Saiba como e por que Bill Drummond e Jimmy Cauty, do KLF, dupla pioneira das raves e da techno, queimaram 1 milhão de libras em dinheiro vivo numa fogueira, em 1994, em protesto contra a ganância dos artistas
Odile de Plas
A fogueira durou duas horas. Duas horas para queimar 1 milhão de libras esterlinas (equivalente hoje a R$ 4 milhões), em cédulas de 50, ou seja, 20.000 notas com o retrato da Rainha. A quantia corresponde ao saldo dos royalties recebidos pela dupla de tecno-pop britânico KLF (sigla de Kopyright Liberation Front - Frente de Liberação do Copyright).
São 2h45, nesta madrugada de 23 de agosto de 1994. Bill Drummond e Jimmy Cauty acabam de realizar a derradeira obra da K Foundation, uma fundação de arte criada em 1993 por estas duas pop stars britânicas. A mais audaciosa, a mais fascinante e a mais controvertida que já apareceu até hoje. Os dois homens fizeram o juramento de não falar a respeito até 2018. Desde então, a imprensa britânica promoveu o ingresso de Drummond e Cauty no panteão das personalidades esquisitas tão prezadas no reino da pop. E até hoje tenta entender o ato da dupla.
Em 1991, o conjunto de Drummond e Cauty foi o maior vendedor de "singles" (CD com 2 músicas) no mundo, graças ao sucesso de "What Time is Love", uma música que foi adotada pelo movimento das "raves" e da "techno", então em plena expansão. Desde o seu surgimento, em 1988, sob diversos nomes (Justified and Ancients of Mu Mu, The JAMS, Timelords e finalmente KLF), eles faturaram 6 milhões de libras em royalties. Os cinco primeiros foram reinvestidos com perda total num filme inacabado ("uma nulidade", segundo confessaria Drummond em entrevista à revista "Q" em 1992), em diversos projetos artísticos e, é claro, em impostos devidamente pagos ao fisco.
Em 1992, quando eles estavam no auge da sua glória, os dois homens puseram fim à sua carreira musical. E anunciaram essa decisão com estardalhaço por ocasião da cerimônia dos Brit Awards, enquanto eles recebiam os prêmios de "melhor grupo" e "melhor álbum" do ano. Acompanhados pelo grupo de hard rock norueguês Extreme Noise Terror, eles massacram seu sucesso do momento, "3 a.m. Eternal", antes de metralhar com balas "de mentirinha" a platéia, que é tomada pelo pânico. Então, eles abandonam a carcaça sangrenta de um carneiro na entrada do salão onde era organizado o coquetel que se seguiu à cerimônia. Até hoje, o evento consta entre os dez momentos os mais rock'n'roll da história, segundo o jornal semanal britânico "New Musical Express".
Contudo, desta vez, a cena ocorre na calada da noite, no interior de um pequeno abrigo para barcos na ilha de Jura, em alto-mar na orla da Escócia. O lugar, reputado pelo seu whisky, é apreciado pelas grandes fortunas do Reino Unido. Ao contrário, Bill Drummond e Jimmy Cauty assistem sem reagir à destruição da deles, que se vai, em forma de fumaça. Duas testemunhas presenciam a "performance": Jim Reid, um jornalista independente, e Alan Goodrick, o seu empresário de turnês e amigo, apelidado de Gimpo, que filma a fogueira de custo exorbitante por meio de uma câmera 16 mm. O pequeno grupo deixa a ilha no mesmo dia. Sem publicidade.
Embora a dupla seja exímia na arte das provocações artísticas, as ondas deste escândalo demorarão certo tempo até alcançarem as praias inglesas. Em 25 de setembro de 1994, Jim Reid publica seu relato no "The Observer". O título da matéria: "A mais estranha história do ano". Estranha porque literalmente "inacreditável", e, contudo, verdadeira. Em 28 de agosto de 1994, ou seja, cinco dias depois da sua "performance", um habitante da ilha descobre 1.500 libras esterlinas (equivalente hoje a cerca de R$ 6.060) numa praia. São algumas notas que "sobreviveram" às chamas.
