segunda-feira, outubro 02, 2006

Novo livro de Paulo Coelho naufraga em enredo desconexo

MARCELO PEN
Crítico da Folha


Não se pode negar que, em termos literários, este é um dos romances mais ambiciosos do escritor Paulo Coelho. Confrontada com os recursos mínimos de suas narrativas anteriores, esta história de uma líder de seita, contada pela perspectiva de uma dúzia de personagens, parece suntuosa.

Coelho já se aventurou em descrever a história de um personagem pelo enfoque de outro, mas nunca lançou mão de tantos pontos de vista. O recurso não é novo. Remonta aos romances epistolares do século 18. Mais recentemente, o japonês Ryunossuke Akytagawa (1829-1927) articulou, no conto "Dentro do Bosque", uma trama de assassinato descrita por meio de sete relatos.

A técnica serve para quebrar a expectativa de uma narração que parecia apontar para determinado caminho. Também pode sugerir que a apreensão da realidade é algo mais complexo do que insinua o relato tradicional. No conto de Akytagawa, a trama se rearranja a cada nova perspectiva. Põe-se em xeque a possibilidade de se chegar a um quadro objetivo, único, da realidade.

Nada disso, porém, ocorre no livro de Coelho. Os pontos de vista como que se apóiam para contar uma história unívoca, descomplicada como uma cartilha infantil. Uma jovem de origem cigana, adotada por um casal de libaneses, entra em contato com várias doutrinas místicas e passa a divulgar a sua. Em Londres, ela se casa, dá à luz um filho, separa-se e muda-se para Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde atua como corretora de imóveis.

Sua inquietação existencial e religiosa a impele a procurar a mãe na Romênia e a buscar a assistência de uma guru, na Escócia. Com o aperfeiçoamento de suas habilidades espirituais, acaba arrebanhando um séqüito de devotos, que lota seus cultos realizados na Portobello Road, famosa rua de Londres cantada por Cat Stevens e Caetano Veloso. Anuncia-se desde o início um fim trágico para ela.

Dentre os relatos estão o de um jornalista apaixonado pela heroína, o do ex-marido dela, o da mãe adotiva, o de seus mestres e de sua discípula. O problema é que não há basicamente muita diferença entre eles. O depoimento de cada personagem, seja de uma cigana analfabeta dos Cárpatos, seja de um douto historiador, soa-nos igual, com sua fé no sagrado, a naturalidade com que abraçam o sobrenatural e sua tendência em ver a tal bruxa de Portobello da mesmíssima forma.

Também se percebe a falta de cuidado que Coelho dispensa a seus textos. Ele já afirmou em entrevista que escreve como que tomado por uma força maior, evitando quaisquer interrupções a fim de botar no papel, num prazo curtíssimo, a história que vinha ruminando há mais tempo.

Além dos habituais problemas de linguagem e das bobagens ditas como verdades universais ("É claro que todas as crianças do mundo têm visões"), frases inverossímeis ("pode ser a última chance de conversarmos nesta encarnação"; "o Vértice está escondido dentro de nós"), há sérias inconsistências de enredo. Por que, nos perguntamos, a futura sacerdotisa passa necessidade com o marido em Londres, quando os pais dela são "bem estabelecidos" na Inglaterra? Além do mais, ela não poderia ter a idade que o autor lhe atribui caso tivesse presenciado aos 12 anos, conforme ele descreve noutro trecho, a eclosão da guerra civil no Líbano.

Em outro momento, sua mãe de sangue lhe pede para levar uma saia a um centro de devoção na França. Adiante, a filha comenta que o objeto a ser entregue seria um manto.

Mitologia falha


Há falhas também no terreno que Coelho supostamente devia dominar: a mitologia e o misticismo. A bruxa afirma que da deusa grega Gaia (Terra) vieram todos os deuses, "inclusive o nosso caro Dionísio". Não é bem assim. Gaia deu à luz Réia e Cronos, estes sim pais dos deuses, como Zeus e Hera. Dionísio, na verdade, é filho de Zeus com a mortal Sêmele.

Pior, no livro é dito que os deuses "iriam povoar os Campos Elísios da Grécia". Ora, o Elísio é uma região deleitosa do Inferno (após a morte, todos iam para lá; "inferno" simplesmente quer dizer "mundo subterrâneo"), para onde se enviavam as almas dos heróis e dos virtuosos. A maioria dos deuses vivia no Olimpo. Um pouco mais de pesquisa e de crivo reflexivo faria bem a qualquer romance.

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