sábado, setembro 30, 2006

Internet transfere "riqueza" para as redes

Sociedade moderna caminha para uma economia de coletivismo digital, conhecida como Web 2.0, dizem acadêmicos

No "novo mundo", grupos e indivíduos são mais livres do Estado e das corporações hierarquizadas próprios do período industrial anterior

SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON

Há algumas semanas, para comemorar dez anos no ar, a revista eletrônica "Slate" reformulou seu site. Uma das novidades era um mecanismo cada vez mais popular nas publicações on-line: a lista das reportagens mais lidas do dia. Para surpresa da editora Rachel Larimore, o campeão da quarta-feira dia 28 de junho era um artigo intitulado "So Tired" (Tão Cansado), de Paul Boutin.
O fato de um texto do jornalista especializado em novas tecnologias ser o campeão de audiência não a espantava -uma autoridade no assunto, freqüentemente Boutin está na lista dos dez mais de diversos sites. O problema era a data: "So Tired" foi escrito e colocado no ar pela primeira vez em julho de 2004.
Qual o segredo?
O artigo tinha sido "postado" (colocado à disposição) por um leitor saudoso no novíssimo site Digg, com 300 mil usuários registrados e 8,5 milhões de visitantes únicos por mês. O internauta visita o agregador de notícias e submete um texto, não necessariamente inédito nem de autoria própria. A peça recebe uma avaliação dos visitantes. A mais bem-votada vai para o alto de uma lista de notícias na página inicial do Digg.
No final do ano passado, o jornalista aposentado John Seigenthaler resolveu dar uma olhada em seu próprio verbete na enciclopédia virtual aberta Wikipedia. Fundador do Freedom Forum First Amendment Center na Universidade Vanderbilt e ex-editor de opinião do jornal "USA Today", ele estava curioso para saber o que estava escrito sobre ele. No final do texto, encontrou os seguintes parágrafos:
"John Seigenthaler Sr. foi assistente do Procurador-Geral Robert Kennedy nos anos 60. Por um breve período, foi suspeito de ter participado diretamente dos assassinatos tanto de John quanto de seu irmão, Bobby. Nada foi provado." Demorou mais de um mês para que a versão corrigida fosse mantida no ar (não, o jornalista não assassinou JFK ou seu irmão; Seigenthaler ainda não descobriu o autor da piada).
Bem-vindo à Web 2.0. Os dois casos acima, embora extremos, são exemplos da transição pela qual o processo de produção na sociedade contemporânea passa, segundo acadêmicos renomados como Yochai Benkler, da Universidade Yale. De uma sociedade industrial, ou "a sociedade do fim do milênio passado", como disse à Folha Benkler, a uma economia de coletivismo digital.
Nesse admirável mundo novo, que agrega preferências e comportamentos de milhões de pessoas, a mercadoria não é mais material, mas a informação. O lucro vem quase exclusivamente de publicidade e do apoio do Estado e de fundações. Os indivíduos e grupos são mais livres e independentes do tipo de Estado e das corporações hierarquizadas que definiram o período industrial. São recompensados por incentivos não-monetários e atuam de maneira descentralizada.
A "Bíblia" desse novo pensamento é "The Wealth of Networks - How Social Production Transforms Markets and Freedom", "A Riqueza das Redes -Como a Produção Social Transforma Mercados e a Liberdade", livro que o professor de Yale lançou neste ano. O título remete de propósito à "Riqueza das Nações", de Adam Smith (1723-1790), pai da economia moderna e um dos principais teóricos do liberalismo econômico. Nele, Benkler defende que estamos ingressando no sistema de "produção compartilhada por uma comunidade" ("commons-based peer production", em inglês).
"A célebre "mão invisível" assumiu agora a forma de uma nova autonomia, a das forças de oferta e demanda que se contrapõe no universo das redes digitais", escreve Gilson Schwartz, professor de economia da ECA-USP e diretor da Cidade do Conhecimento (leia texto ao lado). Os melhores exemplos disso são sites como os já citados Digg e Wikipedia, mas também o Slashdot, del.icio.us e o popular YouTube, cujo slogan é "seja você mesmo sua própria emissora".
Neles, teoricamente, qualquer um pode contribuir com o conteúdo, e um sistema de pesos e balanços entre os próprios pares controla a qualidade (Teoricamente, pois empresas têm sido obrigadas a restringir seu acesso total por conta de vandalismo digital.)
É a Web 2.0, termo que, por coincidência, é tema de um texto do próprio Paul Boutin, aquele do artigo de 2004 da "Slate". Um tanto idealista? É o que acha também Jaron Lanier, um dos principais críticos de Benkler. Em artigo publicado no site Edge.org, o teórico de tecnologia da Universidade da Califórnia em Berkeley rebatizou o movimento de "maoísmo digital".
Segundo disse à Folha, Lanier acha que o ato de rejeitar a expressão individual e a criatividade para fazer parte de uma massa sem rosto lembra perigosamente a Revolução Cultural que teve início no governo do líder comunista chinês. Questionado se não era só uma picuinha entre Berkeley (berço da contracultura) e Palo Alto (a sede do Vale do Silício), cidades californianas que são opostos complementares, Lanier riu. "Pode ser. Mas que é um pensamento perigoso, isso é."

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