Acontecimentos recentes envolvendo o abandono de bebês por suas mães acendem a discussão sobre a natureza feminina e a maternidade. Pesquisadora afirma que tudo não passa de convenção social
BRUNA CABRAL
Aquele velho comentário de que mãe é tudo igual, só muda o endereço pode até servir para a ala com mais primaveras contabilizadas da família animar o almoço de Dia das Mães. Mas só pra isso. Muito mais que meia dúzia de sorrisos amarelos, o antigo clichê vale uma discussão bem séria que já começou a ser travada em diversas instâncias. E, recentemente, passou a mobilizar até gente que nunca tinha parado para pensar no assunto. O motivo foi uma série de chocantes casos de infanticídio registrados no País nos últimos quatro meses. Só neste período foram mortos ou abandonados nada menos que seis recém-nascidos das maneiras mais brutais: jogados em lagoas, rios e canais, largados na porta de uma casa, debaixo de um carro ou enrolados num saco plástico e asfixiados. A pergunta que se coloca não poderia ser outra: e o tal “instinto materno” dessas mulheres? Falhou?
Para a pesquisadora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Alcileide Cabral, o questionamento não pode ser tão simplista, pois a resposta é complicada. Segundo ela, muitos fatores têm que ser levados em consideração. “Não dá para sair julgando. Muitas dessas mães são meninas, sem assistência nem do governo nem da família ou dos namorados”, diz, lembrando ainda dos casos de depressão pós-parto, doença que pode levar até mesmo a um quadro de esquizofrenia temporária.
Alcileide explica que o infanticídio não é novidade. Já foi comum em outros momentos da história do País. “No Brasil colonial, era freqüente crianças serem abandonadas nas ruas e devoradas por animais.” Segundo ela, na época, o fato não chocava tanto quanto os abandonos dos dias de hoje. A grande diferença, diz, está no tal instinto que levaria toda menininha a brincar de boneca e toda mulher a realizar um dia sua “grande missão”: perpetuar a espécie. Este, sim, está no centro de todas as discussões recentes em torno da maternidade. Mas, ao contrário do que prega o senso comum, não está em todas as mulheres.
Segundo Alcileide, o que se acredita ser um chamado da natureza, ou necessidade que deveria despertar numa determinada fase da vida, como ocorre com a sexualidade durante a adolescência, na verdade, não passa de uma convenção social. “No século 19, os médicos usaram esse argumento do instinto para determinar o papel da mulher na família nuclear que estava surgindo. Enquanto os homens cuidavam do sustento da casa, a elas cabia ter e criar os filhos.” Mas não bastava ser mãe. Era preciso “padecer no paraíso”. Também engajada nessa “campanha” da nova família, a Igreja católica atribuía um papel quase sagrado às mães, contra-indicando até o sexo durante a amamentação. O exemplo a ser seguido era o da própria Maria. “Mas já no seu surgimento, a idéia trazia contradições, porque também cabia a elas servir aos maridos sexualmente.”
Muito do que se dizia naquela época foi desmistificado. A atmosfera sagrada e ao mesmo tempo “natural” da maternidade, por exemplo, está em crise aguda. Firme e forte, só o conflito feminino. Elas continuam, sim, divididas, mas agora a lista de atribuições cresceu: além dos filhos e do marido, o trabalho tornou-se um projeto grandioso na vida das mulheres. “Não há mais como manter uma família com uma pessoa só trabalhando”, diz a biomédica Marta Medeiros, 34 anos, casada e sem filhos. Por opção. “Finalmente, é possível à mulher escolher se quer viver a maternidade, não é mais obrigatório”, diz a psicóloga Yara Borges.
Marta decidiu não abrir mão da condição financeira que tem com o marido nem do clima de romance. “Não quero anular meus desejos e minhas conquistas profissionais nem dedicar todo o meu tempo a uma criança. O casal precisa de qualidade de vida”, diz.
