A paixão do negativo
Por Monique David-Ménard
Leia o prefácio do livro do professor e ensaísta Vladimir Safatle, lançado pela Editora Unesp
Construindo o espaço conceitual comum a dois pensamentos que se ignoraram durante meio século, o de Lacan e o de Adorno, Vladimir Safatle faz muito mais que uma aproximação interessante. Ele confronta duas filosofias apoiadas, cada uma, em uma prática: a cura psicanalítica para um, a criação artística para outro; assim como obriga o pensamento a se interrogar sobre o que um sistema, que tem sua densidade própria de teoria, deve à prática ou à experiência que ele privilegia.
A tese de Vladimir Safatle é que uma certa relação dos sujeitos desejantes à opacidade dos objetos que causam seus desejos -e que faz Lacan dizer que o objeto do desejo e da pulsão, longe de completar o sujeito, divide-o ao mesmo tempo que o constitui-, representa uma experiência do mesmo registro que a prática artística descrita por Adorno. Ela libera o sujeito moderno, preso em um racionalismo estreito, das ilusões de identidade que o sujeito da ciência não pode deixar de desenvolver desdobrando-se, tornando-se assim solidário de um mundo social alienante. Há uma resistência, que vem dos objetos, à tentativa de completude subjetiva, diz Safatle, é apenas esta resistência -resistência dos materiais de uma criação à toda perspectiva dominadora e reificada, resistência da alteridade do Outro na transferência-, impede que nossos desejos assimiladores se fechem em um narcisismo mortífero. No entanto, ao desenhar a cartografia deste encontro entre Adorno e Lacan, Vladimir Safatle não faz reducionismo algum. Ele freqüenta assiduamente o itinerário e a lógica própria a cada um destes pensamentos.
Lacan situa o sujeito do desejo como o que deve ser reconhecido, mas este reconhecimento não entregue por uma outra consciência, nenhuma perspectiva de transparência, de domínio através do saber ou de partilha de um universal qualifica o que diz respeito, em psicanálise lacaniana, ao reconhecimento e à relação ao Outro. É exatamente para evitar conotações muito fenomenológicas e sartreanas de um desejo ligado ao reconhecimento que Lacan teria se transformado em estruturalista. Se o reconhecimento obtido em uma análise diz respeito à alienação do sujeito à série de significantes que estrutura a sua história, o sujeito está sozinho diante da arquitetura estrutural de seu desejo. Arquitetura marcada pela incompletude. Se um significante é o que representa o sujeito para um outro significante, o sujeito é este vazio determinado pelo seu lugar na estrutura. Ele se vê pois afrontado pelo nada a respeito do qual ele é a efetuação. E só saímos das ilusões de completude através do que Lacan chama de desejo puro, única maneira para um sujeito de se des-identificar de uma cadeia constitutiva, mas alienante.
Ora, esta inflexão do pensamento lacaniano só será corrigida, justamente, pela insistência na importância do objeto: objeto do desejo, ainda ligado a uma configuração significante, mas também objeto da pulsão, ao qual o analista leva o analisando permitindo-o, desta forma, atravessar a idealização própria ao amor de transferência. O momento estruturalista era apenas um momento do qual nos liberamos através do reconhecimento da importância do objeto, causa do desejo, retirado do Outro e, no entanto, opaco e inassimilável.
O trajeto de Adorno é totalmente diferente. A experiência da criação artística é, para ele, o que nos libera das ilusões de um reconhecimento intersubjetivo a partir do qual Habermas e Honneth ainda acreditam poder derivar uma teoria da socialidade. Um artista se identifica com o que não pode ser ele no que ele cria. Ele chega mesmo a freqüentar a impessoalidade das coisas e a dureza do inanimado, pois apenas isto lhe permite o repouso, sem o recobrimento de um véu de harmonia, no estranhamento do mundo social da modernidade. Toda problemática do reconhecimento inter-humano que não problematiza a questão da opacidade das coisas, da natureza, dos materiais, só pode nos reconduzir a uma racionalidade instrumental que aliena o homem da sociedade contemporânea. Apenas a arte reconhece este “fetichismo” do objeto e o transforma em obra, isto ao invés de deixá-lo desdobrar-se na realidade econômica e social alienada.
Lacan luta contra o existencialismo e as filosofias da consciência. Adorno luta contra uma filosofia da comunicação, eco pálido da filosofia kantiana do universal como horizonte de reconhecimento.
O trabalho de Vladimir Safatle nos dá vontade de prosseguir na direção por ele desenhada. Se problemáticas tão diferentes podem finalmente abordar uma “mesma” questão é porque, tanto Lacan quanto Adorno, apesar de tudo, confrontam-se a Hegel.
Este último, com efeito, nunca reduziu o direito à forma linguageira do agir comunicacional. Todo reconhecimento passa não apenas pela mediação mas, devemos dizer lendo Safatle, pela opacidade dos objetos. Conserva-se normalmente, principalmente na tradição marxista da leitura de Hegel, a idéia de que a história é a transformação social da natureza. A natureza trabalhada seria pois o que deve ser “espiritualizado” para que o espírito advenha real. E a materialidade seria o simples instrumento da mediação.
Não poderíamos, no entanto, sustentar o contrário? Sustentar que há uma opacidade das coisas, em Hegel, que mediatiza a relação entre as consciências-de-si, isto de tal maneira que o reconhecimento nunca é transparente a si mesmo e que ele continua ligado ao que se efetua no mundo dos objetos?
Isto é longamente descrito, na “Fenomenologia do Espírito”, não apenas através da análise do trabalho sob condição de dominação, mas também na dialética da “Coisa mesma”: esta experiência através da qual uma obra só adquire realidade social e simbólica quando os outros alteram seu sentido e a sua realidade, de tal maneira que este que se acreditava autor não pode mais nela se reconhecer. E não seria este o cerne de toda problemática do direito abstrato nas “Lições sobre a filosofia do direito”? O direito que Hegel chama de abstrato regula, com efeito, os vínculos que se tecem entre os homens através da propriedade, ou seja, que se tecem na relação fetichista das vontades ao que é outro, ao que é inerte.
Sabemos que esta prova de uma negação redobrada, de uma negação não imediata é rapidamente invertida, em Hegel, na positividade de uma realidade social e estatal. Apenas a arte, tal é a contribuição de Adorno, sabe plantar morada na consciência do que não tem lugar em nossa sociedade, criando uma realidade para o que está em crise em nossa realidade. Mudando de terreno, podemos dizer, com Lacan, que apenas a arte sabe transformar um sintoma em “sinthome”, ou seja, em uma produção que respeita o que, na sexualidade, está na borda do impossível.
Como vemos, o pensamento de Vladimir Safatle é fecundo. Ele se abre para uma nova avaliação do lugar da psicanálise nas sociedades que absorveram sua pertinência, e ele fornece um futuro à tradição de filosofias saídas de Hegel.
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Lançamento O lançamento de "A paixão do negativo" ocorre no dia 4/5/2006, a partir das 18h, na Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, em São Paulo
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Monique David-MénardÉ psicanalista, filósofa, professora da Universidade de Paris VII e autora, entre outros, de "A loucura da razão pura: Kant, leitor de Swedenborg" (Editora 34), "Construções do universal" (Companhia de Freud), "A histeria entre Freud e Lacan" (Escuta) e "Deleuze et la psychanalyse" (PUF).
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