Claire Parnet [1994]: Gilles Deleuze sempre se negou a aparecer na TV. Mas atualmente ele acha sua doença tão parecida com a petite mort, da canção de A. Souchon, que mudou de opinião. Mantive, porém, sua declaração [“a cláusula”], feita em 1988, no início da filmagem:
Gilles Deleuze [1988]: Você escolheu um abecedário, me preveniu sobre os temas, não conheço bem as questões, mas pude refletir um pouco sobre os temas... Responder a uma questão, sem ter refletido, é para mim algo inconcebível. O que nos salva é a cláusula. A cláusula é que isso só será utilizado, se for utilizável, só será utilizado após minha morte. Então, já me sinto reduzido ao estado de puro arquivo de Pierre-André Boutang, de folha de papel, e isso me anima muito, me consola muito, e quase no estado de puro espírito, eu falo, falo ...após minha morte... e, como se sabe, um puro espírito, basta ter feito a experiência da mesa girante [do espiritismo], para saber que um puro espírito não dá respostas muito profundas, nem muito inteligentes, é um pouco vago, então está tudo certo, tudo certo para mim, vamos começar: A, B, C, D... o que você quiser.
A de Animal
CP: Então começamos com A. A é Animal. Poderíamos considerar sua a frase de W. C. Fields: “Um homem que não gosta nem de crianças, nem de animais não pode ser totalmente ruim”. Por enquanto, deixemos de lado as crianças, sei que você não gosta muito de animais domésticos, e nem prefere, como Baudelaire ou Cocteau, os gatos aos cachorros. Em compensação, você tem um bestiário, ao longo de sua obra, que é bastante repugnante, ou seja, além das feras, que são animais nobres, você fala muito do carrapato, do piolho, de alguns pequenos animais como esses, repugnantes, e além disso, que os animais lhe serviram muito desde O anti-Édipo. Um conceito importante em sua obra é o devir-animal. Qual é, então, sua relação com os animais?
GD: Os animais não são... O que você disse sobre minha relação com os animais domésticos, não é o animal doméstico, domado, selvagem, o que me preocupa. O problema é que os gatos, os cachorros, são animais familiares, familiais, e é verdade que desses animais domados, domésticos, eu não gosto. Em compensação, gosto de animais domésticos não-familiares, não-familiais. Gosto, pois sou sensível a algo neles. Aconteceu comigo o que acontece em muitas famílias. Não tinha gato, nem cachorro. Um de meus filhos com Fanny trouxe, um dia, um gato que não era maior que sua mãozinha. Ele o tinha encontrado, estávamos no campo, em um palheiro, não sei bem onde, e a partir desse momento fatal, sempre tive um gato em casa. O que me incomoda nesses bichos? Bem, não foi um calvário, eu suporto, o que me incomoda... não gosto dos roçadores, um gato passa seu tempo se roçando, roçando em você, não gosto disso. Um cachorro é diferente, o que reprovo, fundamentalmente, no cachorro, é que ele late. O latido me parece ser o grito mais estúpido. E há muitos gritos na Natureza! Há uma variedade de gritos, mas o latido é, realmente, a vergonha do reino animal. Suporto, em compensação, suporto mais, se não durar muito, o grito, não sei como se diz, o uivo para a lua, um cachorro que uiva para a lua, eu suporto mais.
CP: O uivo para a morte.
GD: Para a morte, não sei, suporto mais que o latido. E, quando soube que cachorros e gatos fraudavam a previdência social, minha antipatia aumentou. Ao mesmo tempo, o que digo é bem bobo, porque as pessoas que gostam verdadeiramente de gatos e cachorros têm uma relação com eles que não é humana. Por exemplo, as crianças, têm uma relação com eles que não é humana, que é uma espécie de relação infantil ou... o importante é ter uma relação animal com o animal. O que é ter uma relação animal com o animal? Não é falar com ele... Em todo caso, o que não suporto é a relação humana com o animal. Sei o que digo porque moro em uma rua um pouco deserta e as pessoas levam seus cachorros para passear. O que ouço de minha janela é espantoso. É espantoso como as pessoas falam com seus bichos. Isso inclui a própria psicanálise. A psicanálise está tão fixada nos animais familiares ou familiais, nos animais da família, que qualquer tema animal... em um sonho, por exemplo, é interpretado pela psicanálise como uma imagem do pai, da mãe ou do filho, ou seja, o animal como membro da família. Acho isso odioso, não suporto. Devemos pensar em duas obras primas de Douanier Rousseau: o cachorro na carrocinha que é realmente o avô, o avô em estado puro, e depois o cavalo de guerra, que é um bicho de verdade. A questão é: que relação você tem com o animal? Se você tem uma relação animal com o animal... Mas geralmente as pessoas que gostam dos animais não têm uma relação humana com eles, mas uma relação animal. Isso é muito bonito, mesmo os caçadores, e não gosto de caçadores, enfim, mesmo eles têm uma relação surpreendente com o animal. Acho que você me perguntou, também, sobre outros animais. É verdade que sou fascinado por bichos como as aranhas, os carrapatos, os piolhos. É tão importante quanto os cachorros e gatos. E é também uma relação com animais, alguém que tem carrapatos, piolhos. O que quer dizer isto? São relações bem ativas com os animais. O que me fascina no animal? Meu ódio por certos animais é nutrido por meu fascínio por muitos animais. Se tento me dizer, vagamente, o que me toca em um animal, a primeira coisa é que todo animal tem um mundo. É curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais têm mundos. Um mundo animal, às vezes, é extraordinariamente restrito e é isso que emociona. Os animais reagem a muito pouca coisa. Há toda espécie de coisas... Essa história, esse primeiro traço do animal é a existência de mundos animais específicos, particulares, e talvez seja a pobreza desses mundos, a redução, o caráter reduzido desses mundos que me impressiona muito. Por exemplo, falamos, há pouco, de animais como o carrapato. O carrapato responde ou reage a três coisas, três excitantes, um só ponto, em uma natureza imensa, três excitantes, um ponto, é só. Ele tende para a extremidade de um galho de árvore, atraído pela luz, ele pode passar anos, no alto desse galho, sem comer, sem nada, completamente amorfo, ele espera que um ruminante, um herbívoro, um bicho passe sob o galho, e então ele se deixa cair, aí é uma espécie de excitante olfativo. O carrapato sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este é o segundo excitante, luz, e depois odor, e então, quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a região com menos pêlos, um excitante tátil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer, ele não dá a mínima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona três coisas.
CP: É este seu sonho de vida? É isso que lhe interessa nos animais?
GD: É isso que faz um mundo.
CP: Daí sua relação animal-escrita. O escritor, para você, é, também, alguém que tem um mundo?
GD: Não sei, porque há outros aspectos, não basta ter um mundo para ser um animal. O que me fascina completamente são as questões de território e acho que Félix e eu criamos um conceito que se pode dizer que é filosófico, com a idéia de território. Os animais de território, há animais sem território, mas os animais de território são prodigiosos, porque constituir um território, para mim, é quase o nascimento da arte. Quando vemos como um animal marca seu território, todo mundo sabe, todo mundo invoca sempre... as histórias de glândulas anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu território. O que intervém na marcação é, também, uma série de posturas, por exemplo, se abaixar, se levantar. Uma série de cores, os macacos, por exemplo, as cores das nádegas dos macacos, que eles manifestam na fronteira do território... Cor, canto, postura, são as três determinações da arte, quero dizer, a cor, as linhas, as posturas animais são, às vezes, verdadeiras linhas. Cor, linha, canto. É a arte em estado puro. E, então, eu me digo, quando eles saem de seu território ou quando voltam para ele, seu comportamento... O território é o domínio do ter. É curioso que seja no ter, isto é, minhas propriedades, minhas propriedades à maneira de Beckett ou de Michaux. O território são as propriedades do animal, e sair do território é se aventurar. Há bichos que reconhecem seu cônjuge, o reconhecem no território, mas não fora dele.
CP: Quais?
GD: É uma maravilha. Não sei mais que pássaro, tem de acreditar em mim. E então, com Félix, saio do animal, coloco, de imediato, um problema filosófico, porque... misturamos um pouco de tudo no abecedário. Digo para mim, criticam os filósofos por criarem palavras bárbaras, mas eu, ponha-se no meu lugar, por determinadas razões, faço questão de refletir sobre essa noção de território. E o território só vale em relação a um movimento através do qual se sai dele. É preciso reunir isso. Preciso de uma palavra, aparentemente bárbara. Então, Félix e eu construímos um conceito de que gosto muito, o de desterritorialização. Sobre isso nos dizem: é uma palavra dura, e o que quer dizer, qual a necessidade disso? Aqui, um conceito filosófico só pode ser designado por uma palavra que ainda não existe. Mesmo se se descobre, depois, um equivalente em outras línguas. Por exemplo, depois percebi que em Melville, sempre aparecia a palavra: outlandish, e outlandish, pronuncio mal, você corrige, outlandish é, exatamente, o desterritorializado. Palavra por palavra. Penso que, para a filosofia, antes de voltar aos animais, para a filosofia é surpreendente. Precisamos, às vezes, inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída do território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte. Tudo isso acontece nos animais. É isso que me fascina, todo o domínio dos signos. Os animais emitem signos, não param de emitir signos, produzem signos no duplo sentido: reagem a signos, por exemplo, uma aranha: tudo o que toca sua tela, ela reage a qualquer coisa, ela reage a signos. E eles produzem signos, por exemplo, os famosos signos... Isso é um signo de lobo? É um lobo ou outra coisa? Admiro muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros caçadores, não os de sociedades de caça, mas os que sabem reconhecer o animal que passou por ali, aí eles são animais, têm, com o animal, uma relação animal. É isso ter uma relação animal com o animal. É formidável.
CP: É essa emissão de signos, essa recepção de signos que aproxima o animal da escrita e do escritor?
GD: É. Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita.
CP: Como o escritor?
GD: O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita. É evidente que estamos à espreita. O animal é... observe as orelhas de um animal, ele não faz nada sem estar à espreita, nunca está tranqüilo. Ele come, deve vigiar se não há alguém atrás dele, se acontece algo atrás dele, a seu lado. É terrível essa existência à espreita. Você faz a aproximação entre o escritor e o animal.
CP: Você a fez antes de mim.
GD: É verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um escritor escreve para os leitores, ou seja, “para uso de”, "dirigido a". Um escritor escreve "para uso dos leitores". Mas o escritor também escreve pelos não-leitores, ou seja, “no lugar de” e não "para uso de". Escreve-se pois "para uso de" e "no lugar de". Artaud escreveu páginas que todo mundo conhece. “Escrevo pelos analfabetos, pelos idiotas”. Faulkner escreve pelos idiotas. Ou seja, não para os idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o leiam, mas no lugar dos analfabetos, dos idiotas. “Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos bichos”. O que isso quer dizer? Por que se diz uma coisa dessas? “Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos bichos”. É isso que se faz, literalmente, quando se escreve. Quando se escreve, não se trata de história privada. São realmente uns imbecis. É a abominação, a mediocridade literária de todos as épocas, mas, em particular, atualmente, que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua historinha privada, sua avó que morreu de câncer, sua história de amor, e então se faz um romance. É uma vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar, realmente, em uma história universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...
CP: É escrever "para" e "pelo", ou seja, "para uso de" e "no lugar de". É o que disse em Mil platôs, sobre Chandos e Hofmannsthal: “O escritor é um bruxo, pois vive o animal como a única população frente à qual é responsável”.
GD: É isso. É por uma razão simples, acredito que seja bem simples. Não é uma declaração literária a que você leu de Hofmannsthal. É outra coisa. Escrever é, necessariamente, forçar a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até um certo limite, limite que se pode exprimir de várias maneiras. É tanto o limite que separa a linguagem do silêncio, quanto o limite que separa a linguagem da música, que separa a linguagem de algo que seria... o piar, o piar doloroso.
CP: Mas de jeito algum o latido?
GD: Não, o latido não. E, quem sabe, poderia haver um escritor que conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka é A metamorfose, o gerente que grita: “Ouviram, parece um animal”. Piar doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka escreveu pelo povo dos camundongos, pelo povo dos ratos que morrem. Não são os homens que sabem morrer, são os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como bichos. Aí voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os vários gatos que se sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou seja, vi o que muita gente também viu, como um bicho procura um canto para morrer. Há um território para a morte também, há uma procura do território da morte, onde se pode morrer. E esse gatinho que tentava se enfiar em um canto, como se para ele fosse o lugar certo para morrer. Nesse sentido, se o escritor é alguém que força a linguagem até um limite, limite que separa a linguagem da animalidade, do grito, do canto, deve-se então dizer que o escritor é responsável pelos animais que morrem, e ser responsável pelos animais que morrem, responder por eles... escrever não para eles, não vou escrever para meu gato, meu cachorro. Mas escrever no lugar dos animais que morrem é levar a linguagem a esse limite. Não há literatura que não leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do não-pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao espírito humano, há relações animais com o animal. Seria bom se terminássemos com o A.
B de Beber
CP: Vamos passar para o B. CP: B é um pouco particular, é sobre a bebida. Você bebeu e parou de beber. Eu gostaria de saber quando você bebia, o que era beber? Tinha prazer, ou o quê?
