terça-feira, janeiro 02, 2007

Como se faz uma obra-prima?

Por Juremir Machado da Silva

A receita para escrever um livro capital existe, mas é muito difícil encontrar os componentes necessários

Retomo este tema. Não existe receita de obra-prima. Mas, ao contrário do que se imagina, é possível saber quais são os ingredientes de um grande livro. De certa maneira, é como se existisse a receita (lista dos elementos necessários), mas fosse muito difícil encontrar os componentes, saber como misturá-los e em que doses usar cada um. Ainda assim, saber de que se faz uma obra-prima pode ser muito útil tanto para quem julga quanto para quem tenta chegar lá. Sem contar o leitor que pode, então, ver mais claro num universo muitas vezes considerado, por interesse, misterioso ou aleatório.

Toda obra-prima contém em algum grau pelo menos um dos seguintes elementos: 1) um novo conteúdo; 2) uma nova forma; 3) um novo ponto de vista ou um novo foco; 4) um alto grau de legitimação autoral (legitimação pelo autor) ou ponto de credibilidade externo; 5) um intenso efeito de imaginário. De algum modo, isso parecerá óbvio, embora, como sistematização, ilumine um pouco o que se prefere, muitas vezes, crer obscuro. Além disso, ajuda a julgar também os julgadores. A obra será sempre maior na medida em que contemplar o maior número dos requisitos apresentados acima.

Vamos por partes. 1) Um novo conteúdo: uma história totalmente original ou informações absolutamente novas para uma história conhecida. A literatura segue as leis da natureza. No começo, todas as histórias eram novas, pois ainda não haviam sido escritas. Com o passar do tempo e com a chegada e a consolidação da indústria editorial, as histórias novas foram escasseando até se tornar produtos raros. A apropriação de histórias novas avançou com a invenção dos gêneros até atingir o ponto atual. De Homero a Balzac e Flaubert, para tomar apenas alguns nomes de referência, a busca de uma nova forma esteve ancorada em novos conteúdos.

Quando os novos conteúdos se tornaram raros, os autores investiram mais fortemente do que nunca em 2) uma nova forma: uma revolução do texto, indo da busca da transparência total ao mais obscuro possível, da linguagem mais estetizada ao maior grau de reprodução da linguagem oral e coloquial. Em termos simplificadores, pode-se dizer que James Joyce é o exemplo mais acabado da busca de uma nova forma. Nada disso é necessariamente cronólogico. A todo momento, alguém investe numa ou noutra dessas ênfases literárias.

Num tempo de saturação das novas formas modernas, já envelhecidas (o obscuro como adensamento da linguagem não funciona mais), a busca de 3) um novo ponto de vista (do narrador, interno ao texto) converteu-se numa corrida ao paraíso. A questão é de onde se conta a história ou quem (e de onde) conta a história. Isso não é novo, embora esteja num momento de apogeu, e um dos melhores exemplos clássicos desse procedimento é o de Kafka em “A metamorfose”. O texto de Kafka nesse livro é quase denotativo, liso, transparente, ao alcance de qualquer um. A grande sacada está no ponto de vista, a história focalizada num homem que acorda transformado num inseto repugnante.

Esse foco gera um novo conteúdo. A diferença entre ponto de vista e foco é sutil. O ponto de vista, rigorosamente falando, pode e deve ser redundante: a narração pelos olhos de um narrador e personagem. O foco é o ponto de vista tomado pelo autor (escritor) embora a história seja contada por um narrador onisciente (invisível). No Rio Grande do Sul, faz pouco, Letícia Wierchowsky fez muito sucesso ao recontar a Revolução Farroupilha pelo olhar das mulheres. A grande novidade foi essa. Um novo ponto de vista pode mudar uma velha história e, nesse sentido, produzir um novo conteúdo.

O ponto de vista interno torna-se mais complexo ao ser cruzado com 4) um alto fator de legitimação pelo autor (algo que dá credibilidade ao autor para contar aquela história e reforça o ponto de vista escolhido). Para contar a história de um mago é preciso ser um mago ou convencer os leitores de que se é um mago. Paulo Coelho é o exemplo perfeito. Carlos Castañeda fez algo semelhantes em se tratando de ritos de iniciacão. Voltando ao romance A Casa das Sete Mulheres, pode-se observar que a história é narrada por uma personagem mulher (ponto de vista), focalizada em outras seis mulheres e escrita por uma mulher (Letícia). Só faltou um alto fator de legitimação externo, por exemplo, a autora ser descendente direta de um dos líderes revolucionários ou de uma das mulheres da casa descrita, o que seria ideal.

Por fim, 5) um efeito de imaginário (capacidade de acionar os mecanismos que mexem a com nossa imaginação e com o nosso patrimônio imaginário acumulado). O efeito de imaginário pode ser construtivo (consolidar um mito, fundar uma mitologia, reforçar o imaginário cristalizado) ou de descontrução (desmitificar). Erico Verissimo, com “O Tempo e o Vento”, ajudou a consolidar o imaginário gaúcho. Na contramão, é sempre mais difícil. Ciro Martins, com “A Trilogia do Gaúcho a Pé”, tentou desconstruir a mitologia gaúcha. Para muitos, sempre foi um escritor menor do que Erico. Por quê?

