quinta-feira, outubro 13, 2005

Turing e o problema dificil da consciência

João Fonseca


Introdução

O problema de saber se uma máquina poderá um dia vir a pensar inerente ao famoso artigo de Alan Turing, “Computing Machinery and Intelligence”, toca, num certo sentido, um outro problema inegavelmente inquietante em filosofia. Este último problema foi designado por William Seager o problema da geração (the generation problem) (SEAGER, 2001) por David Chalmers o problema difícil da consciência (the hard problem) (CHALMERS, 1997, 1998 e 1999). O problema torna-se difícil precisamente no que toca a explicar como é que a matéria pode gerar consciência ou, doutro modo, como é que os processos físicos do nosso cérebro podem permitir o aparecimento de experiências subjectivas conscientes, como saborear um gelado ou apreciar uma melodia. A dificuldade está em conciliar a nossa visão científica e física do mundo com o surgimento dessa estranha entidade que é a consciência, nas palavras de Seager, um fresco murmúrio de água no meio de um vasto e árido deserto. As respostas ao problema têm sido variadas e podem situar-se entre o extremo da redução materialista até a uma atitude céptica de considerar a consciência como um problema intratável.

Turing, de um modo original, situa-se algures dentro deste espectro. Neste trabalho tentaremos traçar o contraste entre a proposta de Turing e o problema difícil da consciência, procurando testar até que ponto essa proposta nos permite fechar o hiato entre consciência e matéria e resolver a sua incomensurabilidade. Na primeira parte do trabalho apresentamos a sua proposta, na segunda argumentaremos que Turing parece deixar de fora um dos pólos da relação, justamente o mais evidente e fundamental, aquele que nenhum comportamento observável pode garantir: o próprio aspecto subjectivo da experiência consciente. Para isso deitaremos mão das aportações de autores como McGinn, Churchland, Chalmers e Frank Jackson.



A mente computacional e o jogo da imitação

A questão que inquieta Turing no referido artigo de 1950 é a de saber se seria possível construir uma máquina capaz de pensar, o que em última instância implicaria possuir uma definição apropriada da noção de “inteligência”. A sua aproximação a esta questão parte dos seguintes pressupostos. Os meios físicos que usamos para criar funções mentais são irrelevantes, quer usemos uma máquina de Babbage ou um computador digital, poderemos realizar as mesmas funções matemáticas que as que realiza o sistema nervoso. A propriedades mentais são “multiplamente realizáveis”, o que quer dizer que são independentes do suporte físico, do mesmo modo que o software não é redutível ao hardware. Isto significa que existe um isomorfismo entre o nosso sistema nervoso e outros sistemas, como por exemplo os computadores digitais, e esse isomorfismo resulta de ambos executarem operações ou algoritmos de tratamento de símbolos respeitando regras fixas. Nesta acepção todos os processos cognitivos humanos, susceptíveis de serem colocados numa tabela de instruções ou “programa”, podem ser computáveis. A nossa aversão em aceitar este isomorfismo assenta numa “superstição” ou numa espécie de preconceito em relação ao funcionamento de um sistema eléctrico como é o computador digital. Mas o que é fascinante é que os computadores, enquanto máquinas de estado discreto que realizam operações mediante entradas, saídas e estados anteriores bem definidos de modo determinista, são capazes de imitar as mesmas funções matemáticas que o cérebro humano. A radicalidade desta proposta está, pois, no facto de se poder conceber uma máquina universal abstracta (uma máquina de Turing) capaz de realizar todo o tipo de cálculos lógico-matemáticos, apenas usando transformações simbólicas. Isto significa que o uso de uma linguagem comum, abstracta, implementável num cérebro ou numa máquina é susceptível de unificar os dois discursos o mental e o físico. Mas mediante estes pressupostos o que nos pode dizer Turing acerca da questão inicial? Pode efectivamente uma máquina pensar e ser inteligente? A resposta de Turing é que não podemos claramente definir o que é a inteligência, por isso lança uma proposta alternativa, fornecendo-nos uma definição “operacional”, uma definição que escape à ambiguidade da linguagem natural – o jogo da imitação. Turing propõe que consideremos uma máquina inteligente se ela for capaz de passar o jogo da imitação, isto é se for capaz de iludir um interrogador humano a ponto de este pensar que está a comunicar com um ser humano quando na realidade está a obter repostas verbais inteligentes de uma máquina. Ou seja, se uma máquina for capaz de dar um conjunto de respostas, escritas, que seriam naturalmente dadas por um ser humano a ponto de conseguir enganar um interrogador, então teremos que considerar que essa máquina é inteligente. A proposta de Turing é tão séria, que ele supõe que em 50 anos as máquinas serão capazes de ultrapassar o jogo da imitação. No resto do artigo Turing procura responder a um conjunto de objecções possíveis às suas propostas e lamenta-se que várias objecções dos seus adversários retomem, de vários modos, o argumento da consciência. Ora, é precisamente este argumento que nos interessa aqui.[1]



