Seis teses sobre as "Teses"
Autômato jogador de xadrez construído
por von Kempelen e desenvolvido por
Johann Maetzel no séc. 19 que inspira
a 1° tese de Benjamin
Jeanne Marie Gagnebin
O texto de Walter Benjamin, "Sobre o conceito de História", também chamado de "Teses de filosofia da história", é bastante conhecido pelo público brasileiro. Por ocasião da publicação do livro de Michael Löwy ( Walter Benjamin: aviso de incêndio, Ed. Boitempo, São Paulo, 2005), que o comenta demoradamente, ganhou uma terceira tradução para o português. Gostaria, nesta pequena apresentação, de oferecer ao leitor alguns elementos de orientação nessas páginas ao mesmo tempo herméticas e fulgurantes.
I - Publicado pela primeira vez em 1942, em um número especial em homenagem a Benjamin da Revista do Instituto de Pesquisa Social, esse texto póstumo não tem versão definitiva. Existem vários manuscritos com número variável de teses. Essa situação reflete o fato de que Benjamin nunca cogitou publicá-lo tal qual quando o escreveu. Ele sabia muito bem que essas "teses" se prestariam a vários "malentendidos entusiasmados", como escreveu em uma carta a Gretel Adorno: esses malentendidos não tardaram a aparecer quando foi finalmente editado. Para Benjamin, as "teses" não têm nenhum caráter definitivo, não são um credo dogmático, mas oferecem, à ocasião, um balanço de pensamento e, mais ainda, umas "hipóteses" de pensamento, para não desesperar.
II - Para não desesperar numa situação de urgência política e histórica que representavam a vitória do nazismo na Alemanha e, mais especificamente, o pacto de não-agressão assinado entre Stalin e Hitler em agosto de 1939. Exilado em Paris desde 1933 como muitos outros refugiados alemães, judeus ou não, comunistas ou não, Benjamin se encontra, de repente, privado da esperança que podia significar a existência da União Soviética para os oponentes ao fascismo. Ademais, sua nacionalidade alemã o torna suspeito aos olhos das autoridades francesas, agora que a França declarou guerra à Alemanha. Benjamin chegou a ser internado em um "campo de trabalhadores voluntários" perto de Nevers, do qual só conseguiu sair graças à intervenção de amigos franceses. A redação das "teses" se dá provavelmente entre setembro de 1939 (início da Segunda Guerra) e abril de 1940 (construção do campo de concentração de Auschwitz), isto é, em um dos momentos mais negros da história européia. Portanto, não é um texto escrito na serenidade de um gabinete, mas em um quarto de exílio: ele pede aos leitores que não procurem por soluções ou respostas, mas que aceitem o fim de suas certezas sobre o curso da história e a formulações de questões novas, mesmo que continuem sem resposta.
III - Essas exigências peculiares talvez expliquem a recepção conturbada das "teses". Os primeiros leitores se dividiram em dois campos: aqueles que, seguindo a interpretação de B. Brecht, grande amigo de W. Benjamin, afirmaram que o texto representava uma crítica marxista autêntica às erranças da Social-democracia alemã e da Segunda Internacional Comunista na luta contra o fascismo, sem dar maior importância às "meras metáforas" teológicas e judaicas; o segundo campo, pelo contrário, seguia a interpretação de Gershom Scholem, outro grande amigo de Benjamin e famoso pesquisador da Cabala, que se apoiava na primeira "tese" (alegoria do autômato com o anão enxadrista e o boneco turco como representantes da teologia e do marxismo) para sustentar que Benjamin, decepcionado pelos políticos de esquerda, se voltava nesse texto às especulações místicas e teológicas para entender melhor o decorrer da história humana. Uma segunda recepção do texto foi efetuada pelos estudantes de 1968 e dos anos de 1970; apesar dos seus dogmatismos, essa segunda recepção insistia, a meu ver, com razão, na nova questão colocada por Benjamin, a saber: como pensar as lutas dos oprimidos e a resistência aos fascismos e totalitarismos de várias proveniências sem, por isso, cair naquilo que Benjamin chama de "ideologia do progresso" e que caracteriza, até hoje, muitos discursos de esquerda que partem do pressuposto (na origem iluminista, hoje mais ideológico-burguês) de que a história sempre avança em direção a um progresso tão certo quanto indefinido, progresso que os vários partidos de esquerda, por sua vez, pretendem encarnar
IV - Considerando o caráter de urgência da redação das "teses" e, igualmente, a conturbada história de sua recepção, gostaria de defender a seguinte hipótese: as dificuldades desse texto não provêm tanto da ousada imbricação de motivos teológicos e materialistas, mas muito mais da exigência de um pensamento simultaneamente teórico e político, que coloque uma questão historiográfica precisa - o que é a "verdadeira imagem do passado"? - e, ao mesmo tempo, uma questão política no presente - como instaurar "o verdadeiro estado de exceção", como lutar verdadeiramente contra o fascismo? Em outros termos, as questões historiográficas em relação à "articulação histórica do passado" são inseparáveis da posição tanto hermenêutica quanto política do historiador, daquele que escreve "para seu presente". Não se trata, então, de adquirir um conhecimento isento, dito objetivo, do passado, mas de articular passado e presente de tal maneira que ambos sejam transformados.
V - Nessa tentativa, Benjamin tem de criticar duas tradições opostas, mas, na sua análise, complementares: o historicismo burguês e o determinismo materialista vulgar (que ele não atribui ao próprio Marx, mas muito mais aos seus seguidores).