Uma das ilusões do leitor, ou umas das deformações da percepção do literato, é imaginar que a qualidade se define sempre pelo primor da narrativa, do texto, sempre imaginado como uma elaboração lírica ou liricizante ou absolutamente diferente da fala “normal”. Uma obra-prima não precisa ter um grande texto nem sequer uma grande história. Se mexer com o imaginário dominante, explode. Isso significa capacidade para criar personagens simples e profundos que sintetizem mundos complexos e movediços; e gerar universos imaginários capazes de sintetizar realidades intrincadas e de difícil apreensão. Os exemplos disso são intermináveis. O mais famoso é o de D. Quixote. Mas pode-se lembrar também um Julien Sorel e uma Capitu. Ou, quanto ao outro aspecto, uma Macondo.

É verdade que o último aspecto, o fator de imaginário, só se percebe realmente depois da obra pronta ou até da sua recepção pelo público. Os outros podem ser percebidos com muita consistência antes da primeira linha de um livro, no projeto. Roland Barthes falou de efeito de real, examinado um conto de Flaubert, para um elemento sem aparente função na história ou no seu cenário, mas que está ali para dar “realidade”, “credibilidade”, “verossimilhança”. No best-seller “Código da Vinci” um dos personagens principais, um eminente historiador, usa um relógio do Mickey. Percebe-se que o autor quer criar um efeito de imaginário, ancorar sua narrativa no patrimônio imaginário de uma cultura.

Dan Brown, a exemplo de Paulo Coelho, toca o imaginário dominante. Não se trata aqui de defender o seu livro, bastante enfadonho para quem prefere alta literatura, mas de explicar o seu sucesso. O autor manipula cinco elementos decisivos do imaginário atual: 1) esoterismo (mistérios, dogmas, religião), 2) interatividade (charadas, simulação de participação, fazendo com o que o leitor se sinta inteligente ao resolver problemas nem tão complicados assim, mas com essa aparência em função dos mecanismos utilizados para dar legitimidade e atmosfera, obras clássicos, gênios de todos os tempos) e 3) utilidade lúdica (o leitor sente-se aprendendo coisas importantes sobre religião e arte; aprende brincando, jogando, sentindo prazer). Não bastasse isso, Brown explora 4) o imaginário turístico consolidado, a idéia de evasão: lugares míticos da evasão turística da cultura atual. 5) Por fim, recorre a gênios, mitos e celebridades.

Cabe lembrar uma diferença básica entre arte e indústria cultura: a arte busca produzir choques na percepção do destinatário. A indústria cultural quer produzir identificação, reconhecimento, justaposição entre o produzido e o imaginário do receptor. A arte desafia; a indústria cultural, quer satisfazer; a arte provoca; a indústria cultural, tenta identificar o interesse do cliente para dar o que ele deseja.

A arte busca conexões e conflitos; a indústria cultural, correspondência e auto-satisfação. Isso, mais uma vez, explica o sucesso de Paulo Coelho e Dan Brown. Ambos apelam ao lastro real, ou seja, fazem ficção como se fosse reportagem, uma literatura-realidade. O leitor é convidado a verificar, indo ao Louvre ver a “Mona Lisa”, por exemplo, se é “verdade” o que diz o livro de Brown.

A literatura está condicionada pela busca de novidade e de originalidade. Houve um tempo em que a epopéia -a grande história por excelência- era a grande ambição de um escritor. Hoje, em tempos de cansaço em relação ao grandiloqüente e de escassez de sagas e grandes mitos, aposta-se cada vez no contrário – a narrativa do minúsculo, do delicado, do cotidiano, do infinitamente pessoal, na escala de todo mundo, de ninguém, do ser anônimo. Estratégias em busca de um novo ponto de vista, de um novo ponto de credibilidade e de novos efeitos de imaginário.

William Shakespeare, Tolstói, Dostoiévski e Balzac foram craques em preencher praticamente todos os elementos listados aqui: encontravam conteúdos novos, geravam formas novas, inventavam novos pontos de vista, adotavam novos focos e tocavam profundamente os imaginários, construindo ou não.

Um candidato a escritor com grande ambição deve, antes de começar a escrever a sua tão sonhada obra-prima, perguntar-se: tenho um novo conteúdo? Uma nova forma? Um novo ponto de vista? Um alto grau de legitimação autoral externa e um bom efeito de imaginário? Se não tiver nenhum desses ingredientes, melhor nem começar. Ou moderar o apetite.

Cada um pode testar sozinho. Nenhuma obra-prima existe sem algum ou vários dos elementos analisados aqui. Pode-se, claro, escrever livros sem isso e ter êxito, mas aí é como fazer uma reprodução da “Mosa Lisa” ou executar com talento uma composição de Mozart: exige competência, muita até, claro, embora seja uma competência de segunda ordem, não da esfera primeira da criação. O título correto deste texto deveria ser “de que é feita uma obra-prima?”. Seria menos chamativo. Como tal, fadado ao silêncio da leitura.

De agora em diante, a literatura será feita por redatores publicitários em departamentos de marketing. Cada personagem e situação dramática será submetida a pesquisa de mercado. O leitor nunca mais deixará de ser um consumidor satisfeito.


Juremir Machado da Silva
É escritor e jornalista, professor da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e autor de "O Pensamento do Fim do Século" (L&PM) e "Cai a Noite Sobre Palomas" (romance, Sulina), entre outros. É tradutor de "Partículas Elementares" e de "Extensão do Domínio da Luta".

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