quarta-feira, março 01, 2006

Nova droga atinge os pobres da Argentina

Buenos Aires enfrenta a expansão do consumo de "paco", substância destrutiva feita de pasta de cocaína

Jorge Marirrodriga
Em Buenos Aires


Um dia María Rosa González não agüentou mais. Depois de ver como, em poucas semanas, seu terceiro filho, Jerónimo, um jovem de 19 anos, emagrecia de maneira alarmante, não tomava banho e praticamente não dormia, um dia decidiu segui-lo pelos becos emaranhados de uma favela na periferia de Buenos Aires, chamada oficialmente de Vila de Emergência 15, mas que todos conhecem como Cidade Oculta.

"Eu não sabia nada sobre essa droga. Para mim foi novidade", diz a mulher, enquanto lembra como encontrou seu filho sentado no chão e fumando uma espécie de cigarro que lhe provocava uma reação imediata de bem-estar que durava apenas alguns minutos.

Para María Rosa era novidade, para Jerónimo, nem tanto. Fazia apenas algumas semanas que havia fumado seu primeiro "paco" --como é chamado popularmente o cigarro de pasta de cocaína--, uma droga potente que surge do fundo dos recipientes onde se fabrica a cocaína e que está causando estragos entre a população mais pobre da capital argentina e da província de Buenos Aires.

Há dez dias o governador Felipe Sola fez um apelo dramático para o combate ao paco: "Está matando nossos adolescentes nos lugares mais humildes". Mas os parentes das vítimas dessa nova droga e os responsáveis pelo combate ao narcotráfico advertem que ela também está vitimando crianças menores de 10 anos.

Um paco custa 1 peso --menos de 0,25 euro-- e está ao alcance de qualquer um, não importa a idade. "Fumando-se uma única vez, provoca uma forte angústia que leva a voltar a fumá-lo. Ativa com força o sistema de recompensa do cérebro", diz Norma Vallejo, catedrática em toxicologia indicada pelo presidente Nestor Kirchner como número dois da Secretaria de Programação para a Prevenção do Vício em Drogas e o Combate ao Narcotráfico (Sedronar). "Das substâncias que circulam pela rua é a droga que provoca maior deterioração em menos tempo", adverte.

A droga é barata e seu efeito é imediato, uma tentação difícil de recusar para milhares de jovens e crianças cuja realidade cotidiana é um beco sem saída. O paco fez sua aparição na Argentina em 2002, depois da crise econômica e institucional que deixou o país à beira do caos e mergulhou na pobreza uma parte importante da classe média.

"Os narcotraficantes perceberam que com a desvalorização do peso em relação ao dólar as pessoas não tinham mais dinheiro para lhes pagar, e decidiram aproveitar os restos da fabricação de cocaína e vendê-los justamente nos arredores das cozinhas, os laboratórios clandestinos onde se elabora a cocaína", indica o doutor Eugenio Nadra, coordenador do conselho científico do Sedronar.

María Rosa experimentou em sua casa humilde outro efeito do paco. Começaram a desaparecer todos os tipos de coisas --inclusive as de valor ínfimo--, que seu filho vendia para conseguir outro cigarro. "Ele faz esquecer a realidade de forma imediata, e além disso se pode fumar. E, é claro, ninguém fuma um só", explica Norma Vallejo.

E um peso depois do outro são muitos pesos em grupos de população cujas famílias sobrevivem com menos de 400 pesos por mês e às vezes com 200. "Eles vendem absolutamente tudo", afirma a mãe do jovem toxicômano. "Eu vi entrar na Cidade Oculta rapazes de classe média bem vestidos e saírem praticamente nus. Venderam tudo para conseguir outro paco."

A criminalidade dispara e às vezes os pequenos "transas" (traficantes) se transformam em donos do lugar. Todos estão dispostos a dar ao "camelo" local qualquer coisa em troca de um cigarro de pasta de cocaína, sejam pertences, uma surra em um terceiro ou um favor sexual a quem quer que seja.

"Os chamamos de mortos-vivos. Vão caminhando tão magros e com os olhos fundos...", diz María Rosa González. Jerónimo passou de 70 quilos para apenas 46. "Os consumidores de paco não comem porque deixam de sentir fome. O pobre se droga porque tem o estômago vazio, o rico porque tem o espírito vazio", diz o doutor Nadra.

Na Argentina é chamada de "droga dos pobres" e seu consumo se concentra fundamentalmente, por enquanto, na área ao redor da capital argentina. O que fez disparar todos os alarmes é a rapidez vertiginosa com que se expande. Os números não-oficiais oscilam entre 30 mil e 70 mil consumidores.