Exagero? Quem já vivenciou a maternidade garante que não. “É muito complicado ser mãe e boa profissional ao mesmo tempo. A gente se desdobra para estar presente na vida dos filhos e, ao mesmo tempo, dar conta do trabalho”, conta a coordenadora pedagógica Patrícia Fontes, 31, mãe de Ester, 4. Sim, ela planejou sua gravidez, mas definitivamente não quer outra. “Não quero passar por isso de novo”, diz, referindo-se a todo jogo de cintura e culpa que fazem parte do dia-a-dia de uma mãe trabalhadora. “Ester é uma prioridade na minha vida, sim, mas não é a única.”
É pelos mesmos motivos que a designer Patrícia Amorim prorroga o plano de ter filhos. “Meu foco agora está na minha profissão. Prefiro consolidá-la antes”, diz. E, aos 30, ainda não sabe quando chegará “a hora”. Na verdade, não se preocupa com isso. “Acho que não é o papel de mãe que valida a vida de uma mulher. É possível nos envolvermos em outros projetos tão gratificantes quanto a maternidade.”
No caso de Edilene Barros, 31, é ao salão de beleza do qual é proprietária e a seu marido que dedica todo seu amor. E todos os seus instintos femininos. “Acho que a mulher tem, sim, uma coisa de gostar de cuidar, mas não precisa de um filho para realizar isso.” A psicoterapeuta transpessoal Nakeida Lima concorda. Para ela, o conceito de instinto materno, na verdade, é bem mais amplo. “Não se resume ao exercício específico da maternidade. Manifesta-se, além disso, pela expressão da maternagem.” Que seria, segundo ela, uma espécie de vocação para dedicar-se ao outro. Mas isso também não se revela em todas as mulheres. “As pessoas estão mais egoístas e individualistas”, avalia Patrícia Fontes. Além de medrosas. “Um filho é muita responsabilidade, especialmente para as mulheres. Hoje em dia casamento se acaba por nada e sempre sobra para a mãe”, diz Edilene.
E dá voz, segundo Alcileide Cabral, a muitos antepassados. “Aquela idéia da mãe quase-perfeita ainda persegue as mulheres.” A cobrança em cima delas, diz Alcileide, continua muito grande: é preciso amamentar, cuidar, ser paciente e compreensiva e, acima de tudo, amar incondicionalmente. Como se, na prática, elas também não sentissem medo, dúvida, raiva e tudo o que não se diz nos comerciais de pomada contra assadura.
Mas há quem fale. Uma das primeiras a rebater o mito do amor materno, na década de 80, foi a filósofa francesa Elizabeth Badinter. Ela dizia que o amor materno é como qualquer outro: uma construção. Não nasce espontaneamente assim que se tem a notícia de uma gravidez.
SONHO – Embora a idéia não faça mais sentido para todas, ser mãe continua sendo o grande sonho de muitas. Como a contadora Cynthia Monteiro, 30. Há pouco menos de uma semana, ela submeteu-se ao décimo procedimento, entre fertilizações e inseminações, para tentar driblar as dificuldades que tem de engravidar, devido a uma endometriose. Apesar de todas as frustrações que já viveu (como um parto prematuro de trigêmeos aos seis meses de gestação, do qual os dois bebês sobreviventes viveram apenas um dia), ela não titubeia nem um segundo em dizer que será a última vez. “Combinei com minha irmã que se essa tentativa não der certo, a próxima inseminação será feita nela.”
A “barriga de aluguel” será a dentista Patrícia Monteiro, 31, que já tem dois filhos e queria ter bem mais, não fosse o aperto financeiro. Por valorizar tanto o papel de mãe, ela propôs, ao lado do marido, o “aluguel”. “Não vai ser fácil pra mim. Mas já estou com a cabeça feita.” Cynthia também se diz preparada. “Deixarei de viver a gestação, mas a coragem que tive de me submeter a tantas tentativas deixa claro: acredito que todo esforço vale a pena para realizar meu sonho”, garante.J
BRUNA CABRAL
Aquele velho comentário de que mãe é tudo igual, só muda o endereço pode até servir para a ala com mais primaveras contabilizadas da família animar o almoço de Dia das Mães. Mas só pra isso. Muito mais que meia dúzia de sorrisos amarelos, o antigo clichê vale uma discussão bem séria que já começou a ser travada em diversas instâncias. E, recentemente, passou a mobilizar até gente que nunca tinha parado para pensar no assunto. O motivo foi uma série de chocantes casos de infanticídio registrados no País nos últimos quatro meses. Só neste período foram mortos ou abandonados nada menos que seis recém-nascidos das maneiras mais brutais: jogados em lagoas, rios e canais, largados na porta de uma casa, debaixo de um carro ou enrolados num saco plástico e asfixiados. A pergunta que se coloca não poderia ser outra: e o tal “instinto materno” dessas mulheres? Falhou?
Para a pesquisadora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Alcileide Cabral, o questionamento não pode ser tão simplista, pois a resposta é complicada. Segundo ela, muitos fatores têm que ser levados em consideração. “Não dá para sair julgando. Muitas dessas mães são meninas, sem assistência nem do governo nem da família ou dos namorados”, diz, lembrando ainda dos casos de depressão pós-parto, doença que pode levar até mesmo a um quadro de esquizofrenia temporária.
Alcileide explica que o infanticídio não é novidade. Já foi comum em outros momentos da história do País. “No Brasil colonial, era freqüente crianças serem abandonadas nas ruas e devoradas por animais.” Segundo ela, na época, o fato não chocava tanto quanto os abandonos dos dias de hoje. A grande diferença, diz, está no tal instinto que levaria toda menininha a brincar de boneca e toda mulher a realizar um dia sua “grande missão”: perpetuar a espécie. Este, sim, está no centro de todas as discussões recentes em torno da maternidade. Mas, ao contrário do que prega o senso comum, não está em todas as mulheres.
Segundo Alcileide, o que se acredita ser um chamado da natureza, ou necessidade que deveria despertar numa determinada fase da vida, como ocorre com a sexualidade durante a adolescência, na verdade, não passa de uma convenção social. “No século 19, os médicos usaram esse argumento do instinto para determinar o papel da mulher na família nuclear que estava surgindo. Enquanto os homens cuidavam do sustento da casa, a elas cabia ter e criar os filhos.” Mas não bastava ser mãe. Era preciso “padecer no paraíso”. Também engajada nessa “campanha” da nova família, a Igreja católica atribuía um papel quase sagrado às mães, contra-indicando até o sexo durante a amamentação. O exemplo a ser seguido era o da própria Maria. “Mas já no seu surgimento, a idéia trazia contradições, porque também cabia a elas servir aos maridos sexualmente.”
Muito do que se dizia naquela época foi desmistificado. A atmosfera sagrada e ao mesmo tempo “natural” da maternidade, por exemplo, está em crise aguda. Firme e forte, só o conflito feminino. Elas continuam, sim, divididas, mas agora a lista de atribuições cresceu: além dos filhos e do marido, o trabalho tornou-se um projeto grandioso na vida das mulheres. “Não há mais como manter uma família com uma pessoa só trabalhando”, diz a biomédica Marta Medeiros, 34 anos, casada e sem filhos. Por opção. “Finalmente, é possível à mulher escolher se quer viver a maternidade, não é mais obrigatório”, diz a psicóloga Yara Borges.
Marta decidiu não abrir mão da condição financeira que tem com o marido nem do clima de romance. “Não quero anular meus desejos e minhas conquistas profissionais nem dedicar todo o meu tempo a uma criança. O casal precisa de qualidade de vida”, diz.
Exagero? Quem já vivenciou a maternidade garante que não. “É muito complicado ser mãe e boa profissional ao mesmo tempo. A gente se desdobra para estar presente na vida dos filhos e, ao mesmo tempo, dar conta do trabalho”, conta a coordenadora pedagógica Patrícia Fontes, 31, mãe de Ester, 4. Sim, ela planejou sua gravidez, mas definitivamente não quer outra. “Não quero passar por isso de novo”, diz, referindo-se a todo jogo de cintura e culpa que fazem parte do dia-a-dia de uma mãe trabalhadora. “Ester é uma prioridade na minha vida, sim, mas não é a única.”
É pelos mesmos motivos que a designer Patrícia Amorim prorroga o plano de ter filhos. “Meu foco agora está na minha profissão. Prefiro consolidá-la antes”, diz. E, aos 30, ainda não sabe quando chegará “a hora”. Na verdade, não se preocupa com isso. “Acho que não é o papel de mãe que valida a vida de uma mulher. É possível nos envolvermos em outros projetos tão gratificantes quanto a maternidade.”
No caso de Edilene Barros, 31, é ao salão de beleza do qual é proprietária e a seu marido que dedica todo seu amor. E todos os seus instintos femininos. “Acho que a mulher tem, sim, uma coisa de gostar de cuidar, mas não precisa de um filho para realizar isso.” A psicoterapeuta transpessoal Nakeida Lima concorda. Para ela, o conceito de instinto materno, na verdade, é bem mais amplo. “Não se resume ao exercício específico da maternidade. Manifesta-se, além disso, pela expressão da maternagem.” Que seria, segundo ela, uma espécie de vocação para dedicar-se ao outro. Mas isso também não se revela em todas as mulheres. “As pessoas estão mais egoístas e individualistas”, avalia Patrícia Fontes. Além de medrosas. “Um filho é muita responsabilidade, especialmente para as mulheres. Hoje em dia casamento se acaba por nada e sempre sobra para a mãe”, diz Edilene.
E dá voz, segundo Alcileide Cabral, a muitos antepassados. “Aquela idéia da mãe quase-perfeita ainda persegue as mulheres.” A cobrança em cima delas, diz Alcileide, continua muito grande: é preciso amamentar, cuidar, ser paciente e compreensiva e, acima de tudo, amar incondicionalmente. Como se, na prática, elas também não sentissem medo, dúvida, raiva e tudo o que não se diz nos comerciais de pomada contra assadura.
Mas há quem fale. Uma das primeiras a rebater o mito do amor materno, na década de 80, foi a filósofa francesa Elizabeth Badinter. Ela dizia que o amor materno é como qualquer outro: uma construção. Não nasce espontaneamente assim que se tem a notícia de uma gravidez.
SONHO – Embora a idéia não faça mais sentido para todas, ser mãe continua sendo o grande sonho de muitas. Como a contadora Cynthia Monteiro, 30. Há pouco menos de uma semana, ela submeteu-se ao décimo procedimento, entre fertilizações e inseminações, para tentar driblar as dificuldades que tem de engravidar, devido a uma endometriose. Apesar de todas as frustrações que já viveu (como um parto prematuro de trigêmeos aos seis meses de gestação, do qual os dois bebês sobreviventes viveram apenas um dia), ela não titubeia nem um segundo em dizer que será a última vez. “Combinei com minha irmã que se essa tentativa não der certo, a próxima inseminação será feita nela.”
A “barriga de aluguel” será a dentista Patrícia Monteiro, 31, que já tem dois filhos e queria ter bem mais, não fosse o aperto financeiro. Por valorizar tanto o papel de mãe, ela propôs, ao lado do marido, o “aluguel”. “Não vai ser fácil pra mim. Mas já estou com a cabeça feita.” Cynthia também se diz preparada. “Deixarei de viver a gestação, mas a coragem que tive de me submeter a tantas tentativas deixa claro: acredito que todo esforço vale a pena para realizar meu sonho”, garante.J
Nenhum comentário:
Postar um comentário