sexta-feira, janeiro 19, 2007

Estudo revela base química de "droga do esquecimento"

Cientistas do RS investigam proteínas ligadas à manutenção das memórias

Pesquisadores sabotaram memória de longo prazo em ratos, o que pode levar a criar medicação que apague lembranças seletivamente

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL


Uma série de experimentos conduzidos por um grupo de pesquisadores de Porto Alegre está ampliando a perspectiva de que, no futuro, seja possível criar uma droga do esquecimento. O grupo do neurocientista Iván Izquierdo, no Centro de Memória da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), publica neste mês dois estudos que mostram em detalhe o papel de moléculas candidatas a alvo de fármacos com essa finalidade.
Por enquanto, o apagamento de memórias indesejadas com tratamento médico está disponível apenas em filmes de ficção científica, como "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças". O grupo de Izquierdo, porém, mostrou que é possível sabotar memórias de longo prazo num experimento com ratos, atacando algumas proteínas no cérebro.
"Hoje se discute muito a clonagem, mas ninguém fala da possibilidade certa que teremos no futuro -acho que em uns 20 ou 25 anos- de modificar seletivamente as nossas lembranças", diz Martín Cammarota, principal parceiro de Izquierdo e líder de um estudo sobre o assunto publicado na edição deste mês da revista "Learning and Memory".
"Se existir um jeito de apagar memórias particulares, a indústria farmacêutica não deixaria de faturar em cima. Venderia mais do que Prozac e Viagra juntos", diz. O medicamento poderia servir, por exemplo, para tratar casos de estresse pós-traumático, de soldados a vítimas de violência urbana
Os experimentos de Cammarota e Izquierdo com ratos ainda estão longe de ser algo aplicável a humanos, pois poderiam trazer graves lesões. Os resultados, porém, estão ajudando aos poucos a descobrir quais são os processos e as moléculas envolvidos. A principal delas é uma proteína batizada BDNF, responsável por desencadear uma série de reações dos neurônios que sustentam memórias de longo prazo.
Ao lado de outros colegas, os cientistas descobriram que, para fazer um trabalho de "ajuste e manutenção" das lembranças, essa molécula exerce uma função importante em uma região do cérebro chamada hipocampo. A descoberta rompe com teorias anteriores, segundo as quais essa região cerebral só é importante no momento da formação das memórias.
Em estudo na edição de hoje da revista "Neuron", os cientistas relatam como a BDNF atua em diversos momentos do estabelecimento das memórias de longo prazo.

Lembranças paradoxais
O problema com mais implicações filosóficas investigado pelo grupo da PUC-RS, porém, diz respeito a um paradoxo que envolve o ato de lembrar. Memórias de longo prazo (semanas, meses ou anos) em geral se sustentam quase inabaláveis num cérebro saudável- desde que não sejam muito usadas.
Segundo Cammarota, quando uma memória antiga vem à tona para a compreensão de um contexto vivido em dado momento, o cérebro a reabre para modificá-la e depois guardá-la novamente. É nesse momento que uma eventual "droga do esquecimento" poderia fazer efeito, pois esse processo requer a produção de uma série de proteínas pelo cérebro, incluindo a BDNF.
"Num experimento, isso acontece quando o animal se lembra de um objeto em um contexto diferente", diz Cammarota. "Se eu bloqueio a síntese das proteínas, o animal esquece completamente o objeto que já era conhecido antes."
Mas onde está o paradoxo? A "memória mais confiável", que mais conserva sua forma original, é "aquela que quase nunca utilizamos", diz o cientista. Por outro lado, a falta de uso prolongada aumenta a probabilidade de esquecê-la totalmente.
Para Cammarota, elucidar essa contradição é um problema fundamental da biologia. Não há motivo aparente para o cérebro colocar em risco as informações de que mais precisa.

E as implicações filosóficas? "As memórias dizem respeito a quem somos nós", diz o neurocientista. "Nós somos o que nós lembramos que somos."


"Se existir um jeito de apagar memórias particulares, a indústria farmacêutica não deixaria de faturar em cima. Venderia mais do que Prozac e Viagra juntos"
MARTÍN CAMMAROTA
neurocientista argentino

Nenhum comentário: