quinta-feira, março 20, 2008

Música sem enfeites

Por Humberto Pereira da Silva

O ensaísta Jorge de Almeida analisa a crítica do jovem Adorno e diz que o filósofo é muito lido no Brasil, mas mal digerido

No exame de questões postas pela estética, filosofia e música estabelecem laços que permitem a alguns pensadores refletir tanto sobre o lugar que preenche a criação musical frente às contradições da sociedade quanto sobre o estatuto, a compreensão e debates que giram torno de seu impacto em determinado momento histórico.

Dentre os filósofos que se dispuseram a articular filosofia e música, destacam-se Theodor Adorno, que dosou seu pensamento com inflexões originas e polêmicas sobre a música. Nas palavras de Adorno, a questão do valor de uma obra de arte tornou-se uma ficção, para aquele que se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. As categorias da arte autônoma, procurada e cultivada em virtude do seu valor intrínseco, já não tem valor para a apreciação musical de hoje.

Pensamento atual, muitas vezes em choque ou compreendido de forma obtusa por historiadores da arte, críticos, artistas e estudiosos, mesmo que se aproximem de seu pensamento, Adorno é matéria de estudo de recente livro de Jorge de Almeida, “Crítica Dialética em Theodor Adorno: Música e Verdade nos Anos Vinte” (Ateliê Editorial, 319 págs.). Jorge de Almeida, que é professor de teoria literária e literatura comparada na USP, tem formação em música e filosofia e se dedica há alguns anos à análise do pensamento de Adorno. Tendo-o como referência, publicou estudos relevantes sobre indústria cultural, modernismo e vanguardas.

Na entrevista a seguir, em que fala do livro, Jorge de Almeida procura desfazer alguns nós em torno de conceitos com os quais Adorno trabalhou. Ao acompanhar o surgimento de problemas e conceitos em meio à discussão sobre a Música Nova, ele observa que mesmo sendo um pensador muito lido no Brasil, Adorno ainda é mal digerido: “É interessante notar o quanto, mesmo assim, ele é atacado sem mais, principalmente por suas críticas ao jazz e suas idéias sobre indústria cultural”.

A leitura atenta de Adorno, no entanto, mostraria que ele está preocupado com a questão da verdade da obra musical: “A “verdade” ou “falsidade” de cada peça, explicitada pela crítica, diz muito sobre o mundo, por isso a arte não deveria ser vista como um simples enfeite ou reduzida a mero entretenimento”. Daí, defende Almeida, sua crítica se voltar à idéia de que a expressão musical seja tomada em sentido utilitário: “Adorno é muito crítico em relação à completa mercantilização da música, na transformação de seu 'valor de uso' em mero 'valor de troca'".

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Adorno escreveu sobre música até os anos 60. No entanto, no recorte que você fez para analisar as inflexões adornianas a respeito da música, o foco está nos debates travados nos anos 20. Por que esse período é tão importante para os debates e discussões sobre música?


Jorge de Almeida : De fato, os anos 20 foram muito importantes, não apenas para a música, mas também para a literatura, a arquitetura, o cinema e outras artes. Sob o impacto do final da Primeira Guerra e das promessas da Revolução Russa, a década é marcada por uma constante tensão entre dois impulsos contrários, que acabam se iluminando reciprocamente.

De um lado, o esforço de levar adiante a liberdade e as novas possibilidades de construção e expressão recém conquistadas pelo modernismo da virada do século e pelas vanguardas da década de 10 (o Futurismo e o Dadaísmo). De outro, a busca por um porto mais seguro, em uma época de tantas crises e transformações, com o retorno à ordem e a retomada de formas mais propícias para a comunicação com o grande público, tanto no neoclassicismo francês e italiano quanto na Nova Objetividade alemã.

Além disso, não podemos ignorar o impacto do Surrealismo, que atravessa fronteiras e reconfigura a relação entre a arte, o inconsciente e a política. Isso tudo em um período extremamente conturbado, com crises políticas e econômicas que se sucediam e atropelavam em um ritmo inusitado, propriamente “moderno”.


