O célebre show de 25 de julho de 1965 no festival de Newport é considerado como o episódio em que o cantor "renegou" o folk acústico; mas a veracidade do fato é contestada
Bruno Lesprit
Em 3 de agosto de 2002, Bob Dylan retornou ao local do seu crime: o palco do festival de Newport (Rhode Island). Irreconhecível com o seu chapéu de caubói, seus cabelos e sua barba desmedidos, o bardo tocou guitarra elétrica com uma orquestra, sem ser alvo do menor apupo sequer. Ou seja, tudo foi muito diferente daquilo que havia acontecido 37 anos antes, naquele domingo, 25 de julho de 1965, em que, segundo reza a lenda, ele teria afastado todos os seus fãs da primeira hora com um gesto tão masoquista quanto revolucionário: eletrificando sua música e traindo a causa do folk em benefício do apelo do rock'n'roll.
Os fatos, que se desenrolaram então em menos de meia-hora, representam, segundo os historiadores, a grande batalha estética da música popular. A derrota dos "folkeiros", puristas retrógrados, e a irrupção espetacular da contracultura, quatro anos antes de Woodstock. Era a metamorfose de Dylan num Rimbaud elétrico que estava abandonando a canção de protesto em favor da introspecção e do verbo surrealista.
Ao fusionar a consciência do folk com a potência do rock, o cantor abre o caminho para a onda dos autores-compositores que estarão na crista da onda ao longo de uma década, até a revolta punk: Simon & Garfunkel, Neil Young, Leonard Cohen, Bruce Springsteen... Ele influenciou até mesmo os Beatles.
No vídeo-documentário "No Direction Home: The Life and Music of Bob Dylan", o biógrafo Robert Shelton não hesita a comparar sua performance naquele festival de Newport à estréia de "A Sagração da Primavera", de Stravinsky, em Paris em 1913. Uma querela dos anciões e dos modernos que se concluiu com a derrubada do velho mundo. Em 1965, Dylan, aos 24 anos, é a estrela em ascensão do folk americano, o qual conhece então uma fase de renascimento em volta da boemia nova-iorquina de Greenwich Village, vinculada à redescoberta do patrimônio como resultado da ação de musicólogos-colecionadores tais como os Lomax, John (o pai) e Alan (o filho).
Fundado em 1959 pelos cantores Pete Seeger, Theodore Bikel e Oscar Brand, associados com o produtor de jazz George Wein, o festival de Newport é o ponto de encontro obrigatório dos aficionados do gênero, em sua maioria, jovens brancos politizados, opositores da guerra do Vietnã que estava começando e próximos ao movimento em prol dos direitos cívicos liderado pelo pastor Martin Luther King.
Os seus gostos musicais orientam-se para a busca da autenticidade: as baladas de Woody Guthrie compostas durante a grande depressão (1929), a música dos fazendeiros dos Appalaches, o blues dos afro-americanos. Eles desprezam o rock e o pop, vistos como sorrateiramente comerciais.
A primeira edição de Newport revelou a jovem Joan Baez, e as duas mais recentes, seu companheiro, Bob Dylan. A música deste último, "Blowin' In The Wind", que se tornou um sucesso na versão de Peter, Paul & Mary, foi adotada como o grande hino pacifista, que é entoado no palco por esta comunidade como um todo.
Em 1965, Dylan já é um dos artistas os mais destacados do cenário. Cinco dias antes da sua apresentação em Newport, ele lançou uma música repleta de revolta e de eloqüência, "Like a Rolling Stone", que será o seu maior sucesso radiofônico. Ele está decidido a interpretá-la no festival. Mas, para tanto, ele precisa de um grupo, tal como aquele que o acompanha nesta gravação incendiária de mais de seis minutos que se estende pelos dois lados do compacto de 45 rpm.
Presente na gravação, o guitarrista de blues Mike Bloomfield é convidado para participar da aventura; a ele juntam-se o baixista Jerome Arnold e o baterista Sam Lay, ambos membros da sua orquestra, a Paul Butterfield Blues Band. O pianista Barry Goldberg foi recrutado no próprio local do show, assim como Al Kooper, que já tocara em "Like a Rolling Stone". Este guitarrista de profissão foi convidado por Dylan a trocar seu instrumento pelo órgão, o qual ele nunca havia tocado anteriormente. Às vésperas do concerto, este grupo recém-formado ensaia numa mansão até o sol raiar, tudo envolto no mais completo segredo.
Até então, o seu público conhecia apenas um único Dylan: o cantor de protesto trajando as roupas de um humilde trabalhador, o poeta solitário com o seu violão acústico e a sua gaita. No seu caderno de notas, Robert Shelton, surpreso, constata em duas oportunidades que ele aparece em Newport trajando um "blusão de couro" assim como os rebeldes do cinema, James Dean ou Marlon Brando. Dylan liga a sua guitarra num amplificador e canta três novidades, "Maggie's Farm", "Like a Rolling Stone" e "It Takes a Lot To Laugh, It Takes a Train To Cry". É a primeira vez que se ouve rock'n'roll no sacrossanto templo do folk.
Na opinião da maioria, a performance é catastrófica: o grupo não está sintonizado, a qualidade sonora é pavorosa devido à falta de tempo hábil para efetuar uma passagem de som correta, e a voz de Dylan some em meio à barulheira instrumental. Segundo Shelton, o público não tarda a reagir violentamente por meio de vaias e de invectivas ("Toquem folk!", "Queremos o nosso dinheiro de volta!", "Isto é um festival de folk!", "Livre-se desse grupo!").
Apesar de tudo, o cantor retorna ao palco, desta vez, acompanhado apenas pelo seu violão e sua gaita, parecendo conceder a vitória aos "folkeiros". Ele interpreta, atendendo ao seu pedido, "Mister Tambourine Man", precedida por "It's All Over Now Baby Blue". Os exegetas viram nesta música uma das mais belas canções de desamor jamais escritas, uma metáfora do adeus de Dylan ao folk ("Ascenda um fósforo, comece tudo de novo").
Nos bastidores, o ambiente também é elétrico. O episódio o mais famoso é a reação furiosa de Pete Seeger, o mentor de Dylan, que teria ameaçado cortar os fios do equipamento de som com um machado. O patriarca do folk, que hoje tem 87 anos, sempre desmentiu esta versão, explicando que ele não queria em caso algum censurar Dylan, e sim que as suas palavras fossem ouvidas. Ele teria se precipitado sobre o engenheiro do som, Paul Rothschild (fundador da gravadora Elektra e futuro produtor dos Doors), intimando-o a executar a seguinte ordem: "Retire essa distorção da sua voz... É horrível! Se eu tivesse um machado, eu cortaria imediatamente o cabo do microfone!"
Um dos organizadores do festival, Bruce Jackson, vai muito mais longe em sua análise dos acontecimentos: ele contesta a veracidade daquilo que ele chama de "o mito de Newport", e que foi veiculado, contudo, pelas testemunhas no documentário de Martin Scorsese, "No Direction Home". Ele dedica a este caso um capítulo num livro a ser editado na primavera de 2007, "Telling Stories: How Stories Work and The Work Stories Do" (numa tradução livre, "Contando histórias: como as histórias funcionam e os efeitos que as histórias têm", a ser editado pela Temple University Press).
Jackson, que se baseia na gravação do concerto que foi integralmente transcrita, tem sólidos argumentos para defender: os espectadores não vaiaram Dylan, e sim a apresentação interminável feita pelo seu colega Peter Yarrow (de Peter, Paul & Mary) e o seu comentário desastrado quando ele anuncia que o messias "dispõe apenas de um tempo limitado". E a brevidade da apresentação de Dylan, decidida pelos organizadores que queriam naquela noite multiplicar as performances de artistas, os tornou furiosos.
Bem mais do que a música em si. Mesmo porque, será que eles poderiam ignorar a mutação de Bob Dylan? Afinal, conforme lembrou o próprio artista, "'Like a Rolling Stone' já havia sido lançado, tocava no rádio, e, de qualquer forma eu já havia começado minha carreira tocando música elétrica, muito antes do advento da cena folk" (ele se refere a "Mixed Up Confusion", uma música que passara completamente despercebida em 1962). Antes de Newport, Dylan havia lançado "Bringing It All Back Home", um álbum bicéfalo com um lado inteiramente elétrico e o outro acústico. Portanto, ele não estava se apresentando com uma máscara.
Geralmente descritos como membros de uma seita de tradicionalistas, os fiéis de Newport estavam abertos para outros gêneros, até mesmo eletrificados. Assim, o festival já havia acolhido estrelas da música country (Johnny Cash e Bill Monroe) e os bluesmen Howlin'Wolf e Muddy Waters. Por fim, no que diz respeito a Pete Seeger, descrito como o vilão reacionário desta história, as suas gravações com os Weavers já incluíam então guitarras elétricas.
Ainda assim, aquela edição do festival de Newport ficou na história como uma data decisiva, no auge do frenesi criativo que conhece Dylan em meados dos anos 60. Quatro meses depois do festival, ele lança o álbum "Highway 61 Revisited", o seu primeiro inteiramente elétrico, completando a sua metamorfose num rock star misterioso e fascinante.
Por sua vez, a turnê que acompanha esta nova obra-prima será profundamente marcada pelo caos, sem dúvida suscitado pelas reações à polêmica apresentação de Newport. O seu empresário lhe impôs uma parte acústica. O resultado disso é que durante o primeiro show no Forest Hills Stadium de Nova York, Dylan é vaiado enquanto ele se apresenta com o seu novo grupo, integrado por Al Kooper, pelo baixista Harvey Brooks e dois músicos dos Hawks (o futuro The Band), o guitarrista Robbie Robertson e o baterista Levon Helm.
A situação será ainda pior do outro lado do Atlântico. "A maior parte dos ataques contra Dylan na primavera 1966 na Inglaterra foi planejada pelo Partido comunista britânico", declarou, em 5 de novembro de 2005, em entrevista a "Le Monde" o ensaísta e crítico de rock Greil Marcus, por ocasião do lançamento do seu livro, "Like a Rolling Stone" (editora Galaade). "Na época, os clubes de folk haviam sido enquadrados; eles deviam preservar a cultura do povo do capitalismo e da corrupção, e Dylan representava uma ameaça. Durante as suas apresentações, grupos de agitadores batiam palmas para perturbar a orquestra".
O incidente o mais célebre ocorreu no Manchester Free Trade Hall, quando, durante um intervalo, um espectador grita "Judas!". Com a voz tremendo, Dylan responde: "Eu não acredito em você, seu mentiroso!" Ele se volta então para a sua orquestra e lhe ordena tocar "Like a Rolling Stone" "alto e bom som".
Tradução: Jean-Yves de Neufville
quinta-feira, agosto 24, 2006
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