Por Carlos Alberto Dória
Tese examina como a teoria econômica transformou o conhecimento em capital e a pessoa, em empresa
“O capital intelectual é a matéria-prima da qual são feitos os resultados financeiros” (Thomas Stewart)
Ganhar dinheiro na bolsa, converter os lucros no carro do ano, realizar viagens internacionais também todo ano -uma passagem obrigatória por Nova York ou conhecer lugares exóticos do Oriente-, comer ao menos uma vez nos restaurantes dos grandes chefs franceses da nouvelle cuisine, colecionar quadros de artistas emergentes, quiçá ouvir óperas no festival anual de Salzburg. Esta era a parte do ideal da vida dos “colarinhos brancos” que ganhavam dinheiro na década de 70 -os yuppies. Uma escada-rolante ascendente, que levava ao paraíso do consumo, seria a melhor metáfora para descrever sua percepção da vida naqueles anos já distantes do século passado.
Trinta anos depois, o personagem que está na posição daquele yuppie -o executivo de uma empresa transnacional- pinta em novas cores o seu mundo: “A dinâmica hoje do mercado é uma escada rolante que desce. É para a empresa dessa forma, em relação ao mercado, e para a pessoa com relação à empresa. É tudo uma cadeia”. Agora, já não é empregado, mas “associado” ou “colaborador” da transnacional. “Terceirizado”, como dizemos caboclamente. Tem lá o contrato entre a sua “pessoa jurídica” e a transnacional, mas o vínculo é tênue.
O executivo também fala sobre a própria família como uma mini- “empresa” e conclui, diante do risco permanente em que vive: “Eu assumo responsabilidades aqui, mas não consigo demitir minha mulher, demitir meu filho, e do outro lado o que a sociedade me oferece, o quê?”1. Já se tornou normal -na publicidade sobre um curso ou uma palestra que pode ser sobre vinhos, filosofia antiga ou “buraco negro” e outras maravilhas da física- aparecer no lugar tradicional do preço ou custo, uma nova palavra: “investimento”.
Tenhamos presente que aquele executivo costuma fazer este tipo de curso. Mas estávamos acostumados a associar “investimento” ao capital, não ao consumo. Ninguém “investe” numa barra de chocolate, numa geladeira, num carro ou numa viagem ao deserto de Atacama. Mas consumir qualquer coisa considerada “cultura” ou “conhecimento” significa, hoje, fazer um “investimento”. Assim como conhecer as pessoas certas e os lugares certos.
Se o indivíduo se considera uma “empresa”, como se fosse uma unidade de capital, trata-se de um investimento em si próprio. Finalmente surgiu o “você S/A”. Fomos mesmo convertidos em unidades de capital, a julgar pela tese de doutorado que o sociólogo argentino Osvaldo Javier López-Ruiz acaba de defender, em que mostra o novo modo como os executivos se inserem no mundo do trabalho e como transformam as suas próprias vidas a partir dessa novidade.
Segundo ele, tudo começou no já distante ano de 1960, quando o economista Theodore Schultz, da Universidade de Chicago, escreveu um pequeno artigo, intitulado “Investimento em Capital Humano”, que produziu uma grande polêmica entre economistas. Quarenta anos depois, as idéias de Schultz acabaram se espraiando por toda a sociedade e resumem o que se pensa modernamente sobre o papel do trabalho no capitalismo ultramoderno.
O que Schultz queria entender era o porquê de sociedades afluentes, como os Estados Unidos, terem crescido muito além dos índices que normalmente expressam o crescimento (investimentos, dispêndios em salários etc.). Ele chegou à conclusão de que “os modelos de crescimento econômico que tratam as alterações na força de trabalho contando o número de operários”, as estruturas físicas, os equipamentos, as mercadorias, já não explicavam o essencial. É fundamental, dizia, considerar a heterogeneidade do trabalho, não mais tomado como uma “força” uniforme.
Schultz destruiu a noção clássica de “força de trabalho” e colocou em seu lugar as habilidades inatas ou adquiridas -habilidades que não contribuíam da mesma maneira para a “riqueza da nação”. Desapareceu, assim, a categoria “recursos humanos” das empresas.
O que parecia uma conversa enfadonha entre economistas era, na verdade, uma revolução na economia política desde os seus fundadores: o capital deixava de ser visto como homogêneo, e o trabalho, que era a categoria oposta, passava a ser considerado capital ou, mais precisamente, “capital humano”, que se materializa quando o capital “pega esse talento e consegue botá-lo na corporação”2 .
A revolução conceitual do “capital humano” demorou décadas para conquistar o mundo dos negócios, até que as teorias de administração, as empresas de consultoria, as revistas técnicas e tudo o que possa “fazer a cabeça” dos executivos se curvassem diante dela. Agora que ela se vulgarizou, a nova teoria faz com que os indivíduos se comportem como “capitalistas de si próprios” e, portanto, o consumo que signifique qualificação, diferenciação, sofisticação cultural, será considerado “investimento”. É um novo modo de se ver e de ser visto pelo mercado. A “mudança” permanente, o aperfeiçoamento pessoal, o elogio dessa atitude, virou o mantra do nosso tempo, conforme López-Ruiz. Em outras palavras, “você é o seu projeto”.
Mas não se trata apenas de uma mudança subjetiva. Este novo “ethos”, no qual o antigo trabalhador passa a se comportar como um átomo de “capital humano”, fundamenta uma nova cultura empresarial, uma nova forma de exploração do trabalho.
O primeiro grande passo foi a eliminação do “emprego”. Os antigos executivos foram transformados em “sócios” das grandes corporações. Como diz um capitalista, “os acionistas investem dinheiro em nossas empresas, os empregados investem tempo, energia e inteligência”3. Junto com as participações nos ganhos do capital, foram socializados também os riscos da atividade capitalista. Eles já não ganham “altos salários”, mas parcelas do lucro quando este resulta da sua atividade. Às vezes -como nos Estados Unidos, no escândalo do caso Eron ou, na Itália, no caso Parmalat- falsificam lucros para ganhar mais.
Entre os que trilham o trabalho honesto, vê-se uma corrida frenética para se qualificar sempre mais e mais. O que antes era acesso à educação se transformou em “capacitação” para o trabalho ultracompetitivo do dia-a-dia. A própria vida privada é administrada como se fosse uma “empresa” que se integra à corporação na busca do lucro. Ir a um concerto, conhecer novas pessoas, saber discorrer sobre vinhos -tudo faz parte do bom desempenho dessa “empresa” nova, que só é competitiva se apresenta uma alta dose de “capital humano”, isto é, conhecimentos e habilidades de “ganhadores”.
Um dia, tudo isso acaba. Jovens mais “competitivos” aparecem por todos os poros do mercado para deslocar os mais velhos. Mas o que se segue não é o “desemprego”, pois já não havia o “emprego”. É apenas uma sociedade entre capitais que se desfaz. E, aí, mediante uma série de tentativas e erros, o trabalhador das corporações busca inaugurar a sua “segunda carreira”.
A metáfora desta “segunda carreira” é o famoso caso do início dos anos 80 do século passado, quando um engenheiro desempregado abriu uma lanchonete na avenida Paulista, em São Paulo, e a batizou com a frase que resumia a sua vida: “O engenheiro que virou suco”, definindo assim um personagem que foi explorado pelo filme “O homem que virou suco”, de João Batista de Andrade. Mas, antes de “virar suco” o trabalhador tentará virar consultor, escrever livros, enfim, fazer “render” aquelas suas velhas habilidades que o mercado acabou de lhe dizer que já não valem nada. Como “terceirizado”, tem uma empresa que é contratada para serviços específicos. É remunerado pelo “tempo total” trabalhado e só por ele, sem qualquer um dos velhos custos trabalhistas (previdência, seguro saúde, vale-refeição etc.).
O estudo de Osvaldo Javier López-Ruiz não nos diz quantos viraram ou virarão suco, mas sim como se vira suco. É um estudo qualitativo. E mostra que o executivo não vira suco no espremedor de laranjas do designer Philippe Starck que ele geralmente tem na sua cozinha muito bem equipada. A coisa é bem mais cruel, como na imagem da escada rolante que desce, e o sujeito que, em sentido contrário, se esforça para não sair do lugar.
A metáfora revela uma classe média que, antes, fazia a sua poupança e se educava para garantir a ascensão social, mas que hoje transformou a “poupança” em consumo (“investimento em si”), que reduziu a educação à capacitação para competir e que, no lugar da mobilidade social ascendente, luta para não decair4. Na medida em que esse segmento é “formador de opinião”, esse modo de pensar passa a ser o “ethos” de toda a sociedade. Mondo cane, mondovino, mundo cruel, é tudo uma coisa só.
Um mundo onde o produto é a pessoa e o mercado, a vida, onde o curriculum vitae não é mais uma história, mas uma peça de marketing que resume as habilidades utilizáveis (“Você tem um produto para vender, e esse produto é você mesmo”, diz um dos entrevistados por López-Ruiz).
E o autor mostra que o novo “ethos” não se limita a mais uma “teoria da administração” -como tantas outras que se sucedem entre executivos, definindo o perfil do “executivão” de multinacionais, fundamentando a “reengenharia” dos processos de trabalho, a “desintermediação” ou outras panacéias da administração do capital. Ao contrário, com o fim do emprego, a dissolução do operariado, o fim do “chão de fábrica”, a própria categoria trabalho, como valor que o capital suga em troca de um “salário”, desapareceu.
O desaparecimento do trabalho enquanto tempo, ou força e energia aplicadas numa atividade seriada, governada por máquinas, equipamentos e rotinas, converteu o trabalhador numa parcela do próprio capital que se acumula em novos conhecimentos e capacidades. Esta é a base objetiva para que se desenvolvam novas formas de relações sociais, resumidas no “ethos do executivo das transnacionais”.
Se o “trabalhador” era antes o fruto de uma série de lutas históricas, uma categoria concreta da sociedade que resumia um feixe de direitos garantidos pelo Estado e vigiados pelos sindicatos, agora já não é mais esta coisa jurídica, resumindo-se à atividade no mercado. O indivíduo é o empreendedor de si mesmo, o seu próprio capital, e não alguém que realizava uma troca de tempo de trabalho por salário numa condição jurídica “trabalhista”. Suas ações passam a ser pensadas isoladamente em termos de custo/benefício, isto é, segundo a sua racionalidade interna, e não mais como um processo que se desdobra no tempo.
O seu salário, que antes era o preço da sua força de trabalho obtido pelo enfrentamento entre trabalhadores assemelhados, agora assume a forma de uma “renda”, rendimento do seu “capital humano”. Ao agir como uma “empresa”, o trabalhador passa a ser o encapsulamento da subjetividade do capital. Sua “alma” é a alma do capital. Ele levou a si próprio para o coração da empresa ou, nas palavras de um executivo, “os acionistas põem a grana ; eu ponho miolos”, e toda a sua subjetividade será moldada a partir do novo enquadramento.
Novas categorias de análise deste admirável mundo vão povoando os textos de economistas e executivos de organismos multilaterais, como o Banco Mundial e a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Em suas mãos, o “capital humano” de Schultz vai se refinando e se convertendo em “capital intelectual” (o ativo da empresa, a maior parte do seu valor real), ou “capital social” e, ainda, “capital territorial” -diferenças sutis que têm em comum o fato de transformar algo intangível em fator de acumulação, seja a sua unidade uma pessoa, uma cultura ou um conjunto de recursos institucionais referidos a um território.
Nessas suas metamorfoses se descortina uma sociedade onde o capital pode se apropriar de todos os conhecimentos como forma de valorizar a si próprio, deixando claro que ele é uma relação social, não coisas palpáveis. Em outras palavras, agora a ciência, a técnica e a “cultura” são tomadas como forças produtivas, e este conhecimento útil em nova embalagem se revela quando é possível conectar pessoas, alavancando o que elas sabem para gerar ganhos no mercado.
Com base nessa nova realidade de mercado dá-se o espetáculo de crescimento econômico, de costas para o Estado e para o espaço público, cujos desdobramentos muita gente, dentro e fora das academias, quebra a cabeça para entender -como nesse trabalho iluminado de Osvaldo Javier López-Ruiz.
Por enquanto, apenas uma certeza: no médio prazo todos viraremos suco.
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Carlos Alberto Dória
É sociólogo e ensaísta, autor, entre outros livros, de "Ensaios Enveredados", "Bordado da Fama" e o recém-lançado "Os Federais da Cultura" (ed. Biruta).
quinta-feira, julho 14, 2005
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