NÃO
Uma ética humana
A FRASE , acima convertida em pergunta, é do século 19, mas a resposta "não" a ela somente se torna possível no século 18. Parece um paradoxo, mas me explico. Até o tempo das "Luzes", a esmagadora maioria dos pensadores ocidentais concordaria com o enunciado devido a Dostoiévski, isto é, com a idéia de que o ateu é imoral. Quem não acredita no Criador não seria capaz de respeitar nenhuma regra ética.
Assim, por volta de 1650, o bispo anglicano John Bramhall, um dos críticos mais ásperos do inglês Thomas Hobbes (que, por sinal, não era ateu), acusa o filósofo de não crer em Deus: "Hobbes acaba com o céu", diz ele, "e, pior: com o inferno".
Gosto muito desse "pior", que dá a chave do enigma. A acusação de ateísmo na verdade oculta o que realmente importa. O problema, para o fiel Bramhall, não é tanto se o céu existe. É que precisa haver um inferno, para que a multidão parva obedeça. Anos depois, quando o libertino conde Rochester agoniza, o pastor o convence, no leito de morte, a dizer-se arrependido. O conde não crê em Deus, mas é persuadido pelo argumento de que, se um grande do reino morrer sem os sacramentos, o populacho não será mais contido pelo medo do inferno.
Com as "Luzes", isso muda. A idéia de que, para ser moral, seria preciso acreditar em Deus (isto é, no Deus que amedronta, que pune: o Deus do inferno) é contestada em nome de uma ética humana, que possa valer mesmo sem o medo do castigo eterno.
Talvez seja Kant quem deu o passo decisivo para tanto, quando formulou um princípio cujo legado pode ser assim simplificado: a cada ação que cometo, estou reconhecendo o direito (ou o dever) de todo ser humano a também cometê-la.
Isso -que em "kantês" significa cada ser humano se tornar legislador ético- implica que, se desobedeço aos sinais de trânsito, se procuro levar vantagem em tudo, confiro a todos os meus semelhantes os mesmos direitos. Ora, é óbvio que, assim, o convívio social seria impossível. Provavelmente, teremos vidas sórdidas, sofridas, cruéis e curtas se agirmos dessa maneira. Por conseguinte, a cada ação que eu pratique, devo refletir muito bem se quero autorizar todos os outros a praticá-la. Se sim, ótimo. Se não, devo rever minha posição.
A partir dessa teoria, que resumi em linguagem que já não é kantiana, fica possível uma ética somente dos humanos entre si. Não é mais imprescindível a Revelação, menos ainda a punição por toda a eternidade. O conteúdo dos mandamentos não depende mais de Deus. Pode ser constituído em nosso próprio mundo. A moral e a ética deixam de apelar a uma transcendência, ao poder do Altíssimo, e se constroem neste mundo imanente, o nosso, o único que conhecemos.
Não quer dizer que essa idéia de uma ética sem o medo a Deus se tenha tornado unanimidade. Muitos ainda acham que Deus é necessário para explicar o que é certo e errado (nós não seríamos capazes disso) ou para punir quem se desvie do bom caminho (idem, ibidem). Mas, se hoje a conduta ética dos ateus ou indiferentes não tem nada a dever à dos religiosos e sobretudo à dos intolerantes, é porque essa tese moderna de uma ética humana tem valor e validade.
É importante concluir com duas notas. A primeira é que uma ética assim inspirada em Kant (mas que altera algumas de suas teses) é capaz de evoluir. No século 18, possivelmente ela admitiria a pena de morte; hoje, provavelmente, não. Muitas questões ficam em aberto, como aborto e eutanásia. O crucial é a forma da escolha ética (que cada um seja desafiado a enunciar seus valores, sob a condição de reconhecê-los como universais ou, pelo menos, recíprocos), mais que um conteúdo fixado de vez por todas.
A segunda e curiosa conclusão é que uma ética assim humana não é necessariamente atéia. Posso ou não acreditar em Deus, mas eu ser ou não ético deixa de estar subordinado ao medo de um Deus assustador. Uns serão éticos, mesmo não acreditando n'Ele. Por sua vez, outros cultuarão um Deus da justiça e do amor, mais que da repressão e do castigo. A crença em Deus ganha, em vez de perder, quando Ele corta o vínculo preferencial com o inferno e o medo.
RENATO JANINE RIBEIRO, 57, é professor titular de ética e filosofia política da USP. É autor, entre outros livros, de "Ética na Política" (Sesc) e de "A Sociedade contra o Social" (Cia. das Letras).
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3 comentários:
Pelo que entendi, o artigo do professor Renato substitui uma ética do "temor a Deus" pela ética do "amor ao homem", o que é uma comparação injusta que acaba maculando toda a premissa de seu artigo. Explico-me.
Pode-se construir a ética deísta sobre a base do "temor a Deus". Mas não é obrigatória tal construção. A ética pode surgir do amor a Deus. A constatação, por exemplo, de que o inferno é, na verdade, misericórdia divina, derruba grande parte de sua premissa. Veja só: quem não quer viver na presença de Deus numa possível vida eterna terá sua decisão respeitada, e o nome dado a esse "lugar" (ou a essa realidade) é inferno. Quem não quer Deus em sua vida será respeitado, o amor de Deus não obriga ninguém a amá-lo.
E, da mesma forma, pode-se construir a ética ateísta tendo como base o "temor do homem", ao invés desse "amor ao homem" que me parece permear a ética atéia que você procura construir. Exemplo simples seria "não mato o chato do vizinho porque alguém pode me achar um chato", sendo possível elaborar tal construção em uma infinidade de maneiras. No fim, diria-se algo como "não faço o mal pois criaria o inferno na Terra", o que não deixa de ser uma ética do temor.
Assim, comparar a construção de uma ética de medo de um deísta com uma ética do amor de um ateísta me parece completamente injusto. Compare amor com amor, e terror com terror. Afinal, ambas categorias podem ser aplicadas em ambos os casos.
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