GD: Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito... Seria preciso perguntar a outras pessoas que beberam, perguntar aos alcoólatras. Acho que beber é uma questão de quantidade, por isso não há equivalente com a comida. Há gulosos, há pessoas... comer sempre me desagradou, não é para mim, mas a bebida é uma questão... Entendo que não se bebe qualquer coisa. Quem bebe tem sua bebida favorita, mas é nesse âmbito que ele entende a quantidade. O que quer dizer questão de quantidade? Zomba-se muito dos drogados, ou dos alcoólatras, porque eles sempre dizem: “Eu controlo, paro de beber quando quiser”. Zombam deles, porque não se entende o que querem dizer. Tenho lembranças bem claras. Eu via bem isso e acho que quem bebe compreende isso. Quando se bebe, se quer chegar ao último copo. Beber é, literalmente, fazer tudo para chegar ao último copo. É isso que interessa.
CP: É sempre o limite?
GD: Será que é o limite? É complicado. Em outros termos, um alcoólatra é alguém que está sempre parando de beber, ou seja, está sempre no último copo. O que isto quer dizer? É um pouco como a fórmula de Péguy, que é tão bela: não é a última ninféia que repete a primeira, é a primeira ninféia que repete todas as outras e a última. Pois bem, o primeiro copo repete o último, é o último que conta. O que quer dizer o último copo para um alcoólatra? Ele se levanta de manhã, se for um alcoólatra da manhã, há todos os gêneros, se for um alcoólatra da manhã, ele tende para o momento em que chegará ao último copo. Não é o primeiro , o segundo, o terceiro que o interessa, é muito mais, um alcoólatra é malandro, esperto. O último copo quer dizer o seguinte: ele avalia, há uma avaliação, ele avalia o que pode agüentar, sem desabar... Ele avalia. Varia para cada pessoa. Avalia, portanto, o último copo e todos os outros serão a sua maneira de passar, e de atingir esse último. E o que quer dizer o último? Quer dizer: ele não suporta beber mais naquele dia. É o último que lhe permitirá recomeçar no dia seguinte, porque, se ele for até o último que excede seu poder, é o último em seu poder, se ele vai além do último em seu poder para chegar ao último que excede seu poder, ele desmorona, e está acabado, vai para o hospital, ou tem de mudar de hábito, de agenciamento. De modo que, quando ele diz: o último copo, não é o último, é o penúltimo, ele procura o penúltimo. Ele não procura o último copo, procura o penúltimo copo. Não o último, pois o último o poria fora de seu arranjo, e o penúltimo é o último antes do recomeço no dia seguinte. O alcoólatra é aquele que diz e não pára de dizer: vamos... é o que se ouve nos bares, é tão divertida a companhia de alcoólatras, a gente não se cansa de escutá-los, nos bares quem diz: é o último, e o último varia para cada um. E o último é o penúltimo.
CP: É também quem diz: amanhã paro.
GD: Amanhã eu paro? Não, ele não diz: amanhã eu paro; diz: paro hoje para recomeçar amanhã.
CP: Então, já que beber é sempre parar de beber, como se pára de beber totalmente, já que você parou?
GD: É muito perigoso, me parece que acontece rápido. Michaux disse tudo, os problemas de droga e os problemas de álcool não estão tão separados. Há um momento em que isso se torna perigoso demais, porque, aí também é uma crista, como quando eu dizia "a crista entre a linguagem e o silêncio", ou a linguagem e a animalidade, é uma crista, é um estreito desfiladeiro. Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que se quer, desde que isso não o impeça de trabalhar, se for um excitante é normal oferecer algo de seu corpo em sacrifício. Beber, se drogar são atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de uma ajuda: álcool, droga, etc. A fronteira é muito simples. Beber, se drogar, tudo isso parece tornar quase possível algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois, sabe-se, mas em todo caso, está ligado a isto, trabalhar, trabalhar. E é evidente que quando tudo se inverte, e que beber impede de trabalhar, e a droga se torna uma maneira de não trabalhar, é o perigo absoluto, não tem mais interesse, e, ao mesmo tempo, percebe-se, cada vez mais, que quando se pensava que o álcool ou a droga eram necessários, eles não são necessários. Talvez se deva passar por isso, para perceber que tudo o que se pensou fazer graças a eles podia-se fazer sem eles. Admiro muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo isso é... ele pára. Eu tenho menos mérito, porque parei de beber por razões de respiração, de saúde, etc., mas é evidente que se deve parar ou se privar disso. A única justificação possível é se isso ajuda o trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quanto mais se avança, mais a gente diz a si mesmo que não ajuda o trabalho...
CP: Por um lado, como Michaux, é preciso ter se drogado, bebido muito para poder se privar em um estado desses. Por outro lado, você diz: quando se bebe, isso não deve impedir o trabalho, mas é porque se entreviu algo que a bebida ajudava a suportar. E esse algo não é a vida. Aí há a questão dos escritores de que se gosta.
GD: Sim, é a vida.
CP: É a vida?
GD: É algo forte demais na vida, não é algo terrificante, é algo forte demais, poderoso demais na vida. Acredita-se, de modo um pouco idiota, que beber vai colocá-lo no nível desse algo mais poderoso. Se pensar em toda a linhagem dos grandes americanos. De Fitzgerald a... um dos que mais admiro é Thomas Wolfe. É uma série de alcoólatras, ao mesmo tempo que é isso o que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a perceber algo grande demais para eles.
CP: É, mas é também porque eles perceberam algo da potência da vida, que nem todos podem perceber, porque sentiram algo da potência da vida.
GD: O álcool não o fará sentir...
CP: ... que havia uma potência da vida forte demais para eles, e que só eles podiam perceber.
GD: Certo.
CP: E Lowry também?
GD: Certo. Claro, eles fizeram uma obra e o que foi o álcool para eles? Eles se arriscaram, arriscaram porque pensaram, com ou sem razão, que isso os ajudava. Eu tive a sensação de que isso me ajudava a fazer conceitos, é estranho, a fazer conceitos filosóficos. Ajudava, depois percebi que já não ajudava, que me punha em perigo, não tinha vontade de trabalhar se bebesse. Então se deve parar. É simples.
CP: É uma tradição americana, são poucos os escritores franceses que confessaram sua queda pelo álcool. Além disso, há algo que faz parte da escrita...
GD: Os escritores franceses não têm a mesma visão de escrita. Não sei se fui tão marcado pelos americanos, é uma questão de visão, de vidências, aqui considera-se que a filosofia, a escrita, é uma questão... De maneira modesta, ver algo, que os outros não vêem, não é esta a concepção francesa da literatura, mas note, houve também muitos alcoólatras na França.
CP: Mas eles param de escrever, na França. Têm muita dificuldade, os que conhecemos. Poucos filósofos confessaram sua queda pela bebida.
GD: Verlaine morava na rua Nollet, aqui ao lado.
CP: Exceto Rimbaud e Verlaine.
GD: Aperta o coração, pois quando pego a rua Nollet, digo: era este o percurso de Verlaine para ir beber seu absinto. Parece que morou em um apartamento horrível.
CP: Os poetas e o álcool, conhecemos mais.
GD: Um dos maiores poetas franceses, que andava pela rua Nollet. Uma maravilha.
CP: Na casa dos amigos?
GD: Provavelmente.
CP: Enfim, os poetas, sabemos que houve mais etílicos. Bem, terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
C de Cultura
CP: Se se pode abusar um certo tempo do álcool, da cultura não se deve ir além da dose. É até um pouco repugnante. Bem, terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
GD: O que é?
CP: C de Cultura.
GD: Sim, por que não?
CP: Você diz não ser culto. Diz que só lê, só vê filmes ou só olha as coisas para um saber preciso: aquele de que necessita para um trabalho definido, preciso, que está fazendo, mas, ao mesmo tempo, você vai todos os sábados a uma exposição, a um filme do grande campo cultural, tem-se a impressão de que há uma espécie de esforço para a cultura, que você sistematiza e que tem uma prática cultural, ou seja, que você sai, faz um esforço, tende a se cultivar e, entretanto, diz que não é culto. Como explica tal paradoxo? Você não é culto?
GD: Não, quando lhe digo que não me vejo, realmente, como um intelectual, não me vejo como alguém culto por uma razão simples: é que quando vejo alguém culto, fico assustado, não fico tão admirado, admiro certas coisas, outras, não, mas fico assustado. A gente nota alguém culto. É um saber sobretudo assustador. Vemos isso em muitos intelectuais, eles sabem tudo, bem, não sei, sabem tudo, estão a par de tudo, sabem a história da Itália, da Renascença, sabem geografia do Pólo Norte, sabem... podemos fazer uma lista, eles sabem tudo, podem falar de tudo. É abominável. Quando digo que não sou culto, nem intelectual, quero dizer algo bem fácil, é que não tenho saber de reserva. Pelo menos não tenho esse problema. Com minha morte, não se precisará procurar o que tenho para publicar, nada, pois não tenho reserva alguma. Não tenho nada, provisão alguma, nenhum saber de provisão, e tudo o que aprendo, aprendo para certa tarefa, e, feita a tarefa, esqueço. De modo que, se dez anos depois, sou forçado, isso me alegra, se sou forçado a me colocar em algo vizinho ou no mesmo tema, tenho de recomeçar do zero. Exceto em alguns casos raros, pois Spinoza está em meu coração, não o esqueço, é meu coração, não minha cabeça, senão... Por que não admiro essa cultura assustadora? Pessoas que falam...
CP: É erudição ou opinião sobre tudo?
GD: Não é erudição, eles sabem falar, primeiro viajaram, viajaram na História, na Geografia, sabem falar de tudo. Ouvi na TV, é assustador, ouvi nomes, então, como tenho muita admiração, posso dizer, gente como Umberto Eco, é prodigioso, o que quer que lhe digam, pronto, é como se apertassem em um botão, e ele sabe, além disso... Não posso dizer que invejo isso. Fico assustado, mas não invejo. O que é a cultura? Ela consiste em falar muito, não posso me impedir de... sobretudo agora que não dou mais aula, estou aposentado, falar, acho cada vez mais, falar é um pouco sujo. É um pouco sujo, a escrita é limpa. Escrever é limpo e falar é sujo. É sujo porque é fazer charme. Nunca suportei colóquios, estive em alguns quando era jovem, mas nunca suportei colóquios. Não viajo. Por que não? Porque... os intelectuais... eu viajaria se... enfim, não. Aliás, não viajaria, minha saúde me proíbe, mas as viagens dos intelectuais são uma palhaçada. Eles não viajam, se deslocam para falar, partem de um lugar onde falam e vão para outro para falar. E, mesmo no almoço, eles vão falar com os intelectuais do lugar. Não vão parar de falar. Não suporto falar, falar, falar, não suporto. Como me parece que a cultura está muito ligada à fala. Nesse sentido, odeio a cultura, não consigo suportá-la.
CP: Voltaremos a falar disso, a escrita limpa, a fala suja, pois você foi um grande professor e a solução...
GD: É diferente.
CP: Voltaremos a isso. A letra P está ligada a seu trabalho de professor. Falaremos da sedução. Queria voltar a algo que você evitou, que é seu esforço, a disciplina que você se impõe, mesmo não precisando dela, para ver, por exemplo, nos últimos 15 dias, a exposição de Polcke, no Museu de Arte Moderna. Você vai com freqüência, ou semanalmente, ver um grande filme ou uma exposição de pintura. Você não é erudito, não é culto, não tem admiração por pessoas cultas, como acaba de dizer. A que corresponde tal esforço? É prazer?
GD: Claro, é prazer, enfim, nem sempre, mas penso nessa história de estar à espreita. Não acredito na cultura; acredito, de certo modo, em encontros. E não se têm encontros com pessoas. As pessoas acham que é com pessoas que se têm encontros. É terrível, isso faz parte da cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de colóquios, essa infâmia, mas não se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro um quadro, encontro uma ária de música, uma música, assim entendo o que quer dizer um encontro. Quando as pessoas querem juntar a isso um encontro com elas próprias, com pessoas, não dá certo. Isso não é um encontro. Daí os encontros serem decepcionantes, é uma catástrofe os encontros com pessoas. Como você diz, quando vou, sábado e domingo, ao cinema, etc., não estou certo de ter um encontro, mas parto à espreita. Será que há matéria para encontro, um quadro, um filme, então é formidável. Dou um exemplo, porque, para mim, quando se faz algo, trata-se de sair e de ficar. Ficar na filosofia é também como sair da filosofia? Mas sair da filosofia não quer dizer fazer outra coisa, por isso é preciso sair permanecendo dentro. Não é fazer outra coisa, escrever um romance, primeiro eu seria incapaz, e mesmo se fosse capaz, isso não me diria nada. Quero sair da filosofia pela filosofia. É isso o que me interessa.
CP: O que isso quer dizer?
