norma de não-intervenção na qual continua baseada, é simplesmente grande demais para ser aceita a legalidade de uma ação preventiva unilateral, diferente de uma ação endossada coletivamente. Permitir que um aja dessa forma significa permitir todos" -o que é, claramente, impensável.
A mesma posição básica foi adotada pela Cúpula Mundial das Nações Unidas em 2005. A Cúpula também declarou a disposição de "adotar uma ação coletiva (...) por intermédio do Conselho de Segurança, de acordo com a Carta, (...) caso meios pacíficos sejam inadequados e as autoridades nacionais estejam evidentemente fracassando em proteger suas populações" de crimes sérios.
Quanto muito, a frase reforça os termos do Artigo 42, que autoriza o Conselho de Segurança a recorrer à força. E a frase mantém o esqueleto no armário -se pudermos considerar o Conselho de Segurança como um árbitro neutro, não sujeito à máxima de Tucídides.
Essa suposição, entretanto, não é defensável.
O Conselho é controlado pelos seus cinco membros permanentes e eles não são iguais em autoridade operacional. Uma indicação é o histórico de vetos -a forma mais extrema de violação de uma Resolução do Conselho de Segurança.
Durante o último quarto de século, China e França vetaram juntas 7 resoluções; a Rússia, 6; o Reino Unido,10; e os Estados Unidos, 45, incluindo até mesmo resoluções exigindo que os Estados cumprissem a lei internacional.
Uma forma de atenuar este defeito no consenso da Cúpula Mundial seria eliminar o veto, de acordo com a vontade da maioria da população americana. Mas essas heresias são impensáveis, assim como aplicar a R2P no momento àqueles que necessitam desesperadamente de proteção, mas não estão na lista de interesse dos poderosos.
Ocorreram alguns desvios da restrição do Canal de Corfu e suas descendentes. A Lei de Constituição da União Africana (UA) afirma "o direito da União de intervir em um país membro... em caso de circunstâncias graves". Isso difere da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), que proíbe a intervenção, "por quaisquer motivos, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro Estado".
O motivo para a diferença é claro. A Carta da OEA busca impedir a intervenção por parte dos Estados Unidos, mas após o desaparecimento dos Estados de apartheid, a UA não enfrenta problema semelhante.
Eu tenho conhecimento de apenas uma proposta de alto nível para estender a R2P além do consenso da Cúpula e da extensão da UA: o Relatório sobre Responsabilidade de Proteger da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (2001).
A comissão considera a situação na qual "o Conselho de Segurança rejeita uma proposta ou fracassa em tratar dela em um prazo razoável". Neste caso, o relatório autoriza "ação dentro da área de jurisdição por organizações regionais ou sub-regionais (...) sujeitas a buscarem autorização subsequente do Conselho de Segurança".
A esta altura, o esqueleto no armário se agita de modo barulhento. Os poderosos determinam unilateralmente sua própria "área de jurisdição". A OEA e a UA não podem fazê-lo, mas a Otan pode, e faz.
A Otan determinou que sua "área de jurisdição" se estende até os Bálcãs, Afeganistão e além.
Os direitos expansivos acertados pela Comissão Internacional se restringem na prática apenas à Otan, violando os princípios do Canal de Corfu e abrindo a porta para a R2P como uma arma de intervenção imperial à vontade.
A "responsabilidade de proteger" sempre foi seletiva. Logo, não se aplica às sanções contra o Iraque impostas pelos Estados Unidos e Reino Unido e administradas pelo Conselho de Segurança, condenadas como "genocidas" pelos distintos diplomatas encarregados, que renunciaram em protesto.
Também não se pensa hoje em aplicar o R2P à população de Gaza, uma "população protegida" pela qual a ONU é responsável.
E nada sério é contemplado a respeito da pior catástrofe na África, se não do mundo: o conflito homicida no leste do Congo. Lá, como noticiou a "BBC", multinacionais são novamente acusadas de violar uma resolução da ONU contra o comércio ilícito de minerais valiosos -que financia a violência.
A R2P também não é invocada para responder à fome em massa nos países pobres.
Há vários anos, a Unicef relatou que 16 mil crianças morrem por dia por falta de comida, muitas mais por doenças de fácil prevenção. Os números são maiores agora. Apenas no sul da África equivale a uma mortandade como a de Ruanda, mas não por 100 dias, mas todo dia. Uma ação segundo a R2P seria fácil se houvesse vontade.
Nestes e em numerosos outros casos a seletividade se encaixa na máxima de Tucídides e nas expectativas da Corte Internacional de Justiça há 60 anos.
Mas as máximas que em grande parte guiam os assuntos internacionais não são imutáveis e, de fato, se tornaram menos severas ao longo dos anos, em consequência do efeito civilizador dos movimentos populares.
Para essa reforma progressiva, a R2P pode ser um instrumento valioso, tanto quanto tem sido a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Apesar dos Estados não aderirem à Declaração Universal, e alguns formalmente rejeitarem grande parte dela (incluindo o Estado mais poderoso do mundo), todavia ela serve como um ideal para o qual os ativistas podem apelar em esforços educativos e de organização, frequentemente de forma eficaz.
A discussão da R2P pode ser semelhante. Com compromisso suficiente, infelizmente ainda não detectável entre os poderosos, ela poderia ser de fato significativa.
Tradução: George El Khouri Andolfato
sexta-feira, julho 31, 2009
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