terça-feira, setembro 20, 2005

Antes de aprender a falar, nós já praguejamos

Insultar e falar palavrões é uma necessidade natural do ser humano

Natalie Angier
Em Nova York

Irritadíssimos com aquilo que eles consideram como uma virtual pandemia de vulgaridade verbal provinda de figuras tão diversas quanto Howard Stern, Bono do U2 e Robert Novak, o Senado americano está disposto a estudar um projeto de lei que aumentaria consideravelmente as penalidades às quais estaria sujeito quem profere obscenidades no ar.

Ao aumentar em cerca de quinze vezes o valor das multas que seriam aplicadas contra animadores que utilizam uma linguagem ofensiva, para chegar a uma pena de cerca de US$ 500.000 (R$ 1.146,85 milhão) por grosseria proferida no ar, e ao ameaçar revogar as licenças dos "poluidores" reincidentes, o Senado busca retornar ao bom comportamento em público que os tenores mais bem educados mostravam ter num passado distante, quando raramente se ouviam palavras de baixo calão, e que as figuras mais famosas não despejavam palavras sujas o dia inteiro.

Contudo, os pesquisadores que estudam a evolução da linguagem e da psicologia do palavrão afirmam que eles não têm a menor idéia de qual modelo místico de bom comportamento lingüístico os críticos poderiam ter em mente.

Segundo eles, praguejar é um tipo de comportamento humano universal.

Ocorre que toda e qualquer língua, dialeto ou patuá que já tenha sido estudado, que ela seja viva ou morta, falada por milhões ou por uma única tribo minúscula, possui uma parte mais ou menos importante de expressões proibidas, e algumas variáveis da famosa lista de comediante George Carlin que estabelece os sete palavrões que não podem em caso algum ser pronunciados no rádio ou na televisão.

As crianças muito novas irão memorizar este inventário ilícito muito antes de conseguirem entender o seu significado, explica John McWhorter, um especialista em lingüística no Instituto de Manhattan e autor de "The Power of Babel" ("O Poder de Babel"), enquanto os gigantes da literatura sempre construíram sua arte sobre a coluna dorsal das palavras chulas.

"O autor dramático jacobita (que viveu sob o reinado de Jaime 1º de Inglaterra) Ben Jonson apimentou suas peças com expressões tais como "fackings" (forma antiga da palavra "fucking) e "peremptorie Asses" (traseiros proeminentes), enquanto Shakespeare dificilmente conseguia redigir uma estrofe sem nela inserir as impiedades do dia tais como "zounds" ou "sblood" --contrações ofensivas das expressões "God's wounds" (ferimentos de Deus) e "God's blood" (sangue de deus)-- ou ainda algum trocadilho sexual maravilhoso.

Segundo John McWhorter, o título "Much Ado About Nothing" (Muito barulho por nada) é um jogo de palavras com a expressão "Much Ado About an O Thing" (Muito agito sobre uma coisa de O), essa "coisa de O" sendo uma referência à genitália feminina.

Até mesmo o fundamental Bom Livro (a Bíblia) é rico em trechos impróprios tais como aquele que descreve os homens em 2 Reis - 18:27 que, conforme a tradução comparativamente branda do rei James sugere, "comem seus próprios excrementos, e bebem seu próprio mijo".

De fato, segundo explica Guy Deutscher, um lingüista na universidade de Leiden, na Holanda, e autor de "O Desdobramento da Linguagem: Uma Turnê Evolucionista Pela Maior Invenção da Humanidade", os escritos os mais antigos, que datam de cerca de 5.000 anos atrás, incluem uma boa quantidade de descrições ricas em cores das formas humanas e das suas funções ainda mais ricas em cores. E o registro escrito é sempre o reflexo de uma tradição oral que Deutscher e muitos outros psicólogos da linguagem e lingüistas evolucionistas acreditam ter nascido a partir do desenvolvimento da laringe humana, ou até mesmo antes disso.

