quarta-feira, dezembro 20, 2006

O trabalho inacabado

Por Leneide Duarte-Plon

Sem Lacan a teoria de Freud teria hoje um papel limitado, diz o psicanalista austríaco August Ruhs

Viena viu nascer a psicanálise numa época de efervescência cultural extraordinária, o final do século XIX. Hoje, um dos mais famosos museus da cidade fica no número 19 da rua Berggasse, na casa onde Freud morou e trabalhou até deixar Viena, em 1938, para se refugiar do nazismo em Londres.

“Talvez se possa dizer que as histéricas austríacas eram mais favoráveis à descoberta de Freud do que as histéricas francesas da Salpêtrière. Mas todas foram importantes, pois foi uma doente que levou Freud a interromper o tratamento com hipnose e lhe disse: ‘Deixe-me tranqüila, não me toque, escute-me’”, comenta o psicanalista e psiquiatra austríaco August Ruhs, diretor-adjunto da Clínica Universitária de Psicanálise e de Psicoterapia de Viena, sobre o caldo de cultura científica e literária que favoreceu a descoberta da psicanálise por Freud.

Mas a psicanálise não teria hoje a importância que adquiriu se o psicanalista francês Jacques Lacan não tivesse feito uma conferência em Viena, em 1955, defendendo um “retorno a Freud”, revigorando o movimento psicanalítico. Para marcar os 50 anos dessa conferência e os 150 anos do nascimento do pai da psicanálise, Ruhs organizou na capital austríaca um colóquio com alguns dos mais respeitados psicanalistas austríacos e com os psicanalistas franceses Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, autores do “Dicionário da Psicanálise”.

Segundo Ruhs, sem a conferência de Lacan na cidade, 50 anos atrás, a psicanálise estaria hoje limitada ao papel que ela tem nos países anglo-saxões, bem menos importante que na França, no Brasil e na Argentina, onde ela mais profundamente se implantou: “Um dos enormes impactos de Lacan sobre a psicanálise foi o de alargar seu campo de relações com a filosofia e com outras ciências humanas. Se existe hoje tal produção de publicações nessas disciplinas é sobretudo graças a Lacan e à renovação teórica que ele possibilitou”.

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O berço da psicanálise poderia ter sido outra cidade ?

August Ruhs : É uma pergunta que se faz sempre. Geralmente, essa questão é centrada nos personagens da descoberta, isto é, Freud e seu colega Breuer, que teve um papel importante, porque foi com ele que se deu a passagem da hipnose catártica à hipnose investigativa. Ou então Charcot, que teve uma grande influência sobre Freud. Então tudo fica centralizado nos homens, mas a gente esquece a quem se deve realmente a psicanálise: aos doentes.

Talvez se possa dizer que as histéricas austríacas eram mais favoráveis à descoberta de Freud do que as histéricas francesas da Salpêtrière. Mas todas foram importantes, pois foi uma doente que levou Freud a interromper o tratamento com hipnose e lhe disse: “Deixe-me tranqüila, não me toque, escute-me”. E foi essa escuta que levou Freud a descobrir os desejos inconscientes camuflados pelo grande espetáculo da histérica. E talvez a cidade de Viena era propícia porque Freud nutria essa lenda de um “landsome hero” (herói solitário), um titã incompreendido por todos, o que não era verdade, pois em torno dele havia uma cultura que ia na mesma direção que ele, não em medicina, é certo, mas em literatura e nas artes.

Sobretudo Arthur Schnitzler, que Freud reconhecia como sendo seu “alter ego”, de quem ele dizia: “Ele vai pelo mesmo caminho”. Então, era uma cultura que favorecia, inclusive por causa dos doentes que estavam lá naquele momento.


Qual é a importância para a história da psicanálise do simpósio sobre os 50 anos da conferência de Lacan, em Viena, pregando um “retorno a Freud”?

Ruhs: Para a história da psicanálise, essa comemoração da conferência de Lacan centrada num retorno a Freud fez parte das grandes festividades de 2006, quando se festejaram os 150 anos de Freud. Este simpósio significou “não esqueçamos de Freud”, mas também: não esqueçamos que a psicanálise é algo como um trabalho sempre inacabado, o que supõe uma volta às origens para beber na fonte e para que as inovações possam ser mantidas no eixo da descoberta freudiana.

A psicanálise tem e terá sempre desafios a enfrentar, ela deve estar sempre em evolução a fim de poder responder às mudanças que acontecem na sociedade. Por isso, ela não pode perder seus princípios, isto é, deve continuar a buscar os motivos secretos e internos de cada manifestação do psiquismo humano e ao mesmo tempo não deve se perder no passado para não ser superada pelos acontecimentos.


Se Lacan não tivesse proposto esse retorno a Freud, qual teria sido o destino da psicanálise?


Ruhs: Ela não estava ameaçada, mas ela teria evoluído para o que se tornou o modelo anglo-americano. Seria mais medicalizada e teria perdido muito de sua característica de ser aberta a outras disciplinas. Ela teria ficado restrita à função terapêutica porque um dos enormes impactos de Lacan sobre a psicanálise foi o de alargar seu campo de relações com a filosofia e com outras ciências humanas. Se existe tal produção de publicações nessas disciplinas é sobretudo graças a Lacan e à renovação teórica que ele possibilitou, sobretudo com sua concepção tópica em termos de imaginário, simbólico e real, critérios que Freud não tinha e, sendo assim, a expressão do inconsciente pôde ser enriquecida por conceitos lacanianos.


Que tipo de arquivo restou dessa conferência de Lacan em Viena?


Ruhs: Nenhum vestígio dessa conferência chegou até nós. Apenas duas ou três pessoas que ainda estão vivas ouviram Lacan em Viena. Uma pessoa se lembra que teve de traduzir o texto, mas desistiu depois de algumas frases. Uma outra diz que era um pouco tedioso, ninguém compreendeu nada. E a terceira pessoa, senhor Arnold, citado por Lacan entre as pessoas que ele encontrou, não se lembrava de nada quando o entrevistei.


Lacan fez essa conferência em francês?


Ruhs: Segundo uma pessoa presente, ele fez a conferência em francês e parece que o texto integral foi distribuído pelos presentes. Mas os vestígios desse texto foram destruídos quando puseram abaixo a casa da clínica de psiquiatria para construir um novo prédio do hospital geral, e os arquivistas me disseram que muitos textos também foram jogados no lixo. Alguém salvou uns papéis, mas o discurso de Lacan desapareceu.


Como o senhor vê a psicanálise na Áustria hoje? Quantos psicanalistas existem e como eles se situam na sociedade vienense?

Ruhs: Aqui existe uma tendência de dizer “Freud, sim, mas a psicanálise, não”. Como se Freud fosse um grande homem, interessante, fumante de charutos, um grande colecionador de estatuetas, mas sua obra fosse considerada atualmente pela maioria das pessoas como uma disciplina um pouco esdrúxula, que não é verdadeiramente uma ciência. Há muitos preconceitos. E sobretudo, atualmente, há um movimento, inclusive na Áustria, na direção de uma biologização da vida, uma espécie de atemporalidade, no sentido de desprezar as condições do meio na formação do sujeito e de propagar as idéias vindas da genética. Por isso, há um enfraquecimento da psicanálise.

E também, e isso é puramente austríaco, uma lei de 1991 levou ao reconhecimento de cerca de 15 escolas de psicoterapia -a psicanálise é apenas uma delas. Esqueceram que ela era a disciplina originária, ou uma das duas ou três disciplinas pioneiras. Os princípios para a formação dos psicoterapeutas vêm da psicanálise.


Quantos psicanalistas exercem a psicanálise na Áustria?

Ruhs: Existem entre 500 a 700 psicanalistas.


Como os psicanalistas austríacos reagiram aos ataques feitos no “Livro Negro da Psicanálise”?


Ruhs: Eles não conhecem o livro que aqui não saiu ainda.


O senhor acha que ele será traduzido em alemão?

Ruhs: Acho que não pois o que vem da França se espalha em círculos específicos e esses são contra esse livro. As pessoas que estariam de acordo com esse livro não o leram. Os livros de psiquiatria que vêm da França não são muito divulgados.

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Leneide Duarte-Plon
É jornalista e vive em Paris.

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