domingo, outubro 23, 2005

Brasileiros relutam em proibir a venda de armas

Sufocada pela violência urbana, a população vota num referendo o comércio de armas, que matam cerca de cem pessoas por dia. Partidários do "não" acusam governo de não garantir segurança

Annie Gasnier - Le Monde
Correspondente em São Paulo

Trinta e seis mil cruzes em poliestireno branco flutuavam durante o fim de semana passado na superfície da Lagoa do Rio de Janeiro. Cada uma delas simbolizava uma pessoa vítima de uma arma de fogo em 2004, num ato a favor do desarmamento. Os brasileiros votam, neste domingo (23/10), para responder por referendo à seguinte pergunta: deve o comércio das armas de fogo e de munições ser proibido?

Com 99 mortos por dia, o Brasil, sem guerra nem guerrilha, está classificado pela ONU em primeiro lugar no ranking dos países com a maior quantidade de mortes por armas de fogo.

Isso sem contar os 20 mil feridos e as 50 mil pessoas condenadas a se locomover de cadeira de rodas. 17 milhões de armas de fogo circulam pelo Brasil afora, sendo que metade delas não está legalmente registrada.

Contudo, a sociedade parece estar duvidando dos benefícios de uma proibição total visando a reduzir a violência, questão esta que, ao menos por alguns dias, se sobrepôs à crise política suscitada pelos escândalos de corrupção que envolvem o partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 52% dos eleitores estariam dispostos a votar "não", segundo uma pesquisa que foi divulgada nesta quarta-feira (19).

Esta projeção não deixa de ser surpreendente, uma vez que no início da campanha, em agosto, uma pesquisa atribuía mais de 80% ao "sim" à proibição. Neste meio tempo, a campanha do referendo gratuita passou a ser veiculada nas rádios e na televisão, com os seus slogans redutores que vão sendo martelados, instalando a confusão nas mentes.

Esses eventos vêm causando desespero entre os defensores do "sim", tais como a socióloga Joséphine Bourgois, da organização não-governamental (ONG) Viva Rio. "É desolador. As estatísticas provam o perigo que representam as armas, a espiral da violência que elas provocam, que elas estejam nas mãos de pessoas honestas ou de bandidos. Mas nós não temos nenhum slogan miraculoso para convencer as pessoas", diz.

Por sua vez, os partidários do "não" utilizam como argumento a legítima defesa. "A proibição não resolve nada; ao contrário, ela retira um direito constitucional do cidadão. Defenda a sua liberdade, vote não", clama a mensagem do campo do "não".

A inversão de tendência da opinião obrigou o campo do "sim" a mudar a sua estratégia, levando-o a demonizar as armas para convencer os indecisos. O seu principal argumento: as armas legalmente adquiridas acabam nas mãos dos bandidos. O jornal "O Estado de S. Paulo" acompanhou o percurso de um revólver roubado de um engenheiro. No espaço de quatro meses, esta arma foi utilizada por uma gangue para efetuar três seqüestros, seis furtos e três assassinatos, sucessivamente.

A atualidade transborda de exemplos. Por exemplo, na segunda-feira (17), a morte de um adolescente, na sala de aulas, abatido acidentalmente por um camarada que havia trazido as armas do seu pai. Ou ainda, um torcedor que foi assassinado na véspera, numa estação do Metrô, horas antes do jogo.

Os crimes que são cometidos no ambiente familiar ou entre amigos representam, segundo pesquisas das universidades de São Paulo e Rio de Janeiro, a metade das mortes violentas. A vingança é o principal motivo desses crimes.

"Sim, nós queremos desarmar os cidadãos honestos, que cometem crimes fúteis relacionados ao consumo do álcool, a ciúmes, a uma disputa no volante ou a uma partida de futebol", explica Raul Jungmann, um deputado do Partido Popular Socialista (ex-comunistas) que é o secretário da Frente Parlamentar por um Brasil Sem Armas.

Por sua vez, a Frente Parlamentar pela Legítima Defesa rebate esta afirmação por intermédio do seu presidente, Alberto Fraga, um antigo coronel da polícia, hoje deputado do Partido da Frente Liberal (PFL, oposição de direita): "O governo não é capaz de oferecer uma boa segurança pública ao cidadão. Portanto, não se pode retirar deste último o direito de escolher se ele quer ou não ter uma arma na sua casa".

Os defensores do "não" denunciam o perigo que representam bandidos muito bem armados demais. Contudo, pesa sobre eles a suspeita de estarem sob a influência do lobby do armamento. O Brasil é o mais importante produtor de armas de pequeno calibre da América do Sul. Esta indústria, que fornece cerca de mil postos de emprego, produz anualmente o equivalente a 85 milhões de euros (R$ 228,70 milhões); 70% das armas são destinadas à exportação.

Desde que o "não" ultrapassou o "sim", as ações da firma Forjas Taurus, que abastece a polícia de Nova York, se valorizaram na Bolsa de São Paulo.

No Rio Grande do Sul, o Estado do país onde a população é a mais armada e onde estão instalados os fabricantes de armas, o secretário da Segurança e da Justiça do Estado, José Germano, defende o "não". "O problema do Brasil não diz respeito ao seu comércio das armas legais, e sim àquelas que entram sem controle pela fronteira", garante.

Contudo, as armas confiscadas dos bandidos mostram que 70% dentre elas são "Made in Brazil".

A incapacidade das autoridades de reprimir a violência urbana, e não só durante o mandato de Lula, age contra a causa do desarmamento. O contexto político, desfavorável ao governo, poderia incitar
também os eleitores a dizerem "não", em vez de responderem à pergunta colocada pelo referendo.

No entanto, a campanha nacional de coleta de armas que teve início em julho de 2004, apoiada por ONGs e pelas Igrejas, havia convencido os brasileiros. Com ela, 440.000 armas foram entregues às autoridades. Durante este período, o número de vítimas de armas de fogo diminuiu de 8%: 3.234 vidas foram salvas.

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