GD: Dou um exemplo, como isso é para depois de minha morte, posso deixar de ser modesto. Acabo de escrever um livro sobre um grande filósofo chamado Leibniz e insistindo em uma noção que me parece importante nele, mas que é muito importante para mim: a noção de dobra. Considero que fiz um livro de filosofia sobre essa noção, um pouco estranha, de dobra. O que me acontece depois? Recebo cartas, como sempre, há cartas insignificantes, mesmo se são encantadoras e calorosas, e me toquem muito. São cartas que me dizem, muito bem... são cartas de intelectuais que gostaram ou não do livro. E então recebo duas cartas, dois tipos de cartas, em que esfrego os olhos... Há cartas de pessoas que dizem: “Mas sua história de dobra, somos nós”. E percebo que são pessoas que fazem parte de uma associação que agrupa 400 pessoas na França, hoje, e deve crescer. É a associação de dobradores de papéis, eles têm uma revista, me enviam a revista e dizem: “Concordamos totalmente, o que você faz é o que fazemos”. Digo para mim: isso eu ganhei. Recebo outra carta, e falam da mesma maneira e dizem: “A dobra somos nós”. É uma maravilha. Primeiro isso lembra Platão, porque em Platão... os filósofos, para mim, não são pessoas abstratas, são grandes escritores, grandes autores bem concretos. Em Platão há uma história que me enche de alegria, e está ligada ao início da filosofia, voltaremos a isso depois. O tema de Platão é: ele dá uma definição, por exemplo, o que é o político? O político é o pastor dos homens, e sobre isso há muita gente que diz: o político somos nós, por exemplo, o pastor chega e diz: visto os homens, logo sou o verdadeiro pastor dos homens. O açougueiro diz: alimento os homens, sou o pastor dos homens. Os rivais chegam... Tive esta experiência, os dobradores de papéis chegam e dizem: a dobra somos nós. Os outros, que me enviaram o mesmo tipo de carta, é incrível, foram os surfistas. À primeira vista não há relação alguma com os dobradores de papéis. Os surfistas dizem: “concordamos totalmente, pois, o que fazemos? Estamos sempre nos insinuando nas dobras da natureza. Para nós, a natureza é um conjunto de dobras móveis. Nós nos insinuamos na dobra da onda, habitar a dobra da onda é a nossa tarefa”. Habitar a dobra da onda e, com efeito, eles falam disso de modo admirável. Eles pensam, não se contentam em surfar, eles pensam o que fazem. Voltaremos a falar disto se chegarmos ao esporte [sport], ao S...
CP: Está longe. Partimos do encontro, são encontros, os dobradores de papéis?
GD: São encontros. Quando digo sair da filosofia pela filosofia... Sempre me aconteceu isso, são encontros, encontrei os dobradores de papéis, não preciso vê-los, aliás, ficaríamos decepcionados, provavelmente, eu ficaria, e eles ainda mais. Não preciso vê-los, mas tive um encontro com o surfe, com os dobradores de papéis, literalmente, saí da filosofia pela filosofia, é isso um encontro. Acho que os encontros... quando vou ver uma exposição, estou à espreita, em busca de um quadro que me toque, de um quadro que me comova, quando vou ao cinema, não vou ao teatro, o teatro é longo demais, disciplinado demais, é demais. E não me parece uma arte... a não ser Bob Wilson e Carmelo Bene. Não acho que o teatro seja voltado para nossa época, exceto nesses casos extremos. Mas ficar quatro horas sentado em uma poltrona ruim, primeiro por motivos de saúde, isso liquida o teatro para mim. Uma exposição de pintura, ou o cinema... Sempre tenho a impressão que posso ter o encontro com uma idéia.
CP: Mas o filme, por mera distração, não existe?
GD: Isso não é cultura.
CP: Não é cultura, mas não há distração?
GD: Minha distração é...
CP: Tudo está em seu trabalho.
GD: Não é um trabalho, é a espreita, estou à espreita de algo que passa dizendo para mim... isso me perturba. É muito divertido.
CP: Mas não é Eddie Murphy que vai te perturbar?
GD: Não é...?
CP: Eddie Murphy é um...
GD: Quem é?
CP: Um ator cômico americano, cujos últimos filmes são verdadeiros sucessos. Nunca vai ver...?
GD: Não conheço. Só vi Benny Hill na TV. Benny Hill me interessa, não escolho, necessariamente, coisas muito boas, tenho razões para me interessar.
CP: Mas quando sai, é para um encontro?
GD: Quando saio, se não há idéia para tirar daí, se não digo: havia uma idéia... O que é um grande cineasta? Vale também para cineastas, o que me toca na beleza, por exemplo, um grande como Minnelli ou como Losey, o que me toca neles? Eles são perseguidos por idéias, uma idéia...
CP: Está queimando a letra I.
GD: Idéia...
CP: Está queimando a letra I, pare logo.
GD: Paramos aí, mas é isso o que me parece ser um encontro. Temos encontros com coisas, antes de os ter com pessoas.
CP: Nesse momento, para falar de um período preciso, que é o do momento, você tem muitos encontros?
GD: Acabo de dizer: os dobradores, os surfistas, o que mais quer? Não são encontros com intelectuais. Ou então, se encontro um intelectual é por outras razões, não porque gosto dele, é por aquilo que ele faz, seu trabalho atual, seu charme, tudo isso. Temos encontros com o charme, com o trabalho das pessoas, e não com as pessoas, não dou a mínima para elas.
CP: Além disso eles podem roçar, como os gatos?
GD: Se só tiverem isso, o roçar, o latido, é terrível.
CP: Retomamos os períodos ricos e os períodos pobres da cultura. Você acha que não estamos em um período tão rico, vejo você sempre irritado diante da TV, dos programas literários, que não citaremos, embora no momento em que isso for exibido os nomes serão outros, acha que é um período rico ou um período pobre, o que vivemos?
GD: É pobre, e, ao mesmo tempo, não é angustiante. Me faz rir. Na minha idade, digo para mim: não é a primeira vez que há períodos pobres. Digo: o que vivi desde que tenho idade para me entusiasmar um pouco. Vivi a Liberação. A Liberação foi um dos períodos mais ricos que se possa imaginar. Descobria-se ou redescobria-se tudo, na Liberação. Tinha havido a guerra, etc. Não era pouco. Descobria-se tudo: o romance americano, Kafka, havia uma espécie de mundo da descoberta, havia Sartre, não se pode imaginar o que foi, intelectualmente, o que se descobria ou redescobria em pintura, etc.
CP: No cinema?
GD: É preciso entender coisas como a grande polêmica: deve-se queimar Kafka? É inimaginável, hoje parece um pouco infantil, mas era uma atmosfera criadora. Então conheci o antes de 68, que foi um período muito rico até depois de 68, enquanto que, nesse entremeio havia períodos pobres. São normais, períodos pobres. Não é a pobreza que é incômoda, é a insolência ou a impudência daqueles que ocupam os períodos pobres. Eles são mais maldosos do que as pessoas geniais que se animam nos períodos ricos.
CP: São geniais ou obedientes, pois se fala da polêmica sobre Kafka na Liberação... Vi fulano de tal dizer, contente e rindo, que nunca havia lido Kafka.
GD: Claro, são contentes, quanto mais bobos, mais contentes. São os que consideram, voltamos a isso, que literatura é contar uma história pessoal. Se se acha isso, não é preciso ler Kafka. Não há necessidade de se ler muita coisa, pois se se tem uma escrita bonitinha, se é, por natureza, igual a Kafka. Não é trabalho. Como te explicar? Para falar de coisas mais sérias que esses tolos: fui ver, há pouco tempo, um filme...
CP: De Paradjanov.
GD: Não, esse é admirável, mas um filme emocionante, de um russo... que fez seu filme há trinta anos, e ele só passou agora.
CP: La commissaire?
GD: La commissaire. Entendi algo que me pareceu emocionante, o filme era muito bom, perfeito, mas eu pensava, com terror ou com uma espécie de compaixão, que era um filme como os russos faziam antes da guerra.
CP: Do tempo de Eisenstein?
GD: Do tempo de Eisenstein, de Dovjenko, estava tudo ali: a montagem paralela, sublime, etc., como se nada tivesse acontecido desde a guerra, como se nada tivesse acontecido no cinema. Dizia para mim: é forçoso, o filme é bom, mas estranho.
CP: Não muito bom.
GD: Por isso não era bom. Era alguém que trabalhava tão sozinho que... filmava como há vinte anos. Não que fosse ruim, era muito bom, prodigioso, há vinte anos... E tudo o que havia acontecido depois, ele não soubera, crescera em um deserto, é terrível, atravessar um deserto não é grande coisa, não é atravessar um período de deserto. O terrível é nascer nele, crescer em um deserto, é horrível, suponho, pois deve-se ter uma impressão de solidão.
CP: Para os que têm 18 anos agora?
GD: Sim, sobretudo porque... é esse o problema nos períodos pobres. Quando as coisas desaparecem ninguém se dá conta, por uma razão simples, quando alguma coisa desaparece, ela não faz falta. O período staliniano fez desaparecer a literatura russa, mas os russos não se deram conta, o grosso dos russos, o conjunto dos russos não se deu conta, uma literatura que foi perturbadora em todo o século 19, desaparece. Dizem: “agora há os dissidentes, etc.”, mas no âmbito do povo, do povo russo, sua literatura, sua pintura desapareceram, e ninguém se deu conta. Para se dar conta do que acontece hoje, há, é claro, novos jovens que são, com certeza, geniais. Suponhamos, a expressão não é boa, os novos Beckett de hoje...
CP: Tive medo, pensei que fosse dizer os Novos Filósofos.
GD: Mas os novos Beckett hoje, suponhamos que não sejam publicados. Afinal, por pouco Beckett não foi publicado. É evidente que não faltaria nada. Por definição, um grande autor ou um gênio é alguém que faz algo novo, se esse novo não aparece, isso não incomoda, não faz falta a ninguém, já que não se tinha idéia disso. Se Proust, Kafka não tivessem sido publicados, não se pode dizer que Kafka faria falta. Se o outro tivesse queimado toda a obra de Kafka, ninguém poderia dizer: Ah, como faz falta! Pois não se teria idéia do que desapareceu. Se os novos Beckett são impedidos de ser publicados pelo sistema atual da edição, não se poderá dizer: Ah, como fazem falta! Ouvi uma declaração, que talvez seja a mais descarada que já ouvi em minha vida. Não ouso dizer quem. É alguém ligado ao ramo editorial que, em um jornal, atreveu-se a declarar: “Hoje não arriscamos mais cometer os erros da Gallimard...”
CP: No tempo de Proust?
GD: Recusando Proust, pois com os meios que se tem hoje...
CP: Os caçadores de cabeças...
GD: Acredita-se que se têm, hoje, os meios para encontrar os novos Proust, e os novos Beckett. Significa que se teria um contador Geiger e o novo Beckett, ou seja, alguém perfeitamente inimaginável, já que não se sabe o que ele faria de novo, ele emitiria um som...
CP: Se o passassem sobre sua cabeça?
GD: O que define a crise hoje, pois há todas essas bobagens? Vejo a crise hoje ligada a três coisas, mas ela não durará, sou muito otimista, o que define um período de deserto é, primeiramente, que os jornalistas conquistaram a forma-livro. Eles sempre escreveram, acho bom que escrevam. Mas quando começaram a escrever livros, eles se deram conta de que passavam a outra forma, que não era a mesma coisa que escrever seu artigo.
CP: Antes os escritores é que eram os jornalistas. Mallarmé podia fazer jornalismo. O inverso não aconteceu.
GD: Agora é o inverso, o jornalista como jornalista conquistou a forma-livro, acha normal escrever um livro, como se fosse só um artigo. Isso não é bom. A segunda razão é que se generalizou a idéia de que qualquer um pode escrever, pois a escrita é vista como uma historinha de cada um, contada a partir dos arquivos de família, sejam eles constituídos de anotações ou guardados na memória. Todo mundo teve uma história de amor, todo mundo teve uma avó doente, uma mãe que morria de modo terrível. Dizem: isso dá um romance. Mas isso não dá um romance de modo algum... A terceira razão é que, os verdadeiros clientes mudaram, e percebe-se isso, exceto as pessoas... Vocês estão a par, os clientes mudaram, quero dizer, quem são os clientes da televisão? Não são mais os ouvintes, são os anunciantes. São eles os verdadeiros clientes. Os ouvintes têm o que os anunciantes querem.
CP: Os telespectadores. Qual é a terceira razão?
GD: Os anunciantes são os verdadeiros clientes, eu dizia, na edição há um risco de que os verdadeiros clientes dos editores não sejam os leitores em potencial, que sejam os distribuidores, quando eles forem, realmente, os clientes dos editores, o que acontecerá? O que interessa aos distribuidores é a rotação rápida, quer dizer, coisas de grandes mercados de rápida rotação, regime do best-seller, etc.; ou seja, que toda a literatura, se ouso dizer, à la Beckett, toda a literatura criadora será esmagada por natureza.
CP: Isso já existe, pré-formam-se as necessidades de um público.
GD: Sim, mas é isso que define o período de seca, modelo Pivot. É a nulidade, é a literatura, é o desaparecimento de qualquer crítica em nome da promoção comercial, mas quando digo: não é grave, quero dizer, é evidente que haverá circuitos paralelos, ou um circuito onde haverá um mercado negro, etc., não é possível que um povo viva... A Rússia perdeu sua literatura, ela vai reconquistá-la, tudo se ajeita, os períodos ricos sucedem aos períodos pobres. Ai dos pobres!
CP: Ai dos pobres? Sobre essa idéia de mercado paralelo ou negro, já faz muito tempo que os sujeitos são pré-formados, ou seja, um ano vê-se, claramente, nos livros publicados, a guerra, no ano seguinte é a morte dos pais, no outro é a ligação com a natureza, mas nada parece se formar. Como isso ressurge? Já viu ressurgir um período rico de um pobre?
GD: Já.
CP: Você assistiu?
GD: Sim, depois da Liberação, a coisa não ia bem, e então houve 68. Entre o grande período criador da Liberação e o início da Nouvelle Vague...
CP: Quando foi? Em 60?
GD: 60, e mesmo antes. Entre 60 e 72 houve, de novo, um período rico. E isso se reformou em... É um pouco o que diz Nietzsche, alguém lança uma flecha, uma flecha no espaço, ou então um período, uma coletividade lança uma flecha e depois ela cai, depois alguém a pega e a reenvia para outro lugar. A criação funciona assim, a literatura passa sobre desertos.
D de Desejo
CP: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo. Primeira lição: Só se pode desejar em um conjunto. Então, sempre se deseja um todo. Vamos passar a D. Para D, preciso de meus papéis, pois vou ler o que há no Petit Larousse Illustré, em “Deleuze”, que também se escreve com D. Lê-se: "Deleuze, Gilles, filósofo francês, nascido em Paris, em 1925".
GD: Talvez hoje esteja no Larousse.
CP: Hoje, estamos em 1988.
GD: Eles mudam todo ano.
CP: “Com Félix Guattari, ele mostra a importância do desejo e seu aspecto revolucionário frente a toda instituição, até mesmo psicanalítica”. E indicam a obra que demonstra tudo isso: O anti-Édipo, em 1972. Como você é, aos olhos de todos, o filósofo do desejo, eu gostaria que falássemos do desejo. O que era o desejo? Vamos colocar a questão do modo mais simples: quando O anti-Édipo...
GD: Não era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso, mesmo naquele momento, ou seja, as pessoas mais encantadoras que eram... foi uma grande ambigüidade, um grande mal-entendido, um pequeno mal-entendido. Queríamos dizer uma coisa bem simples. Tínhamos uma grande ambição, a saber, que até esse livro, quando se faz um livro é porque se pretende dizer algo novo. Achávamos que as pessoas antes de nós não tinham entendido bem o que era o desejo, ou seja, fazíamos nossa tarefa de filósofo, pretendíamos propor um novo conceito de desejo. As pessoas, quando não fazem filosofia, não devem crer que é um conceito muito abstrato, ao contrário, ele remete a coisas bem simples, concretas. Veremos isso. Não há conceito filosófico que não remeta a determinações não filosóficas, é simples, é bem concreto. Queríamos dizer a coisa mais simples do mundo: que até agora vocês falaram abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que é, supostamente, objeto de seu desejo. Então podem dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e aquilo. E nós dizíamos algo realmente simples: vocês nunca desejam alguém ou algo, desejam sempre um conjunto. Não é complicado. Nossa questão era: qual é a natureza das relações entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis? Quero dizer, não desejo uma mulher, tenho vergonha de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e é bonito em Proust: não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher, paisagem que posso não conhecer, que pressinto e enquanto não tiver desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja, meu desejo não terminará, ficará insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas é algo bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier, é evidente que não deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida dela, que ela vai organizar o desejo em relação não apenas com uma paisagem, mas com pessoas que são suas amigas, ou que não são suas amigas, com sua profissão, etc. Nunca desejo algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto, desejo em um conjunto. Podemos voltar, são fatos, ao que dizíamos há pouco sobre o álcool, beber. Beber nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando, ou beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar. Não há desejo que não corra para um agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo, diria: é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol...
CP: De uma mulher.
GD: De uma rua. É isso. O agenciamento de uma mulher, de uma paisagem.
CP: De uma cor...
GD: De uma cor, é isso um desejo. É construir um agenciamento, construir uma região, é realmente agenciar. O desejo é construtivismo. O anti-Édipo, que tentava...
CP: Espere, eu queria...
GD: Sim?
CP: É por ser um agenciamento, que você precisou, naquele momento, ser dois para escrever por ser em um conjunto, que precisou de Félix, que surgiu em sua vida de escritor?
GD: Félix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade, sobre a relação da filosofia com algo que concerne à amizade, mas, com certeza, com Félix, fizemos um agenciamento. Há agenciamentos solitários, e há agenciamentos a dois. O que fizemos com Félix foi um agenciamento a dois, onde algo passava entre os dois, ou seja, são fenômenos físicos, é como uma diferença, para que um acontecimento aconteça, é preciso uma diferença de potencial, para que haja uma diferença de potencial precisa-se de dois níveis. Então algo se passa, um raio passa, ou não, um riachinho... É do campo do desejo. Mas um desejo é isso, é construir. Ora, cada um de nós passa seu tempo construindo, cada vez que alguém diz: desejo isso, quer dizer que ele está construindo um agenciamento, nada mais, o desejo não é nada mais.
CP: É um acaso se... porque o desejo é sentido, enfim, existe em um conjunto ou em um agenciamento, que O anti-Édipo, onde você começa a falar do desejo, é o primeiro livro que você escreve com outra pessoa, com Félix Guattari?
GD: Não, você tem razão, era preciso entrar nesse agenciamento novo para nós, escrever a dois, que nós dois não vivíamos da mesma maneira, para que algo acontecesse, ou seja, e esse algo era, finalmente, uma hostilidade, uma reação contra as concepções dominantes do desejo, as concepções psicanalíticas. Era preciso ser dois, foi preciso Félix, vindo da psicanálise, eu me interessando por esses temas, era preciso tudo isso para dizermos que havia lugar para fazer uma concepção construtiva, construtivista do desejo.
CP: Você poderia definir, de modo sucinto, como vê a diferença entre o construtivismo e a interpretação analítica?
GD: Acho que é bem simples. Nossa oposição à psicanálise é múltipla, mas quanto ao problema do desejo, é... é que os psicanalistas falam do desejo como os padres. Não é a única aproximação, os psicanalistas são padres. De que forma falam do desejo? Falam como um grande lamento da castração. A castração é pior que o pecado original. É uma espécie de maledicência sobre o desejo, que é assustadora. O que tentamos fazer em O anti-Édipo? Acho que há três pontos, que se opõem diretamente à psicanálise. Esses três pontos são... isso por meu lado, acho que Félix Guattari também não, não temos nada para mudar nesses três pontos. Estamos persuadidos, achamos em todo caso, que o inconsciente não é um teatro, não é um lugar onde há Édipo e Hamlet que representam sempre suas cenas. Não é um teatro, é uma fábrica, é produção. O inconsciente produz. Não pára de produzir. Funciona como uma fábrica. É o contrário da visão psicanalítica do inconsciente como teatro, onde sempre se agita um Hamlet, ou um Édipo, ao infinito. Nosso segundo tema é que o delírio, que é muito ligado ao desejo, desejar é delirar, de certa forma, mas se olhar um delírio, qualquer que seja ele, se olhar de perto, se ouvir o delírio que for, não tem nada a ver com o que a psicanálise reteve dele, ou seja, não se delira sobre seu pai e sua mãe, delira-se sobre algo bem diferente, é aí que está o segredo do delírio, delira-se sobre o mundo inteiro, delira-se sobre a história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos...
CP: ... o clima.
GD: ... as raças, os climas, é em cima disso que se delira. O mundo do delírio é: “Sou um bicho, um negro!”, Rimbaud. É: onde estão minhas tribos? Como dispor minhas tribos? Sobreviver no deserto, etc. O deserto é... O delírio é geográfico-político. E a psicanálise reduz isso a determinações familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois de tantos anos, depois de O anti-Édipo, digo: a psicanálise nunca entendeu nada do fenômeno do delírio. Delira-se o mundo, e não sua pequena família. Por isso que... Tudo isso se mistura. Eu dizia: a literatura não é um caso privado de alguém, é a mesma coisa, o delírio não é sobre o pai e a mãe. O terceiro ponto... Significa isso, o desejo se estabelece sempre, constrói agenciamentos, se estabelece em agenciamentos, põe sempre em jogo vários fatores. E a psicanálise nos reduz sempre a um único fator, e sempre o mesmo, ora o pai, ora a mãe, ora não sei o que, ora o falo, etc. Ela ignora tudo o que é múltiplo, ignora o construtivismo, ou seja, agenciamentos. Dou um exemplo: falávamos de animal, há pouco. Para a psicanálise, o animal é uma imagem do pai. Um cavalo é uma imagem do pai. É ignorar o mundo! Penso no pequeno Hans. O pequeno Hans é uma criança sobre a qual Freud dá sua opinião, ele assiste um cavalo que cai na rua, e o charreteiro que lhe dá chicotadas, e o cavalo que dá coices para todos os lados. Antes do carro, era um espetáculo comum nas ruas, devia ser uma grande coisa para uma criança. A primeira vez que um garoto via um cavalo caído na rua e que um cocheiro meio bêbado tentava levantá-lo com chicotadas, devia ser uma emoção, era a chegada da rua, a chegada na rua, o acontecimento da rua, sangrento, tudo isso... E então ouvem-se os psicanalistas, falar, enfim, imagem de pai, etc., mas é na cabeça deles que a coisa não vai bem. O desejo foi movido por um cavalo que cai e é batido na rua, um cavalo morre na rua, etc. É um agenciamento fantástico para um garoto, é perturbador até o fundo. Outro exemplo, posso dizer... Falávamos de animal. O que é um animal? Mas não há um animal que seria a imagem do pai. Os animais, em geral, andam em matilhas, são matilhas. Há um caso que me alegra muito. É um texto que adoro, de Jung, que rompeu com Freud, depois de uma longa colaboração. Jung conta a Freud que teve um sonho, um sonho de ossuário, sonhou com um ossuário. E Freud não compreende nada, literalmente, ele diz o tempo todo: se sonhou com um osso, é a morte de alguém, quer dizer a morte de alguém. E Jung não pára de lhe dizer: não estou falando de um osso, sonhei com um ossuário... Freud não compreende. Não vê a diferença entre um ossuário e um osso, ou seja, um ossuário são centenas de ossos, são mil, dez mil ossos. Isso é uma multiplicidade, é um agenciamento, é... passeio em um ossuário, o que significa isso? Por onde o desejo passa? Em um agenciamento é sempre um coletivo. Coletivo, construtivismo, etc. É isso o desejo. Onde passa meu desejo entre os mil crânios, os mil ossos? Onde passa meu desejo na matilha? Qual é minha posição na matilha? Sou exterior à matilha? Estou ao lado, dentro, no centro dela? Tudo isso são fenômenos de desejo. É isso o desejo.
CP: Como o O anti-Édipo foi escrito em 72, esse agenciamento coletivo vinha a calhar depois de 68, era toda uma reflexão... daqueles anos e contra a psicanálise, que continuava seu negócio de pequena loja...
GD: Só o fato de dizer: o delírio delira as raças e as tribos, delira os povos, delira a história e a geografia, me parece ter estado de acordo com 68. Ou seja, parece-me ter trazido um pouco de ar são a todo esse ar fechado e malsão dos delírios pseudo-familiais. Vimos que era isso, o desejo. Se começo a delirar, não é para delirar sobre minha infância, aí também, sobre minha história privada. Delira-se... O delírio é cósmico... Delira-se sobre o fim do mundo, delira-se sobre as partículas, os elétrons e não sobre papai-mamãe... é evidente.
CP: Sobre esse agenciamento coletivo do desejo, penso em certos contra-sensos. Lembro-me que em Vincennes, em 72, na faculdade, havia pessoas que punham em prática esse desejo e isso acabava em amores coletivos, não tinham compreendido bem. Houve muitos loucos em Vincennes, como vocês partiam de uma esquizo-análise para combater a psicanálise, todo mundo achava que era legal ser louco, ser esquizo. Víamos cenas inverossímeis entre os estudantes. Queria que contasse casos engraçados ou não desses contra-sensos sobre o desejo.
GD: Eu poderia falar dos contra-sensos abstratamente. Consistiam em duas coisas, havia dois casos, que dá no mesmo. Havia os que pensavam que o desejo era o espontaneísmo, e havia todo tipo de movimentos espontâneos, o espontaneísmo.
CP: Os célebres maos-spontex...