O argumento da consciência

O argumento da consciência diz que uma máquina não pode ser como o cérebro humano enquanto consistir numa manipulação de símbolos, que não compreende o que diz, que não sente o que faz, que não se emociona, que não possui estádios de ânimo. Doutro modo, diríamos, uma máquina não pensa e não é inteligente enquanto não for capaz de experiência subjectiva. Por mais que uma máquina seja capaz de dar respostas escritas idênticas às de um ser humano normal faltar-lhe-á sempre algo que é inerente à inteligência humana. A dificuldade que este argumento deseja colocar sobre a mesa é a de que uma máquina não poderá ser inteligente justamente porque lhe escapa um dos aspectos centrais da nossa vida mental. O teste de Turing não terá sentido enquanto se limitar a ser uma simulação, através da combinação de símbolos, do comportamento linguístico de um ser humano e não apresentar os elementos subjectivos inerentes a esses comportamentos.

Turing, defende-se deste argumento referindo que ele conduz ao solipsismo. A única maneira que teríamos de saber se uma máquina pensa, seria ser máquina; a única maneira que teríamos de saber se um ser humano pensa, seria ser esse ser humano. No entanto, para Turing, este ponto de vista não nos conduz longe, não nos permite avançar na discussão das ideias e por isso o que há de melhor a fazer é aceitar que todos pensam (TURING, 1950).

A resposta de Turing consiste em colocar-nos perante um dilema questionável:

i) ou aceitamos o jogo da imitação ou estamos condenados ao solipsimo;

ii) como este último é insustentável em termos práticos, então aceitemos o jogo da imitação como critério de atribuição do mental;

iii) se aceitarmos este critério não temos que nos preocupar com a consciência, esta acaba por ser explicada pelo próprio jogo.

Uma estratégia de dissolução da própria consciência, como sugere Turing a propósito da pele da cebola. O que resta quando tiramos a pele da cebola? Nada senão a própria pele! Nós perguntaríamos: escolher uma implica ter que aceitar a outra? Não teremos outras alternativas entre o jogo e o solipsismo? Em nosso entender sim, por duas razões principais. Em primeiro lugar porque a recusa do solipsismo não nos conduz inevitavelmente a ter de aceitar um critério meramente comportamental, do mesmo modo que deixar de fumar não implica inevitavelmente engordar (i e ii). Por outro lado a concepção do mental que Turing nos propõe é altamente questionável, porque supõe que o teste da imitação nos diz tudo o que há a dizer sobre a mente (iii).