"Aumentou 200% em quatro anos e é muito perigosa. O desencanto, quer dizer, o momento em que o viciado toma consciência de que tem um problema perigoso com uma droga, costuma ser de quatro anos, mas com o paco ocorre em apenas nove meses. O problema é que muitos não chegam aos nove meses", salienta Mónica Neuenburg, especialista em dependência química da Fundação Manantiales, um centro de diagnóstico e tratamento de dependências com sedes na Argentina, Uruguai e Brasil.

"Quando passa o efeito, depois de sete ou oito minutos, a depressão que o fumante sofre é simplesmente intolerável. Ele está disposto a tudo para voltar a fumar."

Podem-se fumar 20, 30, 50 ou 100 cigarros de pasta de coca. O limite não é o próprio corpo, mas, na maioria dos casos, o bolso. Neuenburg acrescenta que os fumantes de pasta de coca também começam a sentir um medo permanente de ser mortos. No final, a deterioração física aguda é apenas um reflexo da deterioração mental.

Com todos os elementos contra, há pessoas que decidiram não se render à nova droga. No mesmo dia em que descobriu Jerónimo fumando paco, María Rosa começou a percorrer todas as instâncias possíveis para conseguir que seu filho saia do túnel. "Caminhei por todos os lados, falei com todos e não tive resposta, mas finalmente consegui um tribunal que obrigou meu filho a se internar."

Jerónimo passou dez minutos contados no centro de reabilitação. Os responsáveis da instituição explicaram à mãe que não podiam obrigar o jovem a permanecer ali contra sua vontade. Ela experimentou mandá-lo morar com a avó no Pampa, no sul do país, onde não existe paco.

"Voltou decidido a fumar. Em dez dias perdeu 15 quilos. Não dá para contar, é preciso vê-lo. É impressionante como a droga o consome: desnutrido, desidratado, com os pés cheios de bolhas."

Desesperada, voltou para sua casa e pensou em um novo plano. E descobriu um que na Argentina não é tão novo, mas tem eficácia comprovada. Acompanhada de outras mães cujos filhos estavam viciados em paco e de moradores da Cidade Oculta fartos da situação no bairro, bloquearam uma via importante, a Avenida Perón.

"Vieram os meios de comunicação. Não sabiam nem por que estávamos ali. Contamos sobre o paco e o que está acontecendo." E Buenos Aires abriu os olhos.

Há dois meses e meio Jerónimo está internado em uma comunidade de reabilitação. Recuperou peso e sabe que é um afortunado. Teve mais sorte que algumas meninas de 9 anos que diariamente se arrastam diante da casa onde vive sua mãe, acorrentadas a um pesadelo que são incapazes de compreender e que as obriga a buscar a droga quando na sua idade outras ainda pensam em bonecas.

"Nunca falamos com Jerónimo sobre o que acontecia, porque ele ia embora", lembra María Rosa. E agora, o que ele diz do paco? "Repete uma coisa: ele o seduz, o prende e o mata."

Traficantes "caseiros"

Um dos fenômenos particulares da pasta de cocaína é que não gera redes de narcotráfico como as outras substâncias. É consumida praticamente no mesmo lugar onde se produz, o que mudou drasticamente o perfil do narcotraficante que, no que se refere ao paco, não precisa ser um senhor local da droga. Basta que seja quem consegue os restos da fabricação de cocaína. "Um narcotraficante típico poderia ser perfeitamente uma dona-de-casa", salienta Neuenberg.

A proximidade e o conhecimento entre consumidores, produtores e traficantes gera situações de extrema tensão. Desde o ano passado, quando algumas mães da Cidade Oculta começaram a pedir ajuda em público contra o tráfico, foram constantes as ameaças.

"A última recebi há duas semanas", revela María Rosa, para quem o mais doloroso é ver meninas da idade de sua filha pequena perambular em busca da droga. "Muitas delas eu vi nascer", salienta.

O governo argentino considera que a prevenção é fundamental, sobretudo quando as diferentes estatísticas mostram uma proporção alarmante de escolares que consumiram ou são consumidores habituais de drogas: 7,1% da população escolar argentina consumiram recentemente alguma droga ilegal.

As autoridades argentinas inclinam-se pela tolerância zero em relação ao consumo. "A lei que persegue o consumo é a lei que salva a vida", salienta Eugenio Nadra, do Sedronar.

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