GD: E os outros que pensavam que o desejo era a festa. Para nós, não era nem um nem outro, mas não tinha importância, pois, de qualquer modo, havia agenciamentos que aconteciam, havia coisas que mesmo os loucos... havia tantos, de todos os tipos. Fazia parte do que acontecia naquele momento, em Vincennes. Mas os loucos tinham sua disciplina, tinham sua maneira de... faziam seus discursos, suas intervenções, entravam em um agenciamento, tinham seu agenciamento, mas entravam em agenciamentos. Tinham uma espécie de astúcia, de compreensão, de grande benevolência, os loucos. Se quiser, na prática, eram séries de agenciamentos que se faziam e desfaziam. Na teoria, o contra-senso era dizer: o desejo é a espontaneidade. De modo que éramos chamados de espontaneístas, ou então era a festa, mas não era isso. Era... a filosofia dita do desejo consistia, unicamente, em dizer para as pessoas: não vão ser psicanalizados, nunca interpretem, experimentem agenciamentos, procurem agenciamentos que lhes convenham. O que era um agenciamento? Um agenciamento, para mim, e Félix, não que ele pensasse diferentemente, pois era, talvez... não sei. Para mim, eu manteria que havia quatro componentes de agenciamento. Por alto, quatro, não prefiro quatro a seis... Um agenciamento remetia a estados de coisas, que cada um encontre estados de coisas que lhe convenha. Há pouco, para beber... gosto de um bar, não gosto de outro, alguns preferem certo bar, etc... Isso é um estado de coisas. Nas dimensões do agenciamento, enunciados, tipos de enunciados, e cada um tem seu estilo, há um certo modo de falar, andam juntos, no bar, por exemplo, há amigos, e há uma certa maneira de falar com os amigos, cada bar tem seu estilo. Digo bar, mas vale para qualquer coisa. Um agenciamento comporta estados de coisas e enunciados, estilos de enunciação. É interessante, a História é feita disto, quando aparece um novo tipo de enunciado? Por exemplo, na revolução russa, os enunciados do tipo leninista, quando eles aparecem, como, em que forma? Em 68, quando apareceram os primeiros enunciados ditos de 68? É bem complexo. Todo agenciamento implica estilos de enunciação. Implica territórios, cada um com seu território, há territórios. Mesmo numa sala, escolhemos um território. Entro numa sala que não conheço, procuro o território, lugar onde me sentirei melhor. E há processos que devemos chamar de desterritorialização, o modo como saímos do território. Um agenciamento tem quatro dimensões: estados de coisas, enunciações, territórios, movimentos de desterritorialização. E é aí que o desejo corre...
CP: Você não se sente responsável pelas pessoas que tomaram drogas? Ou, lendo muito ao pé da letra O anti-Édipo, não é como Catão, que incita os jovens a fazer bobagens?
GD: Sentimo-nos responsáveis por tudo, se algo dá errado.
CP: E os efeitos de O anti-Édipo?
GD: Sempre me esforcei para que desse certo. Em todo caso, nunca, acho, é minha única honra, nunca me fiz de esperto com essas coisas, nunca disse a um estudante: é isso, drogue-se você tem razão. Sempre fiz o que pude para que ele saísse dessa, porque sou muito sensível à coisa minúscula que de repente faz com que tudo vire trapo. Que ele beba, muito bem... Ao mesmo tempo, nunca pude criticar as pessoas, não gosto de criticá-las. Acho que se deve ficar atento para o ponto em que a coisa não funciona mais. Que bebam, se droguem, o que quiserem, não somos policiais, nem pais, não sou eu quem deve impedi-los ou ... mas fazer tudo para que não virem trapos. No momento em que há risco, eu não suporto. Suporto bem alguém que se droga, mas alguém que se droga de tal modo que, não sei, de modo selvagem, de modo que digo para mim: pronto, ele vai se ferrar, não suporto. Sobretudo o caso de um jovem, não suporto um jovem que se ferra, não é suportável. Um velho que se ferra, que se suicida, ele teve sua vida, mas um jovem que se ferra por besteira, por imprudência, porque bebeu demais... Sempre fiquei dividido entre a impossibilidade de criticar alguém e o desejo absoluto, a recusa absoluta de que ele vire trapo. É um desfiladeiro estreito, não posso dizer que há princípios, a gente sai fora como pode, a cada vez. É verdade que o papel das pessoas, nesse momento, é de tentar salvar os garotos, o quanto se pode. E salvá-los não significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de virar trapo. É só o que quero.
CP: Mas sobre os efeitos de O anti-Édipo, houve efeitos?
GD: Foi impedir que eles virassem trapos, que naquele momento... que um cara que desenvolvia... um início de esquizofrenia fosse colocado em boas condições, não fosse jogado num hospital repressivo, tudo isso... Ou então que alguém que não suportava mais, um alcoólatra, onde ia mal, fazer com que ele parasse...
CP: Porque era um livro revolucionário, na medida em que parecia, para os inimigos desse livro, e para os psicanalistas, uma apologia da permissividade, e dizer que tudo era desejo...
GD: De forma alguma... Esse livro, ou seja, quando se lê esse livro, ele sempre teve uma prudência, me parece, extrema. A lição era: não se tornem trapos. Quando nos opúnhamos..., não paramos de nos opor ao processo esquizofrênico como o que ocorre num hospital, e para nós, o terror era produzir uma criatura de hospital. Tudo, menos isso! E quase diria que louvar o aspecto de valor da “viagem”, daquilo que, naquele momento, os anti-psiquiatras chamavam de viagem ou processo esquizofrênico, era um modo de evitar, de conjurar a produção de trapos de hospital, a produção dos esquizofrênicos, a fabricação de esquizofrênicos.
CP: Você acha, para terminar com O anti-Édipo, que há ainda efeitos desse livro, 16 anos depois?
GD: Sim, pois é um bom livro, pois há uma concepção do inconsciente. É o único caso em que houve uma concepção do inconsciente desse tipo, sobre os dois ou três pontos: as multiplicidades do inconsciente, o delírio como delírio-mundo, e não delírio-família, o delírio cósmico, das raças, das tribos, isso é bom. O inconsciente como máquina, como fábrica e não como teatro. Não tenho nada a mudar nesses três pontos, que continuam absolutamente novos, pois toda a psicanálise se reconstituiu. Para mim, espero, é um livro que será redescoberto, talvez. Rezo para que o redescubram.
E de Enfance [Infância]
CP: E de Enfance [Infância]. Lembranças distantes. Os primeiros anos de vida, a crise, a Frente Popular e a chegada da guerra.
CP: E de Enfance [Infância]. Você costuma dizer que começou sua vida na Av. Wagram, pois nasceu no 17º distrito de Paris. Depois, foi morar com sua mãe na R. Daubigny, no 17º distrito, e, agora, mora perto da Place Clichy, bairro mais pobre, também no 17º, R. de Bizerte. Como estará morto quando este filme for exibido, posso dar o seu endereço. Primeiro, quero saber se a sua família é o que chamamos de burguesa e de direita.
GD: Eu sempre digo onde moro quando me fazem a pergunta. Houve de fato uma queda. Comecei por cima, pelo alto do 17°, um bairro muito bonito. E durante a minha infância, vivi a crise antes da guerra. Uma das lembranças que tenho da infância durante a crise era a quantidade de apartamentos vazios. As pessoas estavam sem dinheiro mesmo e havia apartamentos para alugar por toda a cidade. Meus pais tiveram de deixar o apartamento chique do alto do 17º, perto do Arco do Triunfo, e desceram, mas ainda era bom, perto do Boulevard Malesherbes. Era numa ruazinha, a R. Daubigny. Depois, quando eu voltei para Paris, já mais velho, fui para a fronteira do 17º distrito, que é mais proletário, na R. Nollet e R. Toussaint. Perto da casa onde morou Verlaine, que também não era rico. Foi mesmo uma queda. Dentro de alguns anos, não sei onde estarei. Mas não deve melhorar em nada.
CP: Em Saint-Quen, talvez?
GD: É, pode ser. Mas a minha família era uma família burguesa. Não era de direita, ou melhor era, sim, de esquerda é que não era. Preciso me situar, pois não tenho lembranças de infância. Não tenho lembranças porque a memória é uma faculdade que deve afastar o passado em vez de acioná-lo. É preciso muita memória para rejeitar o passado, porque não é um arquivo. Então, tenho esta lembrança: havia aquelas placas nos apartamentos onde estava escrito “Aluga-se”. Eu vivi muito aquela crise.
CP: Que anos eram estes?
GD: Não lembro os anos. Não sei, devia ser entre... Entre 1930-1935. 1930... Não me lembro mais.
CP: Você tinha 10 anos.
GD: As pessoas não tinham dinheiro. Nasci em 1925. E me lembro da preocupação com o dinheiro. Foi o que me impediu de ir no colégio dos jesuítas, pois meus pais não tinham mais dinheiro. Eu estava destinado aos jesuítas e acabei no liceu por causa da crise. Mas o outro aspecto... Deixe-me ver... Havia outro aspecto da crise, mas não sei mais. Não sei mais, mas não importa. E então, houve a guerra. Quando digo que era uma família de direita... Eu me lembro muito bem, eles não se recuperaram e é por isso que entendo melhor alguns patrões de hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisa inacreditável. Talvez muitos patrões não tenham vivido isso, mas deve restar alguns que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou marcada como a imagem do caos, pior do que Maio de 68. E me lembro de que toda esta burguesia de direita percebia o sintoma. Todos eram anti-semitas e Leon Blum foi uma coisa impressionante. O ódio que Mendès-France carregou nas costas não foi nada perto do que Blum carregou. Pois ele foi de fato o primeiro. A reação causada pelas férias remuneradas foi impressionante!
CP: O primeiro judeu de esquerda conhecido?
GD: Sim, eu diria que Blum foi pior do que o diabo. Não é possível entender como Pétain tomou o poder daquela forma sem conhecer o nível de anti-semitismo da França e da burguesia francesa naquele momento. O ódio das medidas sociais tomadas pelo governo de Leon Blum. Foi impressionante! Imagine meu pai, que era meio “Cruz de Fogo”... Isso era comum naquela época! Portanto, era uma família de direita inculta. Havia uma burguesia culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta. Mas meu pai era, como se costumava chamar, um homem muito distinto, afável, distinto e encantador. Eu ficava espantado com esta violência contra Blum. Ele vinha da guerra de 1914. Tudo se encaixa. É um mundo fácil de ser entendido em geral, mas que não se pode imaginar em detalhes. Os combatentes da Guerra de 1914, o anti-semitismo, o regime da crise, a própria crise... Que crise era essa que ninguém entendia?
CP: Qual era a profissão dele?
GD: Era engenheiro. Mas era um engenheiro muito especial. Tenho a lembrança de duas atividades dele. Não sei se foi criação dele ou se trabalhava com isso, mas era um produto para impermeabilizar os tetos. Impermeabilização dos tetos. Mas com a crise, ele ficou com apenas um operário, um italiano. Ainda mais um estrangeiro... As coisas iam muito mal. O negócio acabou falindo e ele foi parar em uma indústria mais “séria” que fabricava balões. Aqueles balões... Aquelas coisas... As aeronaves. Entende, não é? Mas foi num momento em que não serviam mais para nada. Tanto que, em 1939, voavam pelos céus de Paris para frear aviões alemães. Eram como pombos voadores. Quando os alemães se apoderaram da fábrica em que meu pai trabalhava, eles foram bem mais sensatos e a transformaram em fábrica de botes infláveis, que teriam mais serventia. Mas não fizeram balões, nem zepelins. Então, eu vi o nascimento da guerra. Eu devia ter uns 14 anos e me lembro muito bem das pessoas... elas sabiam muito bem que tinham ganho um ano com Munique; um ano e alguns meses, mas a guerra estava aí. A guerra se sucedeu à crise. Era uma atmosfera muito tensa em que as pessoas mais velhas do que eu devem ter vivido momentos terríveis. Quando os alemães chegaram de fato, devastaram a Bélgica, entraram na França e tudo o mais. Eu estava em Deauville, porque era o lugar em que meus pais sempre passavam as férias de verão. Eles já tinham voltado. Foram e nos deixaram lá, o que era impensável, pois tínhamos uma mãe que nunca havia nos deixado, etc... Ficamos em uma pensão; nossa mãe tinha nos deixado com uma senhora que era a dona desta pensão. E eu fui à escola durante um ano em Deauville, em um hotel que foi transformado em liceu. E os alemães estavam chegando. Não, estou confundindo tudo. Isso foi no início da guerra. De qualquer forma, eu estava em Deauville. Quando, há pouco, falei das férias remuneradas, eu me lembro que a chegada das férias remuneradas à praia de Deauville foi uma coisa! Para um cineasta, isso poderia virar uma obra-prima, pois era prodigioso ver aquela gente vendo o mar pela primeira vez! Eu vi uma pessoa vendo o mar pela primeira vez na vida e é esplêndido! Era uma menina da região de Limousin que estava conosco e que viu o mar pela primeira vez. Se existe alguma coisa inimaginável quando nunca se o viu, esta coisa é o mar. A gente pode imaginar que seja grandioso, infinito, mas tudo isso perde a força quando se vê o mar. Aquela menina ficou umas quatro ou cinco horas diante do mar, completamente abobalhada, e não se cansava de ver um espetáculo tão sublime, tão grandioso! Então, na praia de Deauville, que sempre tinha sido exclusiva dos burgueses, como se fosse propriedade deles, de repente, chega o povo das férias remuneradas... Pessoas que nunca tinham visto o mar. E foi fantástico. Se o ódio entre as classes tem algum sentido são palavras como as que dizia a minha mãe — que, no entanto, era uma mulher fabulosa —, sobre a impossibilidade de se freqüentar uma praia em que havia gente como aquela. Foi muito duro. Acho que eles, os burgueses, nunca esqueceram. Maio de 68 não foi nada perto disso.
CP: Fale mais do medo que eles tinham.
GD: O medo é de que isso nunca fosse parar. Se davam férias remuneradas aos operários, todos os privilégios burgueses estavam ameaçados. Os locais freqüentados eram como questões de território. Se as empregadas vinham para as praias de Deauville era como se, de repente, voltássemos à era dos dinossauros. Era uma agressão. Pior do que os alemães. Pior do que os tanques alemães chegando na praia! Você entende? Era indescritível!
CP: Era gente de outro mundo.
GD: E isso era apenas um detalhe, mas quanto ao que estava acontecendo nas fábricas? Nunca esqueceram isso. Acho até que este medo é hereditário. Não quero dizer que Maio de 68 não foi nada. É outra história. Mas também não se esqueceram de 68. Enfim... Eu estava lá em Deauville sem meus pais, e com meu irmão. Quando os alemães realmente invadiram, foi aí que deixei de ser bobo. Eu era um rapaz extremamente medíocre na escola, não tinha interesse por nada, a não ser por uma coleção de selos, que era a minha maior atividade e eu era um péssimo aluno. Até que aconteceu comigo o que acontece com muita gente. As pessoas que despertam sempre o são por causa de alguém em algum momento. E no meu caso, neste hotel que virou escola, havia um cara jovem que me pareceu extraordinário porque falava muito bem. Para mim, foi um despertar absoluto. Eu tive a sorte de encontrar este cara que, mais tarde, ficou relativamente conhecido. Primeiro, porque ele tinha um pai famoso e, depois, porque ele foi muito ativo na esquerda, só que bem mais tarde. Ele se chamava Halbwachs. Pierre Halbwachs, filho do sociólogo. Naquela época, ele era muito jovem e tinha uma cara estranha. Era muito magro, muito alto... Na minha lembrança, ele era alto. E ele só tinha um olho. Um olho aberto e o outro fechado. Não tinha nascido assim, mas era assim, como um cíclope. Tinha cabelos muito cacheados, como uma cabra... Aliás, mais do que um carneiro. Quando fazia frio, ele ficava verde, roxo, tinha uma saúde extremamente frágil, tanto que ele foi reformado no exército e colocado como professor durante a guerra para preencher as vagas. Para mim, foi uma revelação. Ele era cheio de entusiasmo. Não sei mais em que ano eu estava, talvez 3º ou 4º ano ginasial, mas ele comunicava aos alunos, ou pelo menos a mim, algo que foi uma reviravolta para mim. Eu estava descobrindo alguma coisa. Ele nos falava de Baudelaire e lia muito bem. E nós nos aproximamos. Claro, ele tinha percebido que me impressionava muito. Eu me lembro que, no inverno, ele me levava para a praia de Deauville. E eu o seguia, colava nele, literalmente. Eu era seu discípulo. Tinha encontrado um mestre. Nós nos sentávamos nas dunas e, em meio ao vento, ao mar, era fantástico, ele me lia Les nourritures terrestres. Ele gritava, pois não havia ninguém na praia no inverno. Ele gritava: “Les nourritures terrestres”, e eu estava sentado ao lado dele, com medo de alguém aparecer. Eu achava tudo aquilo estranho. E ele lia muitas coisas, era muito variado. Ele me fez descobrir Anatole France, Baudelaire, Gide... Acho que estes eram os principais. Eram as suas grandes paixões. E eu fui transformado, absolutamente transformado. Mas logo começaram os comentários sobre aquele homem com aquela figura, aquele seu olho e o menino que estava sempre atrás dele. Iam sempre juntos à praia, etc. A senhora que me hospedava ficou logo preocupada, me chamou, disse que era responsável por mim na falta de meus pais e que queria me alertar sobre certas relações. Eu não entendi nada. Não entendi, pois, se havia uma relação pura, incontestável e aberta, era justamente a nossa. Só depois, eu percebi que consideravam Pierre Halbwachs um pederasta perigoso. Então, eu disse a ele: “Estou chateado, pois a senhora que me hospeda disse...” Eu o chamava de “senhor” e ele me chamava de “você”. “Ela disse que não devo vê-lo, que não é normal, nem correto”. E ele me disse: “Não se preocupe, nenhuma senhora resiste a mim. Vou falar com ela, explicar tudo e ela ficará tranqüila”. Ele tinha me tornado esperto o bastante para me deixar em dúvidas. Eu não estava tranqüilo. Tinha um pressentimento ruim. Achava que a velha senhora não se convenceria. E, de fato, foi um desastre. Ele foi ver a senhora que escreveu imediatamente para meus pais pedindo que me tirassem de lá rápido porque ele era alguém extremamente suspeito. A tentativa dele foi um fracasso total. Mas eis que os alemães chegaram. A guerra estava começando. Os alemães chegaram e meu irmão e eu saímos de bicicleta ao encontro de meus pais que tinham ido para Rochefort. A fábrica tinha se mudado para lá, fugindo-se dos alemães. Fomos de Deauville a Rochefort de bicicleta e ainda me lembro de ter ouvido o famoso discurso infame de Pétain no albergue de uma aldeia. Meu irmão e eu estávamos de bicicleta e, em um cruzamento, quem encontramos? Parecia desenho animado: em um carro, estavam o velho Halbwachs, o filho e um esteta que se chamava Bayer. Eles estavam indo para perto de La Rochelle. Era o destino. Mas estou contando isso só para dizer que, depois de ter reencontrado Halbwachs, eu o conheci bem melhor e não tinha mais admiração por ele. Mas isso me mostrou que foi no momento em que eu o admirei com 14, 15 anos que eu tive razão.
CP: Depois, voltou a Paris, ao Liceu Carnot, com um certo pesar, já que as férias haviam acabado. Neste liceu, teve aulas de Filosofia. Foi nesta época que Merleau-Ponty era professor lá, mas você entrou numa turma em que não havia Merleau-Ponty. Seu professor chamava-se Sr. Viale. Acho que era este o nome, não?
GD: Sim, o Sr. Viale. Tenho dele uma lembrança comovida. Foi por acaso. Houve a distribuição dos alunos... Eu poderia ter tentado passar para a turma de Merleau-Ponty, mas não tentei, não sei por quê. Viale foi... É curioso, porque Halbwachs me fez sentir alguma coisa do que era a Literatura, mas, desde as primeiras aulas de Filosofia, eu soube que era isso que eu faria. Eu me lembro de coisas esparsas, aqui e ali. Em Filosofia, eu me lembro de quando soubemos da chacina de Oradour. Tinha acontecido naquela época. É bom lembrar que eu estava em uma turma de pessoas um pouco politizadas, sensíveis às questões nazistas. Eu estava na turma de Guy Moquet. Eu me lembro disso. Havia uma atmosfera estranha nesta turma. De qualquer forma, lembro da forma como foi anunciado Oradour. Foi um fato marcante entre os rapazes de 17 anos... Não sei com que idade se passava a prova final. Talvez, 17, 18 anos ou 16, 17 anos.
CP: Normalmente, 18 anos.
GD: Sim, me lembro bem. Quanto a Viale, era um professor que falava baixo, já era velho. Eu gostava imensamente dele. De Merleau-Ponty, tenho a lembrança da melancolia. Carnot era um grande liceu no qual havia uma balaustrada ao longo de todo o primeiro andar. E havia o olhar melancólico de Merleau-Ponty que observava as crianças brincando e gritando. Uma grande melancolia. Era como se ele dissesse: “O que estou fazendo aqui?” Enquanto que Viale, de quem eu gostava muito, estava no fim de sua carreira. Eu também me liguei muito a ele. Ficamos muito ligados e, como morávamos perto um do outro, voltávamos sempre juntos. Nós falávamos sem parar. Sabia que eu faria Filosofia ou não faria nada.
CP: Logo nas primeiras aulas?
GD: Sim, sim! Foi como quando eu soube que existiam coisas tão estranhas quanto o que chamavam de conceitos. Para mim, teve o mesmo efeito do que para outros a descoberta de um personagem de ficção. Como fiquei emocionado ao descobrir Monsieur de Charlus! Ou um grande personagem de romance, ou Vautrin. Ou ainda Eugénie Grandet. Quando eu aprendi o que Platão chamava de “idéia”, me parecia ter vida! Era animado! Eu sabia que era isso; que, para mim, era isso.
CP: E você logo se tornou bom aluno? O melhor?
GD: Sim. Aí, eu não tinha mais problemas escolares. Desde Halbwachs, tornei-me bom aluno! Era bom em Letras. Até mesmo em Latim, eu era bom. Eu era um bom aluno. Em Filosofia, um ótimo aluno.
CP: Queria que voltássemos a uma coisa. As turmas não eram politizadas naquela época? Você disse que a sua turma era especial, pois havia Guy Moquet, etc.
GD: Não era possível ser politizado durante a guerra. Certamente havia rapazes de 17, 18 anos que estavam na Resistência. Mas quem estava na Resistência se calava, a menos que fosse um cretino. Não se pode falar em politização. Havia pessoas indiferentes e as favoráveis ao governo de Vichy.
CP: Havia a Ação Francesa?
GD: Não era a Ação Francesa, era muito pior. Eram os “Vichyssois”. Não há comparação com a politização em épocas de paz, já que os elementos realmente ativos eram os resistentes ou jovens com alguma relação com a Resistência. Não tinha nada a ver com politização; era mais secreto.
CP: Mas, em sua turma, havia pessoas simpatizantes? Jovens que simpatizavam com a Resistência?
GD: Sim, posso citar Guy Moquet, que foi morto. Acabou sendo assassinado pelos nazistas um ano depois.
CP: Mas vocês falavam a esse respeito?
GD: Sim, claro. Como eu disse, o aviso, a comunicação imediata de Oradour tinha a ver com comunicação secreta, com o telégrafo, pois a notícia se espalhou e, no mesmo dia, todas as escolas parisienses já sabiam. Saber imediatamente do ocorrido em Oradour foi uma das coisas mais emocionantes para mim.
CP: Para fechar a infância, senão não terminamos nunca, a sua parece ter tido pouca importância para você. Você não fala dela e nem é uma referência. Temos a impressão de que a infância não é importante para você.
GD: Sim, claro. É quase em função de tudo o que acabo de dizer. Acho que a atividade de escrever não tem nada a ver com o problema pessoal de cada um. Não disse que não se deve investir toda a sua alma. A literatura e o ato de escrever têm a ver com a vida. Mas a vida é algo mais do que pessoal. Na literatura, tudo o que traz algo da vida pessoal do escritor é por natureza desagradável. É lamentável, pois o impede de ver, sempre o remete para seu pequeno caso particular. Minha infância nunca foi isso. Não é que eu tenha horror a ela! Mas o que me importa, na verdade, é como já dizíamos: “Há o devir-animal que envolve o homem e o devir-criança”. Acho que escrever é um devir alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos alguma coisa. Escrever é devir. É devir o que bem entender, menos escritor. É fazer tudo o que quiser, menos arquivo. Respeito o arquivo em si. Neste caso, sim, quando é arquivo. Mas ele tem interesse em relação a outra coisa. Se o arquivo existe é justamente porque há uma outra coisa. E, através do arquivo, pode se entender alguma coisinha desta outra coisa. Mas a simples idéia de falar da minha infância — não só porque ela não tem interesse algum — me parece o contrário de toda a Literatura. Se me permite, vou ler uma coisa que já li mil vezes e que todos os escritores já disseram. Mas vi este livro ontem, eu não o conhecia. É de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo ontem.
CP: Ele tem um nome lindo, poderia dizê-lo.
GD: Sim, é Ossip. Nesta frase, ele diz... É o tipo de frase que me transtorna. E o papel do professor é este: comunicar e fazer com que crianças apreciem um texto. Foi o que Halbwachs fez por mim. Ele diz que não entende que alguém como Tolstoi se apaixone por arquivos familiares. Ele continua. “Eu repito: a minha memória não é amor, mas hostilidade. Ela trabalha não para reproduzir, mas para afastar o passado. Para um intelectual de origem medíocre, a memória é inútil. Basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia está feita. Dentre as gerações felizes, onde a epopéia fala através de hexâmetros e crônicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o século, há um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer a minha família? Eu não sei. Era gaga de nascença e, no entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos não a falar, mas a balbuciar. Foi só quando demos ouvidos ao barulho crescente do século e fomos embranquecidos pela espuma de sua crista que adquirimos uma linguagem”. Para mim, isso quer dizer que... Quer dizer de fato que escrever é mostrar a vida. É testemunhar em favor da vida, dos idiotas que estão morrendo. É gaguejar na língua. Fazer literatura apelando para a infância é tornar a Literatura parte de seu caso particular. É fazer literatura barata, são os best-sellers. É realmente uma porcaria. Se não se leva a linguagem até o ponto em que se gagueja — o que não é fácil, pois não basta gaguejar assim — , se não se vai até este ponto. Na Literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite, há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. Os que se interessam pela sua própria infância que se danem e que continuem a fazer a Literatura que eles merecem. Se há alguém que não se interessa por sua própria infância, este alguém é Proust. A tarefa do escritor não é vasculhar os arquivos familiares, não é se interessar por sua própria infância. Ninguém se interessa por isso. Ninguém digno de alguma coisa se interessa por sua infância. A tarefa é outra: devir criança através do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo e restaurar esta infância. Eis as tarefas da Literatura.
CP: E a criança nietzschiana?