Relativamente ao primeiro ponto, poderemos estar de acordo com Turing de que por razões práticas devemos aceitar que os outros possuem mente, mas isso não nos conduz inevitavelmente a ter de aceitar o critério comportamental, uma vez que, como defende Colin McGinn, temos ao mesmo tempo de aceitar uma outra probabilidade das nossas crenças do senso comum, a de que a consciência apenas existe em cérebros orgânicos, o que não seria compatível com a proposta da múltipla realização de Turing (McGINN , 1999). Trata-se claramente de uma aposta, mas uma aposta baseada na probabilidade indutiva (obviamente não definitiva em termos lógicos). A posição de McGinn, incluída na posição dos “misterianos” (mysterians) contrasta com a suposição optimista de Turing e defende que enquanto não soubermos o que existe no cérebro, qual a propriedade X que permite gerar a consciência, então a questão da consciência permanece um mistério e por isso em relação à questão de saber se as máquinas podem pensar de modo inteligente e consciente devemos permanecer agnósticos. Além disso, recusar o solipsismo não implica necessariamente ter de aceitar o jogo da imitação por outra razão. Podemos, por exemplo, supor a alternativa de analisar a estrutura causal e física que gera a consciência, tal como a preconiza o reducionismo neurofisiológico de Churchland. Paul Churchland, em The Engine of Reason, the Seat of the Soul, defende que Turing usou um critério provisório por não possuir uma teoria adequada do que é a inteligência (CHURCHLAND, 1995). Isso não significa, como defende McGinn, que haja um problema de mistério acerca da consciência, dado que o facto de haver um mistério X acerca da consciência esse mistério apenas é relativo a nós, aos nossos conhecimentos, e não à consciência. Para Churchland os fenómenos mentais podem ser analisados empiricamente e só uma neurociência completa poderia desfazer a ilusão do hiato que existe entre realidade física e experiência consciente. As tentativas actuais de reconstrução computacional dinâmica de sensações como o odor e as cores são a prova de que só a análise da estrutura do cérebro pode resolver o problema da experiência consciente. É analisando as causas físicas do comportamento inteligente e não a sua manifestação exterior que podemos saber se o um ser é consciente, se possui mente, se é capaz de pensar. Isto não significa que a nossa posição seja a de Churchland, mas apresentamos aqui este ponto de vista apenas para mostrar que existem alternativas ao falso dilema em que Turing nos quer fazer cair.

Finalmente gostaríamos de considerar o segundo aspecto: será a mente como nos propõe a analogia da pele de cebola? O teste diz-nos efectivamente tudo o que há a dizer sobre a mente e por isso resolve o hard problem? Em relação a esta questão as propostas dividem-se: Turing implicitamente sugere que sim; McGinn considera que não, dado que os computadores são como uma espécie de baterista surdo que manipulando símbolos e algoritmos é incapaz de ouvir os sons que produz, ao passo que a inteligência humana é essencialmente semântica (McGINN , 1999)[2]; Churchland, considera que o teste de Turing não resolve o problema, mas uma neurofisiologia completa o poderá fazer. Por fim, Chalmers considera que só uma teoria completa da consciência, que a considere uma característica fundamental da realidade com as suas próprias leis psicofísicas, poderá em termos relativos construir uma ponte capaz de fechar o hiato.[3]

Quanto a este segundo aspecto pensamos ser possível estabelecer um paralelo com o argumento do conhecimento de Frank Jackson (JACKSON, 1999). O que este argumento pretende demonstrar é que os qualia, as nossas experiências subjectivas, como saborear um limão, cheirar uma rosa, sentir comichões, ficam de fora de uma abordagem estritamente fisicalista. Mesmo possuindo toda a informação possível sobre um sistema físico como o cérebro, ao contrário do que defende Churchland, ainda nos resta algo por explicar. Ora, não será uma conclusão semelhante a que podemos extrair da proposta de Turing? Construindo uma máquina, totalmente física, capaz de dar respostas semelhantes às de um ser humano normal, não resta mesmo assim algo de fora? Em nosso entender fica, há algo que parece sobrar. Do mesmo modo que uma descrição completa de um sistema físico como o cérebro, deixa de fora os qualia, também uma máquina que se comporte verbalmente como um ser humano não parece estabelecer um critério necessário e suficiente da consciência, o próprio carácter subjectivo da consciência não é explicado. Não é suficiente, porque a sensação subjectiva de um quale não é igual ao comportamento físico, comportamento este que pode ser falível, como defende McGinn. Sabemos pelas aportações da psicologia que a necessidade de parecer calmo ou valente pode levar a expressões voluntárias que simulam padrões faciais da emoção sem haver mesmo a activação da emoção correspondente. Os próprios termos verbais que usamos para descrever estados interiores, como os emocionais, são construções arbitrárias que não se adequam, por exemplo, ao próprio desenvolvimento ontogénico e à constante dependência da emoção face à cognição (KAGAN, 1984). Mesmo a expressão do reconhecimento ou da alegria de uma criança difere bastante da de um adulto, por exemplo. Por outro lado, o teste não é uma condição necessária da consciência, dado que falhar no teste de Turing ou perder uma partida de Xadrez não significa não ser consciente. O teste, além do mais, não considera o que é essencial na consciência, o carácter do que é sentir x, o modo como vivemos as nossas experiências conscientes. Por isso, neste aspecto concordamos com McGinn:

