domingo, agosto 28, 2005

Para o escritor Jostein Gaarder, coincidências não existem; leia entrevista

AUGUSTO OLIVANI
UOL Diversão e Arte



O escritor norueguês Jostein Gaarder, autor de O Mundo de Sofia, que esteve no Brasil

O escritor norueguês Jostein Gaarder talvez não imaginasse que seria considerado um cidadão do mundo por outros, além de si mesmo, quando lançou "O Mundo de Sofia" (Cia. das Letras) _best-seller que, depois de mais de dez anos de sua publicação, já foi traduzido em 55 línguas. Desde então, Gaarder lançou mais de uma dezena de livros e criou público cativo não só entre estudantes e mais jovens, mas também entre professores e adultos.

Jostein Gaarder passou cinco dias no Brasil (de 18 a 23 de agosto) por ocasião do lançamento nacional de seu mais recente livro, "A Garota das Laranjas" _todos os títulos do autor (12) foram lançados no Brasil pela Cia. das Letras. Foi convidado da 11ª Jornada Nacional de Literatura, realizada em Passo Fundo (RS), onde falou para platéia de estudantes e professores (no total, eram quase cinco mil inscritos para a jornada), e também participou de bate-papo em São Paulo para público semelhante.

O discurso de Gaarder, nessas ocasiões, está em sintonia com a história e as idéias transmitidas em "A Garota das Laranjas": por mais que alguns eventos pareçam coincidência, o andamento da história e a identificação essencial entre as personagens quer mostrar que coincidências não existem. Sobre isso, e sobre a existência, Gaarder declara em entrevista ao UOL Diversão e Arte: "Acho que a vida é uma característica profunda da natureza particular do universo. E digo o mesmo sobre a consciência"

Em "A Garota das Laranjas", Gaarder conta a história de um pai, Jan Olav, que escreve uma carta para o futuro, endereçada ao seu filho, quando descobre que está à beira da morte. Georg, o filho, na época tem quatro anos, e a carta, como planejado, só chega às mãos dele aos 15; e quando chega, ele atesta: "Acho que devia existir um método de mandar cartas para o futuro bem mais simples".

Porém, esse é apenas o primeiro grau da relação de cumplicidade que se estabelece entre pai e filho. A compartilharem o mesmo gosto por astronomia (mais particularmente pelo telescópio Hubble), a carta do pai também carrega um mistério que será melhor esclarecido com o desenrolar do texto, o da "garota das laranjas". A personagem, com traços saídos de um conto de fadas, trava uma relação profunda de identificação e de platonismo com o pai e, por consequência, com o filho.

O estilo de Jostein Gaarder, característico desde "O Mundo de Sofia", mais uma vez se faz presente e identificável logo nas primeiras páginas do livro. Ao escolher duas vozes (1+1, como o próprio classifica) para contar a história, seu jeito didático e extremamente paciente de dar detalhes da história funciona muito bem para atiçar a curiosidade, lançando luz em aspectos de nossa contemporaneidade que vão além do óbvio.

Gaarder resume, na entrevista que segue, o espírito de "A Garota das Laranjas": "É uma história de amor, um livro sobre o desespero que um pai sente quando está dizendo adeus à vida e ao mundo, mas que também inclui algumas perspectivas sobre astronomia e nossa relação com o universo". Ao propor a aceitação da vida mesmo dentro dos limites que ela impõe, o autor procura discutir, mais uma vez, o sentido da vida e a herança natural do homem. E defende: "acredito que o homem foi criado para contar histórias".


UOL: Quanto a Sofia (de "O Mundo de Sofia"), você acredita que a personagem pode viver mais que o autor? Isso é, você acha que ela será eterna, mais até que o nome Jostein Gaarder, se é que isso importa?
Gaarder: Eu não me importo, na verdade, eu realmente, realmente, não me importo quem irá mais longe, eu ou Sofia. Primeiro, quando eu comecei a escrever "O Mundo de Sofia", estava convencido de que seria uma história para pouquíssimas pessoas e que não daria maiores retornos. E eu estava completamente errado, foi um best-seller mundial, na época fiquei surpreso e assim permaneço até hoje. Mas agradeço pois foi a oportunidade que se abriu e que permitiu que lançasse meus outros livros. Ou seja, se não fosse por Sofia, nenhum de meus outros títulos teriam sido traduzidos em 55 países diferentes. Mas eu não sinto que criar uma história como a de "O Mundo de Sofia" dê algum tipo de conforto, não acredito nisso.

UOL: Acredito que seja um grande peso a se carregar, uma vez que é um tremendo sucesso. Você nunca pensou em fazer de "O Mundo de Sofia" uma série e, quem sabe, transformar Sofia em uma espécie de Harry Potter, em uma aprendiz dos diversos ramos da filosofia mundial?
Gaarder: Veja, eu sou muito interessado em filosofia indiana e chinesa, por exemplo. Se eu soubesse que o livro seria traduzido fora da Noruega, teria escrito sobre filosofia indiana, por exemplo. Mas escrever outro, depois do sucesso de "O Mundo de Sofia", que incluísse outras vertentes da filosofia mundial, bem, acho que não é minha tarefa. Se alguém o fizer, ficarei muito feliz. E digo que não gostaria de repetir a mesma fórmula, pois funciona apenas no contexto e no espírito do original.