GD: Nietzsche, entre outros, sabia disso, assim como Mandelstam sabia. Todos os escritores sabem disso. Mas eu insisto. Não consigo pensar em outra fórmula além desta: escrever é devir, mas não é tornar-se escritor, nem um memorialista. Nada disso. Não é porque vivi uma história de amor que vou escrever um romance. É horrível pensar assim. Não é apenas medíocre, é horrível!
CP: Há uma exceção à regra: Nathalie Sarraute, uma escritora fabulosa, escreveu um livro chamado Infância. Um momento de fraqueza?
GD: Absolutamente! Nathalie Sarraute é uma escritora fabulosa, mas não é um livro sobre a infância dela. É um livro no qual ela testemunha, reinventa...
CP: Banquei o advogado do diabo.
GD: Eu sei, mas é um papel muito perigoso. Ela inventa a infância do mundo. O que interessa a N. Sarraute de sua infância? São algumas fórmulas estereotipadas das quais ela vai tirar maravilhas. Pode ser o que ela fez com as últimas palavras de ... De quem mesmo?
CP: Tchekov.
GD: As últimas palavras de Tchekov. Ela tirou daí. Depois, ela pega de novo uma menina que ouviu alguém dizer: “Como vai?” e vai criar um mundo de linguagem, fazer proliferar a linguagem. Claro que Nathalie Sarraute não se interessa por sua própria infância!
CP: Tudo bem, mas mesmo assim...
GD: Claude Sarraute talvez se interesse, mas Nathalie Sarraute, não.
CP: Claro, claro. Aceito tudo isso. Mas, de alguma forma, foi um treinamento precoce que o levou à Literatura? Você reprimiu a infância e a rejeitou como uma inimiga. Isso foi a partir de que idade? É um treinamento? Por outro lado, a infância sempre volta, mesmo que seja de uma forma revoltante. É preciso treinar quase diariamente? Precisa ter uma disciplina cotidiana?
GD: Isso simplesmente acontece, eu acho. A infância, a infância... Como tudo, é preciso saber separar a infância ruim da boa. O que é interessante? A relação com o pai, a mãe e as lembranças da infância não me parecem interessantes. É interessante e rico para si próprio, mas não para escrever. Há outros aspectos da infância. Falamos há pouco do cavalo que morreu na rua, antes do surgimento do carro. Encontrar a emoção da criança... Na verdade, é “uma” criança. A criança que “eu” fui não quer dizer nada. Mas eu não sou apenas a criança que fui, eu fui “uma” criança entre muitas outras. Eu fui “uma criança qualquer”. E foi assim que eu vi o que era interessante e não como “eu era a tal criança”. “Eu vi um cavalo morrer na rua antes que surgissem os carros”. Não estou falando por mim, mas por aqueles que viram. Muito bem, muito bem... Perfeito. É uma tarefa do tornar-se escritor. Algum fator fez com que Dostoiévski o visse. Há uma página inteira em Crime e castigo, eu acho, sobre o cavalo que morre na rua. Nijinski, o dançarino, o viu. Nietzsche também viu. Já estava velho quando o viu em Turim, eu acho. Muito bem!
CP: E você viu as manifestações da Frente Popular.
GD: Sim, eu vi estas manifestações, vi meu pai dividido entre sua honestidade e seu anti-semitismo. Eu fui “uma” criança. Eu sempre insisti no fato de que não se entende o sentido do artigo indefinido. “Uma” criança espancada, “um” cavalo chicoteado. Não quer dizer “eu”. O artigo indefinido é de uma extrema riqueza.
CP: São as multiplicidades. Falaremos disso.
GD: Sim, é a multiplicidade.
F de Fidelidade
CP: F de Fidelidade. Fidelidade não gera amizade. Tudo isso vem de um mistério muito maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e Pecuchet. Vamos passar para a letra F.
GD: Vamos ao F.
CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de amizade, já que há 30 anos, é amigo de Jean-Pierre Braunberger. E todos os dias, vocês se telefonam ou se vêem. É como um casal. Você é fiel às suas amizades, é fiel a Félix Guattari, a Jerôme Lindon, a Elie, a Jean-Paul Manganaro, Pierre Chevalier... Seus amigos são muito importantes para você. François Châtelet e Michel Foucault eram seus amigos e você os homenageou como amigos com grande fidelidade. Queria saber se a impressão de a fidelidade estar obrigatoriamente ligada à amizade é correta? Ou será o contrário?
GD: Não há Fidelidade. É só uma questão de conveniência, já que começa com F.
CP: Sim, e o A já foi preenchido.
GD: É outra coisa. A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéias em comum. O que quer dizer “ter coisas em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me o sal”. Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada... É verdade que há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do charme. Quando falo de charme não quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao ouvir uma frase deste nível, pensa: “O que acabei de ouvir? Que imundicie é essa?” Não pense que pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale para o charme. Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de percepção. Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.
CP: Decifrar signos.
GD: Exatamente. Disse muito bem. É só o que há. Alguém emite signos e a gente os recebe ou não. Acho que todas as amizades têm esta base: ser sensível aos signos emitidos por alguém. A partir daí, pode-se passar horas com alguém sem dizer uma palavra ou, de preferência, dizendo coisas totalmente insignificantes. Em geral, dizendo coisas... A amizade é cômica.
CP: Você gosta muito dos cômicos, das duplas de amigos, como Bouvard e Pecuchet, Mercier e Camier...
GD: Sim, Jean-Pierre e eu somos uma pálida reprodução de Mercier e Camier. Eu estou sempre cansado, não tenho boa saúde, Jean-Pierre é hipocondríaco e nossas conversas são do tipo de Mercier e Camier. Um diz ao outro: “Como está?” O outro responde: “Uma bela viola, sem muito bolor”. É uma frase cheia de charme. Tem de gostar de quem a diz. Ou: “Estou como uma rolha no balanço do mar”. São boas frases. Com Félix é diferente, não somos Mercier e Camier, estamos mais próximos de Bouvard e Pécuchet. Com tudo o que fizemos juntos, mergulhamos em uma tentativa enciclopédica. E dizemos coisas como: “Temos a mesma marca de chapéu!” E volta a tentativa enciclopédica, a de fazer um livro que aborde todos os saberes. Com outro amigo, poderia ser uma réplica de o Gordo e o Magro. Não é que se deva imitar estas grandes duplas, mas amizade é isso. Os grandes amigos são Bouvard e Pécuchet, Camier e Mercier, o Gordo e o Magro, mesmo que estes tenham brigado. Pouco importa. Na questão da amizade, há uma espécie de mistério. Isso diz respeito direto à Filosofia. Porque na palavra “filosofia” existe a palavra “amigo”. Quero dizer que o filósofo não é um sábio. Do contrário, seria cômico. Ao pé da letra, é o “amigo da sabedoria”. O que os gregos inventaram não foi a sabedoria, mas a estranha idéia de “amigo da sabedoria”. Afinal, o que quer dizer “amigo da sabedoria”? Esse é que é o problema. O que é a filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer dizer que o amigo da sabedoria não é sábio. Há uma interpretação óbvia que é: “Ele tende à sabedoria”. Não é por aí. O que inscreve a amizade na filosofia e que tipo de amizade? Há alguma relação com um amigo? O que era para os gregos? O que quer dizer “amigo de”? Se interpretamos “amigo” como aquele que “tende a”, amigo é aquele que pretende ser sábio sem ser sábio. Mas o que quer dizer “pretender ser sábio”? Quer dizer que há outro. Nunca se é o único pretendente. Se há um pretendente, é porque há outros, quer dizer que a moça tem vários pretendentes.
CP: Não se é o prometido da sabedoria, é-se apenas um pretendente.
GD: Exatamente. Então, há pretendentes. E o que os gregos inventaram? Na minha opinião, na civilização grega, eles inventaram o fenômeno dos pretendentes. Quer dizer que eles inventaram a idéia de que havia uma rivalidade entre os homens livres em todas as áreas. Não havia esta idéia de rivalidade entre homens livres, só na Grécia. A eloqüência. É por isso que são tão burocráticos. É a rivalidade entre os homens livres. Então, eles se processam mutuamente, os amigos também. O rapaz ou a moça tem pretendentes. Os pretendentes de Penélope. Este é o fenômeno grego por excelência. Para mim, o fenômeno grego é a rivalidade dos homens livres. Isso explica “amigo” na Filosofia. Eles pretendem, há uma rivalidade em direção a alguma coisa. A quê? Podemos interpretar, tendo em vista a história da Filosofia. Para alguns, a Filosofia está ligada ao mistério da amizade. Para outros, está ligada ao mistério do noivado. E talvez seja por aí. Les fiançailles rompues [O noivado rompido], Kierkegaard. Não há Filosofia sem este texto, sem o primeiro amor. Mas como já dissemos, o primeiro amor é a repetição do último, talvez seja o último amor. Talvez o casal tenha uma importância na Filosofia. Acho que só saberemos o que é a Filosofia quando forem resolvidas as questões da noiva, do amigo, do que é o amigo, etc... É isso que me parece interessante.
CP: E Blanchot na amizade? Havia uma idéia de...
GD: Blanchot e Mascolo são os dois homens atuais que, em relação à Filosofia, dão importância à amizade. Mas num sentido muito especial. Eles não dizem que é preciso ter um amigo para ser filósofo; eles consideram que a amizade é uma categoria ou uma condição do exercício do pensamento. É isso que importa. Não é o amigo em si, mas a amizade como categoria, como condição para pensar. Daí, a relação Mascolo-Antelme, por exemplo. Daí, as declarações de Blanchot sobre a amizade. Eu tenho a idéia de que... Eu adoro desconfiar do amigo. Para mim, amizade é desconfiança. Há um verso de que gosto muito, e me impressiona muito, de um poeta alemão, sobre a hora entre cão e lobo, a hora na qual ele se define. É a hora na qual devemos desconfiar do amigo. Há uma hora em que se deve desconfiar até de um amigo. Eu desconfio do Jean-Pierre como da peste! Desconfio dos meus amigos. Mas é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer que façam, vou achar muita graça. Há muito entendimento e comunhão entre meus amigos. Com a noiva é a mesma coisa. Com tudo. Mão não se deve achar que sejam acontecimentos ou casos particulares. Quando se fala de “amizade”, “noiva perdida”, trata-se de saber em que condições o pensamento pode ser exercido? Por exemplo, Proust considera que a amizade é zero! Não só por conta própria, mas porque não há nada a se pensar na amizade. Mas pode se pensar sobre o amor ciumento. Esta é a condição do pensamento.
CP: Quero fazer-lhe a última pergunta sobre seus amigos. Com Châtelet, foi outra coisa. Mas você foi amigo de Foucault no final da guerra e estudaram juntos. Mas vocês tinham uma amizade que não era a de uma dupla, como a que tem com Jean-Pierre ou Félix ou com Elie, Jerôme, já que estamos falando dos outros. Vocês tinham uma amizade muito profunda, mas parecia distante e era mais formal para quem via de fora. Que amizade era essa, então?
GD: Ele era mais misterioso para mim e talvez porque a gente tivesse se conhecido tarde. Foucault foi um grande arrependimento para mim. Como tinha muito respeito por ele, não tentei... Vou dizer como eu o percebia. É um dos raros homens que, quando entrava em uma sala, mudava toda a atmosfera. Foucault não era apenas uma pessoa, aliás, nenhum de nós é apenas uma pessoa. Era como se outro ar entrasse. Era uma corrente de ar especial. E as coisas mudavam. Era um fator atmosférico. Foucault tinha como que uma emanação. Como uma emissão de raios. Alguma coisa assim. Fora isso, ele responde ao que eu dizia há pouco, sobre não haver necessidade de falar com o amigo. Só falávamos de coisas que nos faziam rir. Ser amigo é ver a pessoa e pensar: “O que vai nos fazer rir hoje?”. “O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes?” É isso. Mas para mim, Foucault é a lembrança de alguém que ilustra o que eu dizia sobre o charme de alguém, um gesto... Os gestos de Foucault eram impressionantes. Tantos gestos... Pareciam gestos metálicos, gestos de madeira seca. Eram gestos estranhos, fascinantes. Muito bonitos. As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são pessoas que não desmoronam. Mas, se não captar aquela pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la. Não pode amá-la. É aquele lado em que a pessoa está completamente... Aliás, todos nós somos um pouco dementes. Se não se captar o ponto de demência de alguém... Ele pode assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme. Ao G, pois!
G de Gauche [Esquerda]
CP: G! Neste caso, não é o ponto de demência que constitui seu charme e sim algo muito sério: o fato de pertencer à esquerda. Isso o faz rir, o que me deixa muito feliz. Como já vimos, você é de uma família burguesa de direita e, a partir do final da guerra, você se tornou o que se costuma chamar de um homem de esquerda. Com a Liberação, muitos amigos seus e estudantes de Filosofia aderiram ou eram muito ligados ao Partido Comunista.
GD: Sim, todos passaram pelo PC, menos eu. Pelo menos é o que eu acho, não tenho certeza.
CP: Mas como você escapou disso?
GD: Não é nada complicado. Todos os meus amigos passaram pelo PC. O que me impediu? Acho que é porque eu era muito trabalhador. E porque eu não gostava das reuniões. Nunca suportei as reuniões em que falam de forma interminável. Ser membro do PC era participar destas reuniões o tempo todo. E era a época do “Apelo de Estocolmo”. Pessoas cheias de talento passavam o dia colhendo assinaturas para o “Apelo de Estocolmo”. Andavam pelas ruas com este “Apelo de Estocolmo”, que já nem sei mais o que era. Mas isso ocupou toda uma geração de comunistas. Eu tinha problemas porque conhecia muitos historiadores comunistas cheios de talento e achava que se eles fizessem a tese deles seria muito mais importante para o partido, que, pelo menos, teria um trabalho a mostrar em vez de usá-los para o “Apelo de Estocolmo”, um abaixo-assinado sobre a paz ou sei lá o quê. Não tinha vontade de participar disso. E, como eu falava pouco e era tímido, pedir uma assinatura para o “Apelo de Estocolmo” teria me colocado num estado de pânico tal que ninguém assinaria nada. Ainda por cima, tinha-se de vender o jornal L’Humanité. Tudo por motivos muito baixos. Não tive vontade nenhuma de entrar para o partido.
CP: Sentia-se próximo do engajamento deles?
GD: Do partido? Não, isso não me dizia respeito. E foi o que me salvou. Todas aquelas discussões sobre Stalin... O que hoje todo mundo já sabe sobre os horrores de Stalin, sempre existiu. Que as revoluções acabem mal... Acho muita graça! Afinal, de quem estão zombando? Quando os Novos Filósofos descobriram que as revoluções acabam mal... Tem de ser maluco! Descobriram isso com Stalin! Foi uma porta aberta para que todo mundo descobrisse. Por exemplo, sobre a revolução argelina disseram que ela fracassou porque atiraram em estudantes. Mas quem pode acreditar que uma revolução possa ser bem-sucedida? Dizem que os ingleses nunca fizeram uma revolução. Estão enganados! Atualmente, vive-se uma mistificação incrível! Os ingleses fizeram uma revolução, mataram o rei e o que eles tiveram? Cromwell! E o que é o romantismo inglês? Uma longa meditação sobre o fracasso da revolução. Eles não esperaram Glucksman para pensar sobre o fracasso da revolução stalinista. Eles o tinham ali! E os americanos, dos quais nunca se fala? Eles fracassaram em sua revolução muito mais do que os bolcheviques! Os americanos, antes da Guerra da Independência... Eu repito: antes da Guerra da Independência, eles se apresentavam como melhores do que uma nova nação! Eles ultrapassaram as nações, exatamente como Marx disse do proletário. Acabaram-se as nações! Eles trouxeram a nova população, fizeram a verdadeira revolução, e, exatamente como os marxistas contaram com a proletarização universal, os americanos contavam com a imigração universal. São as duas fases das lutas de classe. É absolutamente revolucionário! É a América de Jefferson, de Thoreau, de Melville! Jefferson, Thoreau, Melville representam uma América completamente revolucionária, que anuncia o novo homem, exatamente como a revolução bolchevique anunciava o novo homem! E ela fracassou! Todas as revoluções fracassaram, isso é sabido! Hoje, fingem redescobrir isso. É loucura! E nisso todo mundo se atola; é o revisionismo atual. Furet descobre que a revolução francesa não foi tão boa assim. Ela também fracassou e todos sabem disso! A revolução francesa nos deu Napoleão. São descobertas que não comovem por sua novidade. A revolução inglesa deu em Cromwell. A revolução americana deu em quê? Muito pior, não?
CP: O liberalismo.
GD: Deu em Reagan! Não me parece muito melhor do que os outros! Atualmente, estamos em um estado de grande confusão. Mesmo que as revoluções tenham fracassado, isso não impediu que as pessoas deviessem revolucionárias. Duas coisas absolutamente diferentes são misturadas. Há situações nas quais a única saída para o homem é devir revolucionário. É o que falávamos sobre a confusão do devir e da História. É essa a confusão dos historiadores. Eles nos falam do futuro da revolução ou das revoluções. Mas esta não é a questão. Eles podem ir lá para trás para mostrar que se o futuro é ruim é porque o ruim já existia desde o início. Mas o problema concreto é: como e por que as pessoas devêm revolucionárias? Felizmente, os historiadores não puderam impedir isso. Os sul-africanos estão envolvidos em um devir revolucionário. Os palestinos também. Se me disserem depois: “Você vai ver quando eles triunfarem, quando eles vencerem...!” “Vai acabar mal”. Mas já não são mais os mesmos tipos de problemas, vai se criar uma nova situação e novos devires revolucionários serão desencadeados. Nas situações de tirania, de opressão, cabe aos homens devirem revolucionários, pois não há outra coisa a ser feita. Quando nos dizem: “Viu como deu errado?”, não estamos falando da mesma coisa. É como se falássemos idiomas completamente diferentes. O futuro da História e o devir das pessoas não são a mesma coisa.
CP: E o respeito aos Direitos Humanos que está tão em voga hoje em dia? É o contrário do devir revolucionário, não?
GD: A respeito dos Direitos Humanos, tenho vontade de dizer um monte de coisas feias. Isso tudo faz parte deste pensamento molenga daquele período pobre de que falamos. É puramente abstrato. O que quer dizer “Direitos Humanos”? É totalmente vazio. É exatamente o que estava tentando dizer há pouco sobre o desejo. O desejo não consiste em erguer um objeto e dizer: “Eu desejo isto”. Não se deseja a liberdade. Isso não tem valor algum. Existem determinadas situações como, por exemplo, a da Armênia. É um exemplo bem diferente. Qual é a situação por lá? Corrijam-me se estiver errado, mas não mudará muita coisa. Há este enclave em outra república soviética, este enclave armênio. Uma República Armênia. Esta é a situação. Primeira coisa. Há o massacre. Aqueles turcos ou sei lá o quê...
CP: Os Azeris.
GD: Pelo que se sabe atualmente, suponho que seja isso: o massacre dos armênios mais uma vez no enclave. Os armênios se refugiam em sua República. Corrija-me se estiver errado. E aí, ocorre um terremoto. Parece uma história do Marquês de Sade. Esses pobres homens passaram pelas piores provas, vindas dos próprios homens e, mal chegam a um local protegido, é a vez da natureza entrar em ação. E aí, vêm me falar de Direitos Humanos. É conversa para intelectuais odiosos, intelectuais sem idéia. Notem que essas Declarações dos Direitos Humanos não são feitas pelas pessoas diretamente envolvidas: as sociedades e comunidades armênias. Pois para elas não se trata de um problema de Direitos Humanos. Qual é o problema? Eis um caso de agenciamento. O desejo se faz sempre através de um agenciamento. O que se pode fazer para eliminar este enclave ou para que se possa viver neste enclave? É uma questão de território. Não tem nada a ver com Direitos Humanos, e sim com organização de território. Suponho que Gorbatchev tente safar-se desta situação. Como ele vai fazer para que este enclave armênio não seja entregue aos turcos que o cercam? Não é uma questão de Direitos Humanos, nem de justiça, e sim de jurisprudência. Todas as abominações que o homem sofreu são casos e não desmentidos de direitos abstratos. São casos abomináveis. Pode haver casos que se assemelhem, mas é uma questão de jurisprudência. O problema armênio é um problema típico de jurisprudência extraordinariamente complexo. O que fazer para salvar os armênios e para que eles próprios se salvem desta situação louca em que, ainda por cima, ocorre um terremoto? Terremoto este que também tem seus motivos: construções precárias, feitas de forma incorreta. Todos são casos de jurisprudência. Agir pela liberdade e tornar-se revolucionário é operar na área da jurisprudência! A justiça não existe! Direitos Humanos não existem! O que importa é a jurisprudência. Esta é a invenção do Direito. Aqueles que se contentam em lembrar e recitar os Direitos Humanos são uns débeis mentais! Trata-se de criar, não de se fazer aplicar os Direitos Humanos. Trata-se de inventar as jurisprudências em que, para cada caso, tal coisa não será mais possível. É muito diferente. Vou dar um exemplo de que gosto muito, pois é o único meio de fazer com que se entenda o que é a jurisprudência. As pessoas não entendem nada! Nem todas... Eu me lembro da época em que foi proibido fumar nos táxis. Antes, se fumava nos táxis. Até que foi proibido. Os primeiros motoristas de táxi que proibiram que se fumasse no carro causaram um escândalo, pois havia motoristas fumantes. Eles reclamaram. E um advogado... Eu sempre fui um apaixonado pela jurisprudência. Se não tivesse feito Filosofia, teria feito Direito. Mas não Direitos Humanos. Teria feito jurisprudência, porque é a vida! Não há Direitos Humanos, há direitos da vida. Muitas vezes, a vida se vê caso a caso. Mas eu estava falando dos táxis. Um sujeito não queria ser proibido de fumar em um táxi e processa os táxis. Eu me lembro bem, pois li os considerandos do julgamento. O táxi foi condenado. Hoje em dia, nem pensar! Diante do mesmo processo, o cara é que seria condenado. Mas, no início, o táxi foi condenado sob o seguinte considerando: quando alguém pega um táxi, ele se torna locatário. O usuário do táxi é comparado a um locatário que tem o direito de fumar em sua casa, direito de uso e abuso. É como se eu alugasse um apartamento e a proprietária me proibisse de fumar em minha casa. Se sou locatário, posso fumar em casa. O táxi foi assimilado a uma casa sobre rodas da qual o passageiro era o locatário. Dez anos depois, isso se universalizou. Quase não há táxi em que se possa fumar. O táxi não é mais assimilado a uma locação de apartamento, e sim a um serviço público. Em um serviço público, pode-se proibir de fumar. A Lei Veil. Tudo isso é jurisprudência. Não se trata de direito disso ou daquilo, mas de situações que evoluem. E lutar pela liberdade é realmente fazer jurisprudência. O exemplo da Armênia me parece típico. Os Direitos Humanos... Ao invocá-los, quer dizer que os turcos não têm o direito de massacrar os armênios. Sim, não podem. E aí? O que se faz com esta constatação? São um bando de retardados. Ou devem ser um bando de hipócritas. Este pensamento dos Direitos Humanos é filosoficamente nulo. A criação do Direito não são os Direitos Humanos. A única coisa que existe é a jurisprudência. Portanto, é lutar pela jurisprudência.
CP: Quero voltar a uma coisa...
GD: Ser de esquerda é isso. Eu acho que é criar o direito. Criar o direito.
CP: Voltamos à pergunta sobre a filosofia dos Direitos Humanos. Este respeito pelos Direitos Humanos é uma negação de Maio de 1968 e uma negação do Marxismo. Você não repudiou Marx, pois não foi comunista e ainda o tem como referência. E você foi uma das raras pessoas a evocar Maio de 68 sem dizer que foi uma mera bagunça. O mundo mudou. Gostaria que falasse mais sobre Maio de 68.
GD: Sim! Mas foi dura ao dizer que fui um dos raros, pois há muita gente. Basta olhar à nossa volta, entre nossos amigos, ninguém renegou 68.
CP: Sim, mas são nossos amigos.
GD: Mesmo assim, há muita gente. São muitos os que não rejeitaram Maio de 68. Mas a resposta é simples. Maio de 68 é a intrusão do devir. Quiseram atribuir este fato ao reino do imaginário. Não é nada imaginário, é uma baforada de realidade em seu estado mais puro. De repente, chega a realidade. E as pessoas não entenderam e perguntavam: “O que é isso?” Finalmente, gente real. As pessoas em sua realidade. Foi prodigioso! O que eram as pessoas em sua realidade? Era o devir. Podia haver alguns devires ruins. É claro que alguns historiadores não entenderam bem, pois acredito tanto na diferença entre História e devir. Foi um devir revolucionário, sem futuro de revolução. Alguns podem zombar disso. Ou zombam depois que passou. O que tomou as pessoas foram fenômenos de puro devir. Mesmo os devires-animal, mesmo os devires-criança, mesmo os devires-mulher dos homens, mesmo os devires-homem das mulheres... Tudo isso faz parte de uma área tão particular na qual estamos desde o início de nossas questões. O que é exatamente um devir? É a intrusão do devir em Maio de 1968.
CP: Você teve um devir-revolucionário naquele momento?
GD: O seu sorriso parece mostrar bem a sua ironia... Prefiro que me pergunte o que é ser de esquerda. É mais discreto do que devir-revolucionário.
CP: Então, vou perguntar de outra forma. Entre seu civismo de homem de esquerda e seu devir-revolucionário, como você faz? O que é ser de esquerda para você?
GD: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é um governo de esquerda. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: “Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?” E ser de esquerda é o contrário. É perceber... Dizem que os japoneses percebem assim. Não vêem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois, o continente... europeu, por exemplo... depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.
CP: Mas os japoneses não são um povo de esquerda...
GD: Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode mais durar. Não é possível esta injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o Terceiro Mundo... Ser de esquerda é saber que os problemas do Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser, ou melhor, é devir-minoria, pois é sempre uma questão de devir. Não parar de devir-minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe – até quando se vota, não se trata apenas da maior quantidade que vota em favor de determinada coisa – a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho, etc. As mulheres vão contar e intervir nesta maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir-mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir-animal. As crianças também têm um devir-criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários.
CP: Só os homens não têm devir homem.
GD: Não, pois é um padrão majoritário. É vazio. O homem macho, adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto dos processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas