O romance moderno deve ser entendido como uma construção sem utilidade aparente
Bernardo Carvalho
O ANTROPÓLOGO francês Philippe Descola publicou no ano passado um livro extraordinário, "Par-delà Nature et Culture" (para além de natureza e cultura, ed. Gallimard), em que defendia que a natureza como a concebemos, em oposição ao mundo dos homens, é uma idéia relativamente recente, restrita à modernidade ocidental -e, ao que parece, com data de validade. Em meados dos anos 70, Descola viveu mais de dois anos entre os índios Achuar, na Amazônia equatoriana, próximo à fronteira do Peru. Com base nas anotações dos seus diários de campo, escreveu um belo livro de etnologia, "As Lanças do Crepúsculo" (1993), que agora sai no Brasil pela Cosacnaify.
Os Achuar são índios da etnia Jivaro. Formam uma sociedade remota, isolada dos brancos, fundada no elemento regulador de guerras intestinas e vendetas. Caçam com zarabatanas e andam armados. No passado, os Jivaro eram conhecidos por reduzirem a cabeça dos inimigos mortos, uma prática abandonada pelos Achuar.
Como nas melhores obras de antropologia construídas a partir da experiência de campo, "As Lanças do Crepúsculo" tira da observação de uma sociedade exótica uma série de lições e de alternativas à nossa própria organização social. No caso dos Achuar, essas alternativas vão da "superação de uma dominação frenética da natureza" ao "desaparecimento dos nacionalismos cegos".
No posfácio, Descola reivindica a subjetividade, banida pela etnologia clássica, como um elemento constituinte do conhecimento produzido pelo etnólogo em campo. Nesse sentido, "As Lanças do Crepúsculo" poderia ser lido também como um livro de aventuras. O antropólogo flerta com a literatura -e não apenas ao citar Henri Michaux e Michel Leiris, grandes escritores que criaram obras literárias a partir da experiência da viagem e da etnologia. "Pouco à vontade nas grandes planícies do imaginário, temos de passar por essa obediência servil ao real de que estão desobrigados os poetas e os romancistas. A observação de culturas exóticas torna-se então uma forma de substituição: permite ao etnólogo entrar no mundo da utopia sem submeter-se aos caprichos da inspiração", escreve o autor.
A falta de obediência ao real, que o antropólogo atribui ao ofício do poeta e do romancista, é na verdade uma conquista que corre o risco de desaparecer da literatura ocidental a qualquer momento, quando esta for reduzida a mera função (de conhecimento ou de entretenimento), perdendo ao mesmo tempo a sua liberdade reflexiva e de experimentação. Não é por acaso que a literatura vive hoje acuada entre as exigências do mercado e a prosa de testemunho, o relato que se supõe baseado em fatos reais. O efeito do real atrai leitores.
É fundamental que o romance moderno, pelo menos aquele que não se lê apenas como entretenimento, seja entendido como uma construção sem nenhuma utilidade aparente (não é, em princípio, um instrumento de conhecimento como o relato etnográfico). A inutilidade do romance (ainda mais daquele que não se justifica como bem de mercado) deixa transparecer um mistério e um saudável paradoxo num mundo em que tudo precisa ter uma função: se não serve para nada, por que foi escrito e publicado? E por que lê-lo?
Esta é uma pergunta que o leitor do relato antropológico não faz. Ele sabe por que lê: para conhecer ou para viver uma realidade pelo livro interposto. Ao leitor de romances é dada apenas a consciência de que, como o autor, ele também está livre para inventar outras realidades. A utopia da literatura abre ao leitor um mundo onde alojar a imaginação, evitando reduzir o desígnio que lhe escapa ao sentido de uma função. Ao transformar o mistério e a inutilidade em criação, a literatura dá a cada homem (de resto, como entre os Achuar) a possibilidade de ser o resultado de sua obra.
Na cosmologia animista dos Jivaro, a dicotomia entre cultura e natureza seria uma noção tão absurda quanto a distinção entre real e imaginário que permite não só o trabalho do etnólogo mas a idéia de uma arte, inconcebível fora da modernidade ocidental, reflexiva e experimental. Entre os Achuar, "os tabus atestam uma vontade de conferir ordem e lógica ao caos do mundo social e natural". A literatura e a arte moderna também tentam dar um sentido ao caos, só que pela analogia do caos.
Antes de partir ao encontro dos Achuar, o jovem Descola recebeu um conselho valioso de seu orientador, Claude Lévi-Strauss: "Deixe-se levar pelo campo". A literatura, em contrapartida, resiste ao campo -e o reinventa.
terça-feira, outubro 10, 2006
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