O historicismo é caracterizado, na esteira da Segunda Consideração Intempestiva de Nietzsche, pelo seu ideal de completude e pela sua cansativa erudição: toda história humana deveria ser objeto de uma descrição exaustiva, sem prejulgar da importância ou não dos elementos estudados. A escola histórica alemã entendia, com esse ideal de completude, criticar os pressupostos da História da Razão de Hegel, na qual grandes domínios do passado eram abandonados ao esquecimento porque não contariam para o desenvolvimento do Espírito. Benjamin concorda com essa crítica a Hegel e com esse cuidado pelo detalhe, pelo resto, pelos resquícios; sua preocupação, porém, não visa uma descrição exaustiva ( a priori impossível, mas que tem o mérito de garantir emprego aos historiadores de todo calibre!), mas uma história "a contrapelo": não aquela dos vencedores, mas aquela que poderia ter sido outra, que foi sufocada, mas deixou interrogações, lacunas, brancos que são tantos sinais de alteridade e de resistência; esses sinais, cabe ao presente, justamente, reconhecê-los e, quem sabe, retomá-los e assumir suas promessas de alteridade e de resistência na luta histórica e política atual. Essa relação do presente ao passado não pode, então, seguir os moldes da identificação afetiva ou empatia ( Einfühlung) com os grandes heróis do passado, tais quais são descritos pela história oficial; pelo contrário, deve desconstruir a narrativa ronronante da "história dos vencedores" e indicar outras possibilidades narrativas e históricas, silenciadas, esquecidas ou recalcadas. Essa busca de uma outra história possível leva Benjamin a lançar mão de paradigmas teóricos pouco usados até aí, a saber o paradigma psicanalítico de Freud e estético de Proust. Sem poder entrar em detalhes a respeito no quadro desse artigo, podemos, porém, ressaltar que tanto Freud quanto Proust procuram, justamente, por uma nova relação do presente com o passado, isto é, por uma nova definição da memória e da identidade subjetiva. Ao tentar transpor essas redefinições do domínio da subjetividade para o da história coletiva e do território estético para o político, Benjamin enfrenta grandes dificuldades, das quais é perfeitamente consciente, e que explicam também nossas dificuldades de leitores. Permanece, contudo, a questão de uma narrativa histórica que soubesse responder no presente às interpelações silenciadas do passado.
VI - Em relação à historiografia pretensamente materialista que, segundo Benjamin, presidiu à prática política da Social-democracia alemã da República de Weimar e, infelizmente, também da Segunda Internacional, ela também segue, como o modelo burguês-historicista que pretende combater, uma concepção de tempo histórico vazio, homogêneo e linear, em vez de ficar atenta aos vários ritmos e intermitências da temporalidade histórico-política. Se seu ideal não consiste em uma descrição exaustiva "do que de fato foi", é porque se entrega cegamente a uma fé no progresso (e no advento por assim dizer automático da revolução socialista) e a um determinismo econômico que deveriam garantir aos partidos em questão tanto uma representatividade de classe quanto uma vitória final. Ora, esse misto de fé no progresso e de determinismo acarreta uma incapacidade profunda de diagnóstico e de decisão políticos, condenando a prática dita de esquerda a uma reafirmação dogmática de seus princípios, em vez de inovar no campo da atualidade política. Paradoxalmente, poderíamos dizer que essa atitude segue os moldes da crença religiosa, mesmo que o materialismo possa parecer à primeira vista como uma crítica da religião. Defendo a hipótese que a presença de motivos teológicos e messiânicos no pensamento de Benjamin não tem por alvo defender uma aliança da religião e do socialismo (uma interpretação bastante em voga), mas, pelo contrário, quer solapar as certezas político-religiosas sobre o fim feliz da história da humanidade pelo ácido da reflexão teológica autêntica: a saber, uma reflexão que não procura responder às questões sem solução da humanidade (o mal, a dor, a morte), o que é a grande tentação da religião, mas que lembra sempre que nenhum discurso ( logos) humano pode realmente dizer Deus ( theos), que nenhum discurso humano pode pretender a um saber absoluto, em particular nenhum saber absoluto sobre o curso da história. Os motivos teológicos e messiânicos funcionariam como tantos elementos disruptivos cuja presença poderia, isso sim, sacudir as certezas dogmáticas do "materialismo histórico" (essa marionete meio rígida da primeira tese) e ajudá-lo a inventar novas jogadas de xadrez ou de luta política. Quanto ao anãozinho "teologia" da primeira tese ainda, ele tão pouco é uma figura triunfante, mas fica escondido em baixo da mesa: ambos comparsas são grotescos e ligeiramente ridículos, ambos devem se unir, porém, para vencer o inimigo comum.
O que advém depois desse inimigo ter sido vencido (não o foi ainda), nem o materialismo nem a teologia pode prevê-lo. Não nos cabe especular sobre isso, só nos cabe refletir sobre a invenção de novos meios nessa aliança e nessa luta.
TESE V
A verdadeira imagem do passado passa célere e furtiva. É somente como imagem que lampeja justamente no instante de sua recognoscibilidade, para nunca mais ser vista, que o passado tem de ser capturado. "A verdade não nos escapará" - essa frase de Gottfried Keller indica, na imagem que o Historicismo faz da história, exatamente o ponto em que ela é batida em brecha pelo materialismo histórico. Pois é uma imagem irrestituível do passado que ameaça desaparecer com cada presente que não se reconhece como nela visado.
("Sobre o conceito de História", in LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de incêndio, São Paulo:Ed. Boitempo, 2005)
Jeanne Marie Gagnebin é professora de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Universidade de Campinas (Unicamp). Autora de História e narração em Walter Benjamin (Perspectiva, 1999) e Sete aulas sobre linguaguem, memória e história (Imago, 1997)
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