Mas o seu livro traz o título “critica dialética em Theodor Adorno”. Como isso se relaciona com os anos 20?


Almeida : Meu objetivo no livro é justamente mostrar como as categorias da crítica estética nascem e se reconfiguram a partir do diálogo com as questões cruciais do debate artístico de cada época.

Fiz um recorte, nos anos 20, para demonstrar essa idéia, pois esse é o período fundamental para a percepção, por parte não apenas dos críticos, mas também dos próprios artistas, de que eles não poderiam mais pensar e falar sobre arte com as mesmas categorias e conceitos do passado.

O modernismo e as vanguardas exigiam uma completa reconfiguração dos parâmetros tradicionais da crítica, já que cada autor relevante (alguns deles a cada nova obra) buscava uma solução específica e original para os problemas gerais da forma e do sentido.

O jovem Adorno, ao lado de seus estudos acadêmicos de filosofia, participava ativamente desse debate, como crítico literário e musical de importantes revistas da época. Aprendeu então, com as discussões sobre a morte do Expressionismo e as contradições da Nova Música, que a reflexão sobre arte não podia mais ser feita a partir de fora, a partir de conceitos gerais de estilo.

A nova situação exigia a interpretação de cada obra como uma tentativa de solução dos novos problemas artísticos e sociais. É a história da arte moderna, e não a leitura atenta dos textos de Kant e Hegel sobre estética, que gera, portanto, a necessidade de pensar em algo como uma “crítica dialética”, capaz de incorporar e explicitar as contradições, sem reduzi-las a questões a-históricas e abstratas.

Essa necessidade aproxima Adorno, no calor dos debates, a autores como Georg Simmel, Walter Benjamin, Georg Lukács e Ernst Bloch, entre outros grandes nomes da crítica do século XX. Mas a solução dada por Adorno é única, sem dúvida em razão de sua proximidade com o conturbado panorama musical dos anos 20.


“A música não deve enfeitar, mas sim ser verdadeira.” Essa é uma frase de Schoenberg que se tornará um lema para Adorno. O que ela significa? Qual é o nexo que Adorno estabelece entre “música” e “verdade”?

Almeida : Essa frase, tão citada, nasce de um contexto prosaico. Em uma aula, Schoenberg acabou corrigindo um de seus alunos, Karl Linke, que pretendia “vestir” uma melodia relativamente simples com uma harmonia extremamente complicada. Utilizando o bom e velho método socrático, dialético por natureza, o professor acabou convencendo o aluno de que isso contrariava o sentido geral da composição. A falsa solução destruía a “consistência interna” da obra, que deveria permanecer como o ideal a ser buscado por qualquer artista digno de sua arte.

A crítica de Schoenberg às soluções falsas ou arbitrárias, não justificadas pela coerência e necessidade da obra, é depois retomada por Adorno, que encontra nela um modelo para sua proposta de “crítica imanente”, ou seja, a capacidade de perceber o quanto cada obra, não tanto pelos seus acertos, mas em suas fissuras e dificuldades, enfrenta a cada compasso, linha ou pincelada, problemas artísticos que são análogos a problemas do processo social como um todo.

A “verdade” ou “falsidade” de cada peça, explicitada pela crítica, diz muito sobre o mundo, por isso a arte não deveria ser vista como um simples enfeite ou reduzida a mero entretenimento.

Em um sentido parecido, Kandinsky falava em forma “correta”; Adolf Loos criticava os ornamentos como crime, e Karl Kraus, escritor muito próximo a Schoenberg, pretendia “salvar a verdade contida na linguagem”. Todos buscavam respostas para um momento em que, com a derrocada das formas tradicionais, cada obra deveria criar e justificar sua própria forma, o que não é nada fácil.


Adorno fala de “perda da veracidade” da arte expressionista alemã. Por causa da “perda de veracidade”, o Expressionismo se tornou um momento decisivo nas reflexões sobre arte e política?

Almeida : Sim, você tem razão. O Expressionismo pretendia a enunciação plena e imediata do Eu, e por isso os expressionistas jamais gostaram de ser tratados como um grupo coeso, já que viam com enorme desconfiança noções como “escola” ou “movimento” e mesmo a prática dos manifestos (o que os diferenciava, entre outros tantos aspectos, dos futuristas e dos dadaístas).

A primeira coletânea de poesia expressionista, publicada no final da década de 1910, afirmava em seu prefácio que, “no lusco-fusco do crepúsculo da humanidade”, se faria ouvir pela primeira vez “o acorde dissonante da nova geração”, as várias e distintas vozes de um conjunto heterogêneo de poetas, que não podiam mais ser reduzidas a um princípio estilístico geral.

Esse é justamente o problema: se cada poeta buscava sua própria voz, matando a figura do pai (a autoridade da tradição, da pátria –"Vaterland "–, dos valores burgueses etc.), como ainda se faria entender pelos outros, já que as formas e a própria linguagem não são criações unicamente individuais? Como conciliar a liberdade artística, que haviam acabado de conquistar, com a necessidade de comunicação e sentido?

Essa é a questão levantada historicamente pelos expressionistas, que será respondida, nos anos 20, em dois caminhos diferentes: a radicalização das vanguardas, que destroem a própria noção tradicional de “obra” e “sentido”, implodindo até mesmo o “eu” expressionista; e a reação neoclássica, que gostaria de recuperar um “nós” abstrato para se contrapor a esse “eu” isolado e supostamente arrogante.

Não por acaso a arte nazista e fascista, em defesa dos valores da “comunidade”, recupera formas e temas clássicos, dando a eles um ar de “modernidade” anacrônica. O jovem Adorno, assim como Walter Benjamin e tantos outros artistas e críticos, estava muito atento a esse problema, num momento em que arte e política não podiam ser tratadas como âmbitos separados.


No capítulo em que trata do “estilo”, você observa que Schoenberg, embora considerado como “o pai do pensamento atonal”, rejeitava esse termo e preferia se referir ao rompimento com as normas básicas do sistema tonal como “emancipação da dissonância”. Isso se deve a questões meramente semânticas? Em que medida ele estava correto, quando se considera que o termo “atonalismo” sobreviveu à sua rejeição?


Almeida : Schoenberg realmente não apreciava o termo “música atonal”, até mesmo antes de o “atonalismo” ser transformado em escola. Irônico, ele dizia que chamar uma música de “atonal” seria o mesmo que chamar o vôo de “a arte de não cair”, ou a natação “a arte de não se afogar”.

O rompimento com o sistema tonal seria para ele uma evolução necessária da história da “música nacional” (e nisso ele era bastante germânico, pois sua história ia de Bach a ele próprio, passando por Mozart, Beethoven, Brahms e Wagner). Como o termo “atonalismo” ressaltava apenas um aspecto negativo dessa fase mais recente, que havia superado definitivamente os fundamentos rígidos do sistema tonal, ele preferia a expressão “emancipação da dissonância”.

Essa emancipação, por si só, não diria nada a respeito da qualidade, ou “verdade”, de cada peça. Não bastava evitar cadências tonais para criar boa música, muito pelo contrário. Quanto maior a liberdade, maior o rigor exigido do compositor, já que a maioria das formas tradicionais estava baseada em pressupostos tonais (como, por exemplo, a forma-sonata).

Resumindo muito, e deixando os exemplos para quem ler o livro, poderíamos dizer que, quando tudo finalmente se torna possível, cada passo deve ser justificado; assim, cada forma deve legitimar a si mesma, sem o recurso a formas antigas, cujos pressupostos, artísticos e sociais, foram superados. Daí para a “técnica de composição com 12 sons” (pois Schoenberg também rejeitava o termo “dodecafonismo”) foi um passo que, entretanto, gerou muitos tropeços.


No livro você abre amplo espaço para tratar das diferenças entre Schoenberg e Stravinsky. No que as diferenças entre eles são importantes para se apreender a posição em que se coloca Adorno nos debates dos anos 20? Visto que ambos se impuseram como figuras de realce na criação artística do século XX, que objeções se pode fazer à defesa de Schoenberg feita por Adorno?

Almeida : Essa questão é importante e complicada, até porque Schoenberg e Stravinsky serão os polos antagônicos da "Filosofia da Nova Música", livro publicado por Adorno no fim da década de 1940, mas baseado em grande parte na produção crítica da década de 20. É preciso, antes de tudo, lembrar que as obras de Schoenberg e de Stravinsky são vastas e muito diferenciadas, justamente em razão da crise do “estilo” em geral, que também afeta a produção de cada compositor isoladamente.

Há um longo caminho entre os "Gurre-Lieder" e o "Quinteto Op. 26", que também passa por "Pierrot Lunaire"; assim como é grande a distância entre a "Sagração da Primavera" e o oratório monumental "Oedipus Rex", quase uma antítese da sarcástica "História do Soldado".

A oposição tratada por Adorno não é abstrata; diz respeito ao contraste das soluções apresentadas pelos dois grandes compositores, que ele sempre reconheceu como tais. A crítica, mais do que uma mera questão de gosto, também aqui é dialética: só a contradição entre Schoenberg e Stravinsky pode iluminar a Nova Música como um todo, e os caminhos que, no interior desse termo genérico, cada um dos compositores tomou.

Nos anos 20, de fato, Adorno defendia, como leal aluno de Alban Berg, o caminho apontado por Schoenberg, ligado à tradição alemã e a uma concepção de forma inteiramente construída pelo procedimento da “variação em desenvolvimento”, herança de Beethoven e Brahms, mas que incorporava as conquistas harmônicas de Wagner.

O espírito de Stravinsky é completamente outro, baseado essencialmente em procedimentos como a montagem e a seqüência, o que o aproxima, por exemplo, na "História do Soldado", das diatribes dadaístas. Mas não podemos esquecer que, em busca de um solo mais firme, justamente nos anos 20, Schoenberg desenvolveu o dodecafonismo e Stravinsky retornou a formas pré-clássicas.

Não é por acaso que, nessa época, ambos compõem suítes. Essas guinadas são objeto de duras críticas por parte de Adorno, que reconhecia aí uma tendência geral de sistematização e cancelamento da liberdade anterior, paralela e análoga ao movimento de controle da sociedade “completamente administrada”. Depois, no exílio americano, essas observações serão cruciais para o desenvolvimento, em conjunto com Max Horkheimer, das idéias que fundamentam a "Dialética do Esclarecimento".


A ópera "Wozzeck", de Alban Berg, foi recebida em suas primeiras execuções com pesadas críticas. Por que Adorno se entusiasmou tanto por essa obra de Berg? No contexto da época, que questões estavam envolvidas para que ela tivesse impacto tão negativo?

Almeida : Depois de ouvir uma apresentação dos fragmentos do "Wozzeck" em Frankfurt, Adorno viajou a Viena para ter aulas de composição com Berg, por sua vez aluno de Schoenberg. Não sei se você sabe, mas Adorno estudava piano e música desde criança, por influência da mãe e da tia, cantora lírica. Era um excelente pianista, que “tinha nos dedos” os dois volumes do cravo bem temperado antes de completar 18 anos! Não é pouca coisa. Pois bem, Berg o aceitou como aluno, e ele acompanhou com o mestre várias das estréias da ópera: em Berlim, Frankfurt e Praga. O que ele mais admirava na obra era o equilíbrio entre construção e expressão, entre subjetividade e objetividade da forma.

A ópera enquanto gênero, desde meados do século XIX, estava em uma encruzilhada, pois uma vez apagada completamente a diferenciação entre as costumeiras árias e recitativos, e rompida a base harmônica tonal que guiava as curvas melódicas, toda a música tinha de ser composta a partir de algum elemento que pudesse dar forma ao todo.

Wagner encontrou uma solução unindo texto e música na figura do leitmotiv, motivos associados a determinados sentimentos ou personagens, que retornam e se sobrepõem durante a ação. Outros trilharam caminhos diferentes, sempre estabelecendo alguma relação estrutural entre texto e música.

Explico isso com mais detalhes no livro, pois é um tema bem interessante. Ora, Berg conseguiu compor uma ópera inteira, relativamente longa, incluindo nela uma sucessão de diferentes formas da música tradicionalmente chamada “absoluta”.

Temos então, de forma inteiramente adequada à ação dramática, momentos que seguem a estrutura de uma forma-sonata, de um concerto, uma suíte, um tema com variações etc. A solução é engenhosa, mas sua realização musical é ainda mais impressionante, pois o resultado consegue estar à altura da grande peça de Büchner que deu origem ao libreto.


Você dedica um capítulo à “música utilitária”. O que é “música utilitária” e qual sua importância para se entender os debates sobre música e verdade nos anos 20?


Almeida : Durante toda a década de 1920, Adorno acompanhou, como crítico, os festivais organizados pela Sociedade Internacional de Música Contemporânea. A partir dos encontros de 1923, ele fica surpreso com a quantidade de obras que se recusavam a ser simplesmente “apreciadas” em uma sala de concerto.

Compositores tão diferentes quanto Stravinsky, Casella, Milhaud, Eisler e Hindemith passaram a compor obras destinadas a diferentes “usos”: música para cinema, música para mesa; música didática; música política; e até mesmo música como mobília, em uma curiosa experiência de Satie e Milhaud, que fracassou, porque o público, sem seguir as orientações do panfleto, acabou prestando atenção ao que era tocado pelos músicos!

O novo ideal da “música utilitária” não queria apenas aproximar a música do público, mas também romper com a própria diferença entre músico e público, defendendo tanto a música amadora quanto a música “cotidiana”, o que exigiria um novo modo de apreensão, mais distraído e menos ritualizado.

Adorno, não preciso dizer, é muito crítico em relação a isso, pois vê no movimento um duplo perigo: a completa mercantilização da música, na transformação de seu “valor de uso” em mero “valor de troca”; e a vocação totalitária, à direita e à esquerda, da simplificação necessária para a composição de músicas destinadas à propaganda política. Esse debate continuou vivo mesmo após a Segunda Guerra, e hoje está novamente na ordem do dia.


Outro conceito que você explora no livro é o de “material”. Por que esse conceito é relevante para se entender que “a música cumpre mais precisamente sua função social quando passa a expor, em seu próprio material e segundo suas próprias leis formais, os problemas da sociedade, que estão contidos, em seus mais íntimos elementos, em sua técnica”?

Almeida : Os debates com o crítico e compositor Ernst Krenek, no início dos anos 30, são fundamentais para que Adorno consiga, algum tempo depois, solucionar de modo interessante as questões que afetavam toda a crítica durante os conturbados anos 20. Como pensar adequadamente o problema da mediação entre arte e sociedade, sem recorrer a conceitos genéricos de “estilos de época” nem assumir uma posição meramente externa, tematizando a posição social e política dos artistas, os temas tratados nas obras etc.?

No caso da música, arte essencialmente não conceitual, isso era ainda mais complicado. Para superar a tradicional contraposição entre forma e conteúdo, que agora girava em falso, Adorno recupera um conceito importante da teoria musical, o de “material”. A concepção de um “material musical” já havia sido muito discutida por teóricos como Guido Adler, Hanslick e mesmo Max Weber, que dedica um importante ensaio ao assunto.

Na década de 20, a questão era polêmica, porque a posição teórica gerava fortes argumentos para justificar as diversas correntes musicais que na época estavam em conflito, disputando um eventual “futuro da música”.

Resumindo novamente, podemos dizer que havia três posições em jogo: alguns achavam, como Krenek, que o “material” enfim passava a englobar todos os meios de expressão que o compositor tinha à disposição; outros, como Hindemith, buscavam fundamentos físico-fisiológicos para estabelecer recortes nesse conjunto mais amplo; por fim, seguindo a visão de Schoenberg, Adorno insistia na historicidade do “material”, que envolveria não apenas as possibilidades de relações harmônicas, mas as próprias formas desenvolvidas durante a história da música. Ou seja, cada som, cada acorde, cada cadência, cada timbre e cada forma trariam em si toda a história da música. E isso tinha de ser levado em conta pelo compositor.