Alguns pesquisadores estão tão impressionados com a profundidade e o poder da linguagem "forte" que eles a estão utilizando como um orifício de observação da arquitetura do cérebro, como um meio de sondar os vínculos misteriosos e confusos que existem entre as regiões mais novas e "mais elevadas" do cérebro responsáveis pelo intelecto, a razão e o planejamento, e as vizinhanças neuronais mais antigas e mais "bestiais" que dão à luz e governam nossas emoções.

Os pesquisadores apontam para o fato de que o ato de proferir insultos é com freqüência um amálgamo de sensações cruas, espontâneas e dirigidas a um alvo, de modo corrosivo e astucioso. Quando uma pessoa pragueja contra uma outra, dizem eles, o praguejador raramente profere suas obscenidades e seus insultos ao acaso, mas tende a avaliar primeiro o objeto da sua cólera, e ajusta então o conteúdo de sua explosão "incontrolável" de acordo.

Uma vez que o ato de insultar aciona caminhos do cérebro responsáveis pelo pensamento e os sensações numa proporção praticamente equivalente e com um fervor fácil de ser determinado, os cientistas acreditam que ao estudar os circuitos neurais que estão por trás deles, eles conseguem obter uma melhor compreensão dos modos com os quais os diferentes campos do cérebro comunicam entre eles --e tudo em nome de uma réplica bem venenosa.

Outros investigadores examinaram a fisiologia do ato de praguejar, ou seja, como os nossos sentidos e reflexos reagem ao som ou à visão de uma palavra obscena. Eles apuraram que o fato de ouvir obscenidades sendo proferidas e provoca literalmente arrepios nas pessoas. Quando fios eletrodérmicos são colocados nos braços e nas pontas dos dedos das pessoas para estudar a condutividade da sua pele e que elas ouvem então algumas obscenidades proferidas com clareza e firmeza, esses participantes mostram sinais instantâneos de excitação.

Os padrões de condutividade da sua pele disparam, os pêlos dos seus braços ficam em pé, o seu pulso acelera e a sua respiração se torna ofegante.

De maneira Interessante, explica Kate Burridge, uma professora de lingüística da universidade Monash em Melbourne, na Austrália, uma reação similar ocorre com os estudantes universitários e com outros que se orgulham de possuir certa educação quando eles escutam colegas empregarem frases gramaticamente erradas ou expressões de gíria, as quais eles consideram como irritantes, e provenientes de alguém iletrado ou desclassificado.

"As pessoas podem ter reações apaixonadas em relação à linguagem", diz Burridge, "como se ela fosse um objeto querido que precisa ser protegido a todo custo das depravações dos bárbaros e dos alienados do léxico".

Burridge e um dos seus colegas da universidade Monash, Keith Allan, são os autores de "Palavras proibidas: O Tabu e a Censura da Linguagem", que será publicado no ano que vem (nos Estados Unidos) pela editora Cambridge University Press.

Os pesquisadores também descobriram que certas obscenidades podem se alojar sob a pele arrepiada de alguém e então se recusar a sair dali. Num desses estudos, os cientistas começaram com o conhecido teste de Stroop, no qual os pacientes vêem uma série de palavras escritas que piscam em cores diferentes. Então, eles devem reagir chamando as cores das palavras em vez das palavras em si.

Se os pacientes observam a palavra "cadeira" escrita em letras amarelas, eles devem então dizer "amarelo".

Os pesquisadores passam então a inserir certo número de obscenidades e palavras chulas dentro do elenco padrão de palavras. Ao rastrearem as respostas imediatas ou atrasadas dos participantes, os pesquisadores descobriram que, em primeiro lugar, as pessoas precisavam de um tempo significativamente maior para pronunciar as cores dos palavrões do que era necessário para palavras neutras tais como cadeira.

A experiência de ver surgir um texto excitante obviamente distraiu os participantes da sua tarefa de classificar palavras e cores. Ainda assim, essas interferências arriscadas deixaram sua marca. Nos quiz de memória aos quais eles foram então submetidos, não só os participantes se lembraram muito melhor dos palavrões que das palavras neutras, mas esta memória mais aguçada também se aplicou às cores das palavras chulas, assim como ao seu sentido.

Sim, é difícil trabalhar na sombra do lixo. Quando pesquisadores, num outro estudo, pediram aos participantes para examinarem cuidadosamente listas de palavras que incluíam obscenidades e então para se lembrarem da maior quantidade de palavras possível, os pacientes, mais uma vez, se mostraram mais aptos a relembrarem dos insultos --e encontraram muitos problemas quando se tratou de lembrar quais eram as palavras neutras que precediam ou se seguiam aos trechos obscenos.

Ainda assim, da mesma forma que a linguagem chula pode transmitir solavancos, ela pode também ajudar a se livrar do estresse e da cólera. Em certas situações, o fluxo livre da linguagem chula pode ser um sintoma não de hostilidade ou de uma patologia social, e sim de harmonia e tranqüilidade.

"As pesquisas mostram que se você com um grupo de amigos íntimos, quanto mais descontraído você está, quanto mais você profere palavrões", explica Burridge. "É uma forma de dizer: `Eu estou tão à vontade aqui que eu posso despejar vapor. Eu posso dizer o que bem entendo'".

As provas coletadas cientificamente também sugerem que o ato de dizer palavrões pode ser um meio eficiente de prevenir uma possível agressão e, desta forma, de evitar a violência física.

Com ajuda de um pequeno exército de estudantes e de voluntários, Timothy B. Jay, um professor de psicologia na universidade de artes liberais de North Adams, no Massachusetts, e autor de "Praguejando na América" e de "Por que nós praguejamos", explorou a dinâmica dos insultos de maneira muito detalhada.

Os pesquisadores descobriram, entre outras coisas, que os homens em geral praguejam mais que as mulheres, a menos que as ditas mulheres façam parte de uma associação de estudantes, e que os reitores de universidades praguejam mais do que os bibliotecários ou que os membros da equipe diurna do centro médico da universidade.

Independentemente de quem está praguejando e de qual possa ser a provocação, explica Jay, a motivação que levou a proferir palavrões é quase sempre a mesma.

"Tantas vezes as pessoas têm me dito que o ato de praguejar é um mecanismo libertador para elas, uma maneira de reduzir o estresse", disse ele numa entrevista por telefone. "Trata-se de uma forma de manejar a cólera que quase sempre é subestimada".

Além disso, por exemplo, os chimpanzés travam o que parece ser uma espécie de troca de insultos como meio de expressar sua agressividade e de evitar um choque físico potencialmente perigoso.

Frans de Waal, um professor de comportamento dos primatas na Universidade Emory de Atlanta, indica que quando os chimpanzés estão irritados, "eles grunhem ou cospem, ou ainda fazem um gesto abrupto que segue uma curva ascendente, o qual se fosse executado por um humano, seria facilmente identificável como sendo agressivo".

Tais comportamentos são gestos de ameaças, explica de Waal, e todos eles são sinais positivos. "Um chimpanzé que está realmente interessado numa briga não perde tempo fazendo gestos, mas ele simplesmente vai em frente e ataca", acrescenta este especialista.

Considerando este mesmo sintoma, prossegue de Waal, não há nada mais mortal que uma pessoa que está enraivecida demais para proferir insultos --e que simplesmente e tranquilamente saca uma arma e começa a atirar.

Mulher e religião

Os pesquisadores também examinaram de que maneira certas palavras alcançam o status de linguagem proibida e como a evolução da linguagem chula influencia as camadas mais lisas do discurso civil que foi criado por cima dela. Eles descobriram que o que tem valor de linguagem tabu numa dada cultura quase sempre é um espelho que reflete os medos e as fixações desta cultura.

"Em certas culturas, os palavrões são derivados essencialmente do sexo e das funções do corpo, enquanto em outras, eles derivam, sobretudo do campo da religião", comenta Deutscher.

Em sociedades onde a pureza e a honra das mulheres são de suma importância, diz, "não surpreende que muitos palavrões sejam variações sