sábado, agosto 19, 2006

Empregada doméstica torna-se estrela literária na Índia

Amelia Gentleman
em Nova Déli

Abandonada por sua mãe aos 4 anos, casada aos 12 com um marido abusivo, mãe aos 13 - pouca coisa na infância traumática de Baby Halder poderia sugerir que ela se tornaria uma estrela emergente no panorama literário da Índia.

Mãe solteira aos 25, lutando para alimentar seus três filhos trabalhando como empregada para vários patrões exploradores, Halder não teve tempo para se dedicar a ler ou a contemplar a dura realidade de sua existência - até que começou a trabalhar na casa de um professor aposentado simpático, que a pegou folheando seus livros quando deveria estar limpando as prateleiras.

Ele descobriu seu interesse latente por literatura, deu a ela um caderno e uma caneta e a incentivou a começar a escrever.

"A Life Less Ordinary" [Uma Vida Menos Banal], a sensação editorial desta temporada em Nova Déli, é o resultado de suas sessões de escrita à noite, depois de terminar suas tarefas domésticas, quando despejou as memórias cruas de sua vida em cadernos escolares pautados.

Prabodh Kumar, o professor de antropologia aposentado que a descobriu, ficou impressionado com o que leu e a incentivou a continuar. Depois de vários meses ele sentou-se com ela e a ajudou a editar o texto em forma de livro.

Traduzida para o inglês no início deste ano, a autobiografia de Baby Halder tornou-se um best-seller.

No conteúdo, é uma versão indiana de "Angela's Ashes" - o relato de Frank McCourt vencedor do prêmio Pulitzer sobre sua vida miserável na Irlanda -, a história de uma infância pobre nos anos 70 no nordeste da Índia. O estilo de Halder nunca lhe conquistará prêmios literários; mesmo com a edição de Kumar, a narrativa é árida e a profusão de personagens que entram e saem de cena é surpreendente. Mas apesar disso o livro oferece uma imagem profundamente emocionante da vida de milhões de mulheres pobres indianas.

Seu livro dá voz a um grupo de pessoas que por motivos de tradição e educação geralmente são condenadas a permanecer em silêncio. Ele oferece uma visão fascinante de um lado desconhecido da vida indiana, que geralmente não atrai o interesse dos romancistas. A história da vida de Halder é escrita com coragem, sem qualquer vestígio de autocomiseração. Ela começa com um instantâneo de como sua mãe - exausta pelas prolongadas ausências do pai e seu fracasso em sustentar a família - sai do mercado um dia e nunca mais volta.

Com uma clara ausência de sentimentalismo, ela conta que seu pai lhe bateu por contar a uma amiga da escola que não tinha comida em sua casa, como surgem uma madrasta e depois outra, sobre os períodos intermitentes de estudos, interrompidos por falta de dinheiro e o caos doméstico, e como sua irmã mais velha é casada subitamente porque seu pai não pode mais sustentá-la.

Ela era jovem demais para entender o significado dos preparativos de seu próprio casamento, preferindo brincar com suas amigas na rua. Depois de conhecer seu futuro marido, com o dobro de sua idade, Baby, com 12 anos, conta a uma amiga: "Vai ser bom me casar. Pelo menos terei um banquete".

Mesmo nas horas que precederam seu casamento, "eu cantava e pulava de alegria", ela escreve. A percepção do horror de sua nova vida de casada chega rapidamente.

Logo ela está grávida, e, mal entendendo o que aconteceu, se vê criticada pelo médico por "decidir" ter um filho em idade tão tenra. Dois outros filhos se seguem, então seu marido quebra sua cabeça com uma pedra e sua irmã mais velha é assassinada pelo próprio marido violento.

Halder decide abandonar o casamento. Foge de trem para Déli, onde, como muitas outras mulheres desesperadas, procura trabalho como faxineira nas casas da nova classe média rica da capital. Lá ela escapa da destituição mandando seu filho mais velho trabalhar ilegalmente como empregado doméstico, e ela mesma trabalhando para patrões egoístas. Os patrões a tratam de maneira desumana, obrigando-a a trancar seus filhos no sótão durante o dia enquanto trabalha. Ela escreve sobre uma empregadora: "Assim que ela se sentava eu tinha de oferecer chá, água, sorvete, o que ela quisesse. Depois tinha de massagear sua cabeça ou seus pés ou alguma parte do corpo: o trabalho nunca terminava".

Ela não articula diretamente sua raiva, e raramente culpa seu pai ou o marido pela crueldade que sofreu, mas os fatos falam por si e formam um relato poderoso de seu sofrimento. É uma descrição simples de uma existência triste, que dispensa adornos literários. Em uma entrevista na casa de Kumar, onde ela ainda trabalha como governanta, Halder parece inicialmente mais à vontade com seu papel de empregada do que com o de escritora, recusando-se a sentar-se até que todos recebam água ou chá.

Hoje com 32 anos, Halder diz que escrevia depois de terminar suas tarefas e de as crianças estarem dormindo, nos quartos dos empregados na casa em Gurgaon, uma cidade próxima a Déli. "Quando eu escrevia, sentia que estava conversando com alguém e depois me sentia mais leve, como se tivesse de certa forma me vingado de meu pai, que nunca cuidou de mim como um pai deveria, e de meu marido", ela diz. "Nunca pensei que outras pessoas poderiam se interessar por minha história."
Kumar, porém, ficou imediatamente impressionado pelo que ela havia escrito.

"Fiquei surpreso, vi que era muito especial", ele diz. Ele fez fotocópias do texto e o enviou para amigos no mundo editorial.
"Eles gostaram e disseram que se lembraram dos textos de Anne Frank - uma garota que escreveu um diário e morreu jovem", Halder acrescenta. "Fui incentivada a escrever tudo, minha vida inteira. Eu não pretendia começar um livro, estava apenas escrevendo." Elogiada pela elite literária de Déli como uma obra inovadora, "Uma Vida Menos Banal" foi traduzida para várias línguas indianas e encontrou um público entre as mulheres que viveram as mesmas dificuldades de Halder.

"Este não é um livro que pode ser lido e deixado de lado. Ele levanta questões sobre o destino dos milhões de trabalhadores domésticos em nosso país e como são maltratados", conclui uma resenha no jornal "The Hindu".

"Realmente é uma história de coragem sob fogo." Este também é um retrato da maneira como a sociedade indiana moderna trata as mulheres que deixam seus maridos - estigmatizando-as e colocando-as nas margens da existência.

"É a coisa mais difícil para uma mulher fazer", diz Halder. "As pessoas nas aldeias dizem coisas feias sobre você, mas eu quis dar aos meus filhos uma vida melhor, por isso não tive escolha." "Uma mulher me disse que essa história era exatamente a dela, o que me deixou muito contente", ela acrescentou. "Há tantas outras mulheres na Índia que deixaram suas casas, como eu. Não há ajuda para elas - a vida não é fácil, e elas não são capazes de se manifestar. Se eu puder lhes dar alguma confiança, ficarei satisfeita."

Kumar explica como ele ajudou sua empregada a organizar o texto para se tornar um relato cronológico de sua vida, tirando muitas repetições e consertando os erros gramaticais. Ele diz que no início ela cometia muitos erros, mas melhorou rapidamente e aos poucos adquiriu maior sofisticação como escritora. Seus manuscritos mais recentes mostram um bengali em boa caligrafia, apertada nas páginas pautadas do bloco como se ela tivesse a preocupação de não desperdiçar papel.

Apesar de ter sido adotada pelos círculos literários de Déli (um lançamento recente da edição em bengali foi patrocinado pela escritora de Bangladesh Taslima Nasreen), Halder não tem planos de deixar a profissão de faxineira.

Está escrevendo seu segundo livro entre os trabalhos domésticos.

"Quero ser uma escritora e continuarei escrevendo, mas por enquanto não posso deixar Tatush, por isso continuarei trabalhando aqui", ela diz, desaparecendo para preparar o almoço para seu patrão - Tatush, como ela o chama.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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