Alguns acordes, como o de sétima diminuta, haviam se desgastado com o tempo; outros, agora, só se justificavam em função do decurso polifônico que os havia configurado na própria peça. Tanto a composição quanto a recepção de cada música (e qualquer obra de arte) seria um assunto da história, e por isso tinha a ver com a história da sociedade como um todo.

Daí a idéia de “crítica imanente”, ou seja, o crítico deveria mergulhar mais fundo na obra para encontrar, ali, a própria sociedade, que dá forma, no sentido mais amplo, ao material. Falar é fácil, mas realizar a crítica imanente, evitando reducionismos e chegando ao cerne da questão, é algo complicado, que requer um profundo conhecimento da história da arte e ainda uma extensa reflexão sobre a sociedade e a história. De qualquer modo, Adorno escreve ensaios brilhantes nesse sentido, não apenas sobre música, mas também sobre literatura, principalmente a partir da década da Segunda Guerra.


A se considerar a atualidade da obra de Adorno, a articulação que ele propõe entre filosofia e música, com as proposições que você defende, qual é a recepção esperada para o livro?

Almeida : No Brasil, Adorno é um pensador fundamental em todo o debate das ciências humanas, da teoria literária à sociologia, passando também pela filosofia e pela crítica cultural. Muitos trabalhos importantes sobre sua obra já foram escritos e publicados entre nós e, ao lado de Walter Benjamin, Adorno é bibliografia constante em vários cursos.

É interessante notar o quanto, mesmo assim, ele é atacado sem mais, principalmente por suas críticas ao jazz e suas idéias sobre indústria cultural (termo que ele cunhou na década de 40). Por outro lado, também é lido na academia, às vezes, como algo que ele nunca pretendeu ser: o fundador de um método de interpretação geral da arte e da sociedade ou o criador de um sistema filosófico completo. Ora, a Teoria Crítica, desde o início, buscava justamente se contrapor a esse tipo de pensamento classificador e dogmatizante.

O importante, na leitura de Adorno, é aprender a pensar de maneira inteligente e crítica os problemas que cada época propõe. O próprio Adorno mudou de idéia várias vezes, sobre vários assuntos, e nunca achou que isso fosse um defeito, pois acreditava no “núcleo temporal da verdade”, base da própria reflexão dialética, que assume sempre o fundamento histórico de cada obra ou reflexão.

Espero com meu livro contribuir para que a obra de Adorno seja lida sempre como uma reflexão ligada a objetos e problemas históricos específicos, que devem ser conhecidos e estudados para que as posições do filósofo não se percam em abstrações sem sentido. Adorno é um autor difícil, porque sua leitura demanda não apenas o conhecimento de uma complicada terminologia filosófica alemã, mas também porque ele tinha um conhecimento extenso e profundo de várias áreas do saber, cuja separação é uma das bases da ciência tradicional feita hoje nas universidades.

Assim, alguns filósofos acham que podem ler a "Teoria Estética", última grande obra de Adorno, passando por cima de todas as centenas de referências à história da arte, da literatura e da música, já que estas são vistas como meros “exemplos” de uma suposta concepção filosófica mais geral; por outro lado, sociólogos e críticos de arte folheiam os livros de Adorno em busca de reflexões pontuais sobre determinados assuntos e autores, perdendo de vista o contexto mais amplo da argumentação, que organiza a reflexão sobre esses temas.

O importante, de qualquer modo, é ler Adorno não para simplesmente “conhecer Adorno”, mas sim para aprofundar as questões e, no melhor espírito do ensaio, dizer algo relevante sobre o mundo. Talvez esse seja o sentido mais profundo do termo “crítica dialética”, que procurei estudar em meu livro.

Publicado em 16/3/2008

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Humberto Pereira da Silva
É professor de filosofia e sociologia no ensino superior e crítico de cinema, autor de "Ir ao cinema: um olhar sobre filmes" (Musa Editora).

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