Talvez, a forma pedagógica de explicar conceitos universais pudesse ser usado junto a ciência. Eu, particularmente, estou muito interessado na ciência moderna e contemporânea, como a astrofísica. Cada vez eu leio menos filosofia e mais sobre ciências naturais, pois penso que as grandes questões filosóficas são debatidas por seus ramos.


UOL: Você tocou em dois pontos que gostaria de explorar mais. O primeiro é, por que decidiu dar a "O Mundo de Sofia" um tratamento pedagógico, mirando também no público mais jovem ao explicar de forma simples e clara algumas das verdades filosóficas?
Gaarder: Quando escrevi "O Mundo de Sofia", eu estava totalmente ciente de que tentava popularizar a história da filosofia ocidental. Tinha apenas uma ambição e essa era pedagógica, didática. Às vezes, sou confrontado com a pergunta de que meus outros livros também são pedagógicos e eu não concordo plenamente. Meu livro mais recente, "A Garota das Laranjas", é uma história de amor, um livro sobre o desespero que um pai sente quando está dizendo adeus à vida e ao mundo, mas que também inclui algumas perspectivas sobre astronomia e nossa relação com o universo. Isso não foi feito para ser didático, mas apenas um aspecto do que é ser humano.

UOL: E o segundo ponto que gostaria de retomar é sobre a sua afirmação que são os textos científicos que lidam, hoje, com as grandes questões filosóficas. Porém, os cientistas, muitas vezes, não se sentem muito confortáveis com o fato de que idéias e hipóteses científicas sejam usadas em outros contextos. Como você acha que se deve lidar com essa situação?
Gaarder: Eu acho que, antes de mais nada, poderíamos dizer que toda a ciência natural é reducionista. Esse é o propósito de toda a ciência natural, reduzir nossos insights, nossas sacadas, em fatos brutos. Mas esse é o limite do que as ciências naturais podem nos dizer. E de novo, se você falar em metafísica ou o que quer que seja, a missão é ir além. Mas também é dever da filosofia admitir que isso é especulação, que não tem muito lastro em conhecimentos factíveis, pelo menos não hoje. E do mesmo jeito que há semelhanças entre, digamos, o Humanismo e a Astrofísica, também há limites.

UOL: Você acredita, então, que seja importante construir pontes entre diferentes campos do conhecimento?
Gaarder: Vou lhe dar um exemplo prático: estava eu em Madri, na Espanha, em uma conferência, onde conheci três cientistas nucleares, especialistas em átomos. Fiz então uma pergunta bem simples a eles: seria a consciência uma coincidência cósmica? E todos os três ficaram encabulados. No começo olharam para os lados, para o chão, e então repeti a pergunta. A resposta dos três foi positiva, que a consciência é uma coincidência cósmica. Assim, acredito que, da mesma forma que a religião é cega para alguns fatos, a ciência natural também o é.

Falando em cosmos, nós sabemos hoje que existem moléculas orgânicas espalhadas pelo universo. E sabemos que nossos átomos, nossos corpos e nosso mundo foram fervidos a partir de antigas estrelas, digamos assim. O que estou tentando dizer é que não acho que a vida seja uma coincidência. Acho que a vida é uma característica profunda da natureza particular do universo. E digo o mesmo sobre a consciência.

UOL: Você acredita que ainda existem histórias a serem contadas, mesmo depois de séculos de história da literatura e de tantos livros?
Gaarder: Eu acredito realmente que novas histórias serão criadas, assim como novas formas de contá-las. Não há fim. O material mais plástico conhecido do universo é a proteína. Duas moléculas protéicas geram tantas variações, e extremas, que acho que o mesmo vale para as histórias. Ambas são como estruturas narrativas, algo que faz parte do que há de mais profundo no nosso ser. Mesmo que a língua nativa da sua mãe seja português e da minha seja norueguês, mas abaixo desse nível de diferenças há uma camada que diz respeito a todos nós, que é como a estrutura narrativa que mencionei, algo como um mundo imaginário. Assim que começamos a concatenar as palavras nós começamos a criar histórias. Então acho que enquanto os homens viverem teremos sempre novas histórias. Talvez o formato de novela, de romance, como conhecemos ordinariamente, morra um dia. Mas histórias são contadas de diversas formas, desde oralmente até por escrito, e são tão essenciais quanto as proteínas do universo.

UOL: Para encerrar, quais são suas verdades filosóficas de preferência?
Gaarder: Serei bem simples na minha resposta. Conhece o Panteísmo? Espinoza é um dos expoentes desta escola na filosofia ocidental, que tem desdobramentos profundos na filosofia indiana. Há um ditado panteísta bem difundido de Espinoza, que diz "Deus Ex Natura", ou seja, "Deus é a natureza". É como se a natureza fosse a evolução divina e Deus fosse a evolução da natureza. Para ele, não havia diferença entre os sujeitos da frase.

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