O "Times" relata os fatos bem mais tarde, apenas na sua edição de 4 de outubro. O correspondente repercute então a incredulidade e a cólera dos habitantes da ilha. Paul Smith, o produtor da sua última performance em público, em 1997, e fundador do selo musical Blast First (uma divisão da Mute Records, a gravadora do Depeche Mode e de Moby) confirma: "Até hoje, o patrão do hotel que os hospedou recusa-se categoricamente a comentar o assunto".
Em Londres, quase todo mundo acredita que se trata de mais um trote, de uma enésima loucura dessas pop stars dispostas a tudo para chamar a atenção. E Paul Smith acrescenta: "Eu soube da notícia assim como a grande maioria, pela imprensa. Nem mesmo as suas próprias mulheres estavam a par. As pessoas demoraram muito para levar a sério o que eles fizeram, e, sobretudo para considerar este ato como uma obra". Ele se recorda de ter pensado inicialmente que "aquela era realmente uma péssima idéia. Mais tarde, eu entendi como eles puderam chegar a esse ponto".
A destruição como tema recorrente
Bill Drummond e Jimmy Cauty se conhecem em meados dos anos 80. Bill Drummond é uma figura da cena pop. Ele atuou como guitarrista no grupo Big In Japan (junto com o futuro cantor do Franky Goes to Hollywood), foi fundador do selo independente Zoo Records em 1978, e foi por muito tempo o empresário dos grupos de rock Echo and the Bunnymen e Teardrop Explodes. Duas bandas importantes dos anos 80. Após tornar-se diretor artístico da Warner, uma das maiores gravadoras mundiais, ele contrata o Brilliant, o projeto pop de Jimmy Cauty, um ex-estudante em artes, assim como ele.
O que se segue é o percurso clássico de todo aprendiz de rock star no Reino Unido. O álbum do Brillant é um fracasso comercial, que deixa um buraco de 300.000 libras nas contas da Warner - exatamente o montante da tarifa do produtor Pete Waterman. "Um gênio absoluto", explica Drummond em entrevista à revista "Q", capaz "de apagar seu trabalho do dia num instante. Uma atitude tão refrescante!" E, sobretudo, um sinal do que está por vir.
A destruição, a fogueira redentora, são temas recorrentes na história do KLF. Uma história fulgurante (1987-1992), considerando-se o número de obras produzidas, feita de ultrajes, de manipulações assim como de uma transparência absoluta e de verdade crua. Em 1987, o seu primeiro álbum acaba na fogueira, já nesta época, por causa de um "sample" (uma amostragem, trecho de música) emprestado sem autorização do grupo sueco Abba. Pouco após cravar o seu primeiro hit, "Doctor'in the Tardis", em 1988, eles escrevem um livro, "The Manual, ou como obter facilmente um n° 1". Ao se aposentarem, em 1992, os dois homens decidem finalmente apagar todo o seu catálogo.
Drummond e Cauty empenham-se de fato a pôr em prática uma teoria que os
fascina: o situacionismo de Guy Debord e a sua análise da sociedade do espetáculo. A esta eles acrescentam a sua admiração por um livro emblemático da contracultura anglo-saxônica dos anos 70: "The Illuminatus! Trilogy", de Robert Shea e Robert Anton Wilson, redatores em chefe da "Playboy Magazine", apaixonados pelas teorias do complô, em voga na época. Um "quarto de despejo" intelectual que serve de talagarça para a sua carreira.
"Uma celebração contemporânea da pop star tal como ela é encarada pela grande maioria da classe operária", segundo Paul Smith. E vivenciada "como uma experiência religiosa, com os seus ritos, seus trajes, seus incensos". O grupo aparecerá trajando inúmeras capas, chifres e outras vestimentas ridículas em seus videoclipes.
Dois anos após a sua retirada da indústria musical, a fogueira de um milhão se parece de maneira efetiva com um adeus às artes. E ao seu valor supremo: o dinheiro. Trajando suas roupas de artistas conceituais, eles se empenham mais uma vez a derrubar a ordem estabelecida. Como ponto de partida, uma idéia simples: piratear a entrega de prêmios de uma das mais prestigiosas instituições da arte contemporânea britânica, o Turner Prize da Tate Gallery. Que eles radicalizam, oferecendo um prêmio duas vezes maior (40.000 libras, hoje R$ 161.560) para a mesma artista (Rachel Witheread), só que por ela ter realizado a pior obra do ano. No ponto de chegada: o cúmulo do inútil.
O que aconteceu neste meio-tempo: uma encenação espantosa descrita pela revista "Q" (uma viagem de limusine, com "Money, Money, Money", do Abba, como trilha sonora, 25 envelopes de 1.600 libras entregues aos convidados, ou seja. 40.000 libras no total), uma artista seqüestrada (em caso de recusa do prêmio, a K Foundation se comprometia a queimar a quantia). e, detalhe engraçado, 9.000 libras furtadas na noite da entrega do prêmio por alguns indelicados.
A piratagem era também, e sobretudo, a ocasião para Drummond e Cauty de exporem seu quadro intitulado "Money: a Major Body of Cash" ("Dinheiro: um corpo considerável em espécies"). Ou seja, 1 milhão de libras pregadas no interior de um quadro. Naquele momento, os artistas planejam várias exposições. O quadro seria dividido em sete peças, vendidas por preços diferentes, às vezes pela metade do seu valor monetário. Uma divertida reflexão sobre o valor da arte. Mas as galerias voltam atrás. Ninguém quer arcar com o seguro que uma tal obra exige. Há riscos demais. Este milhão transforma-se então num enorme peso morto sobre os dois homens. Que decidem queimá-lo. E falar disso.
Um ano exatamente depois do seu ato, o KLF exibe o filme na ilha de Jura, e logo após em várias cidades do Reino Unido. Toda vez, um debate é organizado depois da projeção. Uma única pergunta: por que será que eles fizeram isso? Com a palavra, a platéia. Mas, sempre, voltam as mesmas críticas: "Dava para sentir uma grande cólera no ar", recorda-se Paul Smith. "A maioria das pessoas se perguntava por que eles não tinham doado este dinheiro. Com a idéia, é claro, de que ele poderia ter servido a pessoas na necessidade".
Cansados pelo rumo seguido pelos debates, Drummond e Cauty decidem destruir todas as cópias do filme, e juram não mais falar a respeito do caso durante 23 anos. Astucioso, o seu amigo Gimpo conserva uma delas e a exibe por ocasião de festivais, ou de exposições. O filme, com duração de 63 minutos, tornou-se um clássico da contracultura na Inglaterra. O símbolo da recusa desta dupla a entrar no sistema. Uma banana do tamanho da sua loucura e do absurdo reivindicado da sua arte.
Doze anos depois, ainda não existe nenhuma explicação oficial. Será que a meta era de completar o círculo do situacionismo? Ou será que se tratava de um ato de auto-terrorismo por parte da Frente de Liberação do Copyright? Ou ainda de uma mensagem destinada ao grupo Abba? Numa entrevista ao "Times" concedida em 2002, Bill Drummond confessa nunca ter sido "capaz de resistir às idéias malucas" que passam pela sua mente. "Em geral, as pessoas falam disso durante cinco minutos no pub e depois esquecem. Eu não". Hoje, ele enxerga isso como uma desvantagem.
Paul Smith, por sua vez, acredita numa outra idéia: "Eles tinham muitos problemas pessoais naquela época, que pareciam estar vinculados ao sucesso que eles haviam obtido. O dinheiro era a mais tangível das conseqüências desse sucesso. Então eles decidiram livrar-se do dinheiro, para se livrar dos problemas. Naquela época, tudo o que eles faziam se transformava em grandes quantias. Eles precisavam de uma idéia que não poderia criar absolutamente nada".
Segundo reconhece o próprio Drummond, os seus filhos até hoje têm muitas dificuldades para aceitar o que ele fez.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
quinta-feira, setembro 07, 2006
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