“Para ter a certeza que temos perante nós uma máquina consciente, precisamos de saber o que é a consciência; depois podemos verificar se a máquina a possui. Sabendo apenas que ela actua como se fosse consciente não resolve a questão.” (McGINN , 1999, p. 191)

Com a proposta de Turing o hiato permanece por fechar, o fresco murmúrio de água no meio de um vasto e árido deserto não é fácil de se extinguir. Talvez não tenhamos que admitir o pessimismo de McGinn, mas como conclui Jackson temos que nos precaver contra os excessos optimistas dos que pensam ser possível explicar tudo sem deixar nada de fora. Apesar de fecundo, o mecanicismo abstracto de Turing falha por isso mesmo e por não nos apresentar nenhuma teoria positiva sobre a consciência. Isto não tira, mesmo assim, o mérito a Turing e ao desafio fascinante ainda por resolver de saber se um dia teremos que habitar o mundo com máquinas conscientes.



Referências

CHALMERS, David J. - "The Puzzle of Conscious Experience". In: Scientific American. Special Issue (1997), pp. 30-37

CHALMERS, David J. - "Facing up to the Problem of Counsciousness" . In: SHEAR, J. (ed.) - Explaining Consciousness - The 'Hard Problem'. Cambridge: MIT Press, 1998

CHALMERS, David J. - La mente consciente: en busca de una teoría fundamental. Barcelona: Gedisa Editorial, 199

CHURCHLAND, Paul M. - The Engine of Reason, the Seat of the Soul: A Philosophical Journey into the Brain. Cambridge: MIT Press, 3º ed., 1995

HOFSTADTER, Douglas R. e DENNETT, Daniel (eds.) - The Mind's I: Fantasies and reflections on self and soul. London: Penguin Books, 1982

JACKSON, Frank - "Epiphenomenal Qualia". In: LYCAN, William G. (ed.) - Mind and Cognition: an anthology. Oxford: Blackwell Publishers, 1999, pp. 440-446

KAGAN, Jerome – “The idea of emotion in human development”, In: IZARD, Carrole E., KAGAN, Jerome e ZAJONC, Robert B. - Emotions, cognition and behavior . Cambridge: Cambridge University Press, 1984

McGINN, Colin - The Mysterious Flame: conscious minds in a material world. New York: Basic Books, 1999

RIVIÈRE, Angel – Objetos con mente. Madrid: Alianza Editorial, 1991

SEAGER, William - Theories of consciousness: an introduction and assessment. London: Routledge, 2001

SEARLE, John R. - Mente Cérebro e Ciência. Lisboa: Edições 70, 1997

TURING, Alan M. - “Computing Machinery and Intelligence”. In: Mind. vol. LIX, no. 236 (1950), pp. 433-60.

WILSON, R e KEIL, F (ed.) – The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences. Cambridge: The MIT Press, 1999.




[1] - O texto de Turing é rico em argumentos mas, no sentido de limitar o trabalho, teremos que deixar de fora aspectos como a redução algorítmica da mente, as capacidades informais, etc...

[2] - A ideia de McGinn de que os programas de computadores são semanticamente cegos é bastante próxima do argumento do quarto chinês de John Searle. Não é nossa intenção aqui desenvolver este argumento por nos parecer mais questionável.

[3] - Referimos “em termos relativos” dado que a posição dualista de Chalmers não se identifica com o reducionismo materialista.






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