sexta-feira, março 09, 2007

Baudrillard foi precursor da crítica aos simulacros do mundo virtual

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA


O filósofo francês Jean Baudrillard, morto anteontem, é considerado um dos pais do pós-modernismo, ao lado de teóricos como Jean-François Lyotard e Fredric Jameson. O título, longe de ser honorífico, está cercado de ambigüidades.
Para muitos críticos, a expressão "pós-moderno" está associada a um terrorismo epistemológico, que consistiria em reduzir qualquer discurso a "constructos" mentais sem lastro de realidade. E este, por sua vez, legitimaria o relativismo ético, o vale-tudo moral num mundo sem certezas.
Entretanto, a noção de "simulacro", proposta por Baudrillard para explicar a paisagem pós-industrial, se dirige justamente contra esse apagamento dos limites entre o real e suas representações. Para ele, lidamos em nosso cotidiano apenas com um "código" (e não com realidades palpáveis); a era da reprodução técnica do mundo se intensificou a ponto de assimilar o existente a um sistema de signos que cancela a própria idéia de "original", dos objetos naturais que a linguagem representaria:
"O significado e o referente foram abolidos para o único proveito do jogo de significantes, de uma formalização generalizada na qual o código já não se refere a nenhuma realidade subjetiva ou objetiva, mas à sua própria lógica", escreve em "O Espelho da Produção".

Pensamento crítico
A afirmação não difere muito de correntes filosóficas que colocam a linguagem não apenas como instância de nossa percepção mas como algo que dá forma ao mundo. E, ao fazê-lo, modifica sua essência, constituindo uma espécie de "segunda natureza".
Se essa idéia da volatilização do existente se difundiu nas últimas décadas, sob influxo dos meios de comunicação e das realidades virtuais, coube a Baudrillard detectar o processo em seu estado nascente.
Iniciando sua trajetória em Nanterre, reduto dos intelectuais de maio de 68 e de uma reação ao estruturalismo de Lacan, Barthes e Foucault, Baudrillard compartilha com eles a matriz de um pensamento crítico moderno (Marx, Freud, Nietzsche).
Para estes "mestres da suspeita" (segundo expressão de Paul Ricoeur), sempre há algo que permanece irrepresentado -como podemos ver em noções psicanalíticas como "recalque", "lapso", ou em categorias sociológicas como "alienação", "ideologia", "fetiche" etc.
Baudrillard chamou a atenção para o fato de que essas fissuras haviam ultrapassado âmbitos específicos (psique, relações de trabalho), produzindo uma hiper-realidade. Numa de suas primeiras obras, "O Sistema dos Objetos", ele amplifica a distinção marxista entre "valor de uso" e "valor de troca" da mercadoria, assinalando que todo objeto tem um valor simbólico intrínseco, que não pode ser visto apenas como excedente de suas funções utilitárias.
A partir daí, sua obra se desenvolveu sob a égide do imediato, acompanhando as mutações que nosso imaginário foi sofrendo sob o impacto dos simulacros, das experiências que reescrevem a dicotomia entre real e imaginário. Crítico da comunicação, Baudrillard foi um polemista que fez largo uso da imprensa para veicular suas inquietações.

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