terça-feira, janeiro 02, 2007

Organizar o delírio

Por Vladimir Safatle

A trajetória de Pierre Boulez, que faz 80 anos, reflete os desafios da composição musical nas últimas décadas

« Donner la force de rompre les regles dans l´acte qui les fait jouer »1
Michel Foucault



Em março, Pierre Boulez fez 80 anos. No Brasil, esta data foi comemorada através do lançamento, enfim, de CDs com algumas obras maiores do repertório do século XX, como “Le marteau sans maître” e “Sonata para piano I”. Na França, a ocasião serviu para o lançamento de duas compilações de textos de Boulez: “Leçons de musique” e “Regards sur autrui”.

Textos escritos nos últimos 20 anos e que dão continuidade a uma grande obra ensaística, fundamental para o debate musical da atualidade. No entanto, ao invés de simplesmente fazer a recensão desses novos lançamentos, valeria a pena aproveitar o significado desta data para colocar uma pergunta que merece ser posta: o que a reflexão sobre a trajetória musical de Pierre Boulez pode fornecer para uma tentativa de apreender as tarefas das práticas composicionais na atualidade?

De fato, esta não é uma simples pergunta, até porque o compositor em questão não é destas figuras que se deixam apreender facilmente. A complexidade de sua trajetória diz muito sobre os desafios postos à composição musical nos últimos 50 anos. Desafios a respeito dos quais ainda não temos um padrão claro de avaliação. Por outro lado, quando o assunto é Boulez, preferimos normalmente nos perder nas intermináveis querelas sobre sua “personalidade autoritária” coroada, por Georges Pompidou, com um centro de pesquisas (Ircam, em Paris) e um conjunto orquestral (Ensemble Intercontemporain) que absorvem praticamente metade da verba destinada à música na França.

Isto, quando simplesmente não deixamos de lado o compositor para falar do maestro Pierre Boulez, responsável maior pela divulgação da música contemporânea, quando esteve à frente de alguma das orquestras mais importantes do mundo (Filarmônica de Nova York, Sinfônica da BBC, Cleveland, entre outras). Mas nada disto é realmente relevante quando nos deparamos com a obra até agora deixada por Pierre Boulez.


Série e forma crítica

O nome de Pierre Boulez será associado definitivamente à experiência do serialismo integral. Juntamente com Stockhausen, ele foi um dos maiores nomes daquilo que ficou conhecido como Escola de Darmstadt, cidade na qual Boulez lecionou até 1964.

Sua obra trazia a marca de sua dupla formação. Ele foi aluno de René Leibowitz, maestro responsável pela introdução do dodecafonismo na França, e de Olivier Messiaen, músico cujo trabalho não se encaixa em nenhuma grande corrente da música do século XX e cujas reflexões a respeito dos modos de valores e intensidades demonstraram com era possível racionalizar outras parâmetros musicais, para além da altura. De um, ele herdou a exigência de que o pensamento musical é necessariamente um pensamento serial. Do outro, ele herdou a compreensão de que a música é mais do que a organização de alturas e intervalos.

Aqui, vale a pena fazer algumas considerações gerais para compreendermos a importância da experiência composicional do jovem Boulez. Conhecemos, por exemplo, um dos impulsos hegemônicos de crítica à aparência estética no modernismo. Encontramos um caso paradigmático de tal impulso na crítica que animou Schoenberg em seu período dodecafônico estrito, este que se inaugura com a valsa das “Cinco peças para piano”, de 1923, e vai até 1933.

Schoenberg procura uma forma estética capaz de criticar a linguagem reificada do tonalismo que aparece como bloqueio às aspirações de uma “paixão pela verdade por trás das mediações e das máscaras burguesas da violência”2. Impulso modernista por excelência, a exigência de que a obra artística seja portadora de um conteúdo de verdade vira-se contra a violência de uma organização funcional falsa por naturalizar a aparência de organicidade sintética.

Tal exigência será preenchida por Schoenberg através da idéia de série. Pois, ao racionalizar todas as incidências do material musical através do primado da série, primado que faz com que cada evento seja automaticamente reportado a este padrão transcendental de justificação que é a série, a música poderia se liberar da aparência costurada pela naturalização do sistema tonal. Ao colocar a música sob o signo do combate à aparência e do desvelamento da estrutura, Schoenberg pode recuperar exigências de verdade a partir da constituição de um sistema de produção de sentido.

Desta maneira, a forma crítica deveria ser forma que expõe, em uma “correta distância”, seu próprio processo de construção (a série), forma que já traz em si a negação da naturalização da sua aparência como totalidade funcional. Assim, a tomada de consciência resultante do trabalho da forma crítica pressuporia a possibilidade, mesmo que utópica, de processos de interpretação capazes de instaurar um regime de relações não-reificadas que garantam a transparência da totalidade dos mecanismos de produção do sentido. A forma crítica viraria, pois, “descrição das estruturas que, em última instância, definem o campo de toda significação possível”3. E o que seria a audição estrutural a não ser o resultado desta crença em um horizonte de transparência do sentido?

Daí porque Schoenberg pode afirmar, por exemplo: “Minha música não parte da visão de um todo, mas é construída de cima para baixo de acordo com um plano e esquema pré-concebido mas sem uma verdadeira idéia visualizada do todo”4. Ou seja, ela não naturaliza totalidades funcionais (como no caso da música tonal), mas expõe claramente seu processo de construção através da posição do plano e do esquema. Isto permite levar o sujeito a ouvir a estrutura e o plano construtivo.

Este é o sentido fundamental da “audição estrutural” exigida por Schoenberg. Pois, para o Schoenberg do período dodecafônico, a verdade era uma questão de construção formal coerente, e não de adequação a regras naturais de disposição do sonoro. Neste sentido, podemos seguir a afirmação feliz de Antonia Soulez: “Segundo Schoenberg, que toma do lógico este ideal sintático do verdadeiro, a música pensa na mesma medida em que, por e através dela, articulam-se leis do verdadeiro segundo uma certa gramática”5.

O dodecafonismo seria assim a realização da aspiração schoenbergiana de pensar a verdade na música como necessidade formal de sentido e coerência, a verdade como uma questão sintática de procedimentos de construção. Ele permitiria uma “clarificação progressiva do material musical” através de um combate contra tudo o que é ornamento. Ele participaria assim de todo um impulso partilhado pelo modernismo vienense de, por que não dizer as coisas de forma clara, “crítica do fetichismo através da reconstrução de um pensamento estrutural baseado em uma racionalidade de inspiração matemática”. Não seria extemporâneo encontrar similitudes estratégicas entre as “construções racionais” de Schoenberg, Loos e os arquitetos da Bauhaus. Como dirá Schoenberg em uma conferência de 1928: “Faz-se música a partir de conceitos”, conceitos compreendidos aqui como processos construtivos de relação e não como indexação prévia da particularidade do caso sob o genérico da estrutura.

Sabemos como algo desta noção de forma crítica capaz de desvelar a aparência estética servirá de guia para boa parte da vanguarda musical da última metade do século XX. É pensando no advento de tal forma que Pierre Boulez, por exemplo, falará de uma “necessidade incontornável da linguagem musical” que deve obedecer a “leis absolutas da história”.

Boulez quer com isto levar ao extremo a “desnaturalização” da racionalidade musical do tonalismo. “A era de Rameau e seus princípios naturais está definitivamente abolida”, diz Boulez, a fim de insistir que nenhum resquício da linguagem musical deve ficar imune a uma crítica da reificação: “A este que irão me objetar que, partindo do fenômeno concreto, obedecem à natureza, às leis da natureza, eu responderei, sempre segundo Rougier: ‘damos o nome de leis da natureza à fórmulas que simbolizam a rotina da experiência’”6.

Tal crítica à reificação da linguagem musical não irá poupar sequer Schoenberg. Ao contrário, o dodecafonismo de Schoenberg aparece para Boulez como um fracasso histórico, como um “romantismo-classicismo deformado”. Para Boulez, se a música serial de Schoenberg estava destinada ao fracasso, era porque “a exploração do domínio serial foi feito de maneira unilateral; falta o plano rítmico, e mesmo o plano sonoro propriamente dito, as intensidades e os ataques”. Ou seja, “a série intervém, em Schoenberg, como um mínimo denominador comum para assegurar a unidade semântica da obra; mas que os elementos da linguagem assim obtidos são organizados por uma retórica preexistente”7.

O que Boulez afirma é: o dodecafonismo não realizou seu programa de nos liberar de toda aderência natural aos materiais. Isto, só um serialismo integral, procedimento que submeta todos os parâmetros sonoros (intensidade, duração, altura e timbre) a um pensamento serial, poderá realizar. Assim, Boulez poderá dizer: “As funções harmônicas, por exemplo, não saberiam colocar-se agora como funções permanentes; os fenômenos de tensão-distensão não se colocam em absoluto nos mesmo termos que outrora e, sobretudo, não mais de maneira fixa e peremptória”8.

Boulez leva assim o ideal construtivo do pensamento serial dodecafônico ao extremo. Este ideal construtivo enquanto verdade da forma musical não teme em seguir uma tendência várias vezes presentes no modernismo: a reconstrução da racionalidade da forma musical a partir de parâmetros fornecidos pela racionalização científica. “Quando se estuda o pensamento dos matemáticos ou dos físicos de nossa época sobre as estruturas (do pensamento lógico, das matemáticas, da teoria física...), percebe-se, claramente, o imenso caminho que os músicos ainda devem percorrer antes de chegar à coesão de uma síntese geral”9.

A afirmação não podia ser mais clara: o ideal da razão musical deve ser procurada no pensamento estrutural que anima as matemáticas e a ciência. Fato que não escapou a Adorno: “Podemos dizer que os serialistas não inventaram arbitrariamente a matematização da música, mas confirmaram um desenvolvimento que Max Weber, na sua sociologia da música, identificou como a tendência dominante da mais recente história musical -a progressiva racionalização da música. Ela alcança sua realização na construção integral”10.

Mas sigamos ainda Boulez. O termo “estrutura” não é aqui aleatório. De fato, há um certo estruturalismo musical em Boulez que é claramente assumido pelo próprio. O material musical vale integralmente devido às relações que ele estabelece. Boulez, citando Rougier, define seu programa: “O método axiomático permite construir teorias puramente formais que são redes de relações, deduções totalmente prontas. Desde então, uma mesma forma pode ser aplicada a diversas matérias, a conjuntos de objetos de natureza diferente, à única condição que estes objetos respeitem entre eles as mesmas relações que aquelas enunciadas entre os símbolos não definidos da teoria. Parece-me que tal enunciado é fundamental para o pensamento musical atual; notemos principalmente a última parte”11. Isto apenas mostra claramente como, para Boulez, e agora seguindo textualmente Lévi-Strauss, não haveria oposição alguma entre forma e conteúdo (entendido aqui como o material musical), pois a forma já organiza as possibilidades de significação da matéria a ser formada.

Esta racionalidade musical é capaz até mesmo de englobar a irracionalidade do acaso como elemento estruturador de seus procedimentos. É isto que vemos no texto “Alea”. Pensando principalmente na “música da indeterminação” própria à John Cage e em seu impulso de “perda total do sentido global da obra”, Boulez procura transformar o acaso em elemento construtivo previamente codificado. “Busca-se desesperadamente dominar um material por meio de esforço árduo, tenso, vigilante e por desespero o acaso subsiste e se introduz por mil frestas impossíveis de calafetar... ‘E está bom assim!’ Não obstante, o último ardil do compositor não seria absorver esse acaso? Por que não domesticar esse potencial e forçá-lo a dar-se conta e a prestar contas? Introduzir o acaso na composição? Será loucura, ou ainda, uma tentativa vã? Pode ser loucura, mas uma loucura útil. De qualquer modo, adotar o acaso por fraqueza, por facilidade, entregar-se a ele, é uma forma de renúncia que se subscreve sem negar todas as prerrogativas e hierarquias envolvidas na obra criada. Como conciliar então composição e acaso?”12.

1 - "Dar a força de romper as regras no ato mesmo que as implementa."

2 - ADORNO, “Filosofia da nova música”, p. 155.

3 - PRADO JR., “Alguns ensaios”, p. 210 .

4 - SCHOENBERG, “Style and idea”, p. 107.

5 - BOULEZ, « Schönberg: penseur de la forme », p. 120.

6 - BOULEZ, « Penser la musique aujourd’hui », p 31.

7 - BOULEZ, “Apontamentos de aprendiz”, p. 244.

8 - BOULEZ, « Penser la musique », p. 25.

9 - BOULEZ, idem, p. 28.

10 - ADORNO, “Dificuldades”, p. 657.

11 - BOULEZ, idem, p. 29.

12 - BOULEZ, “Apontamentos de aprendiz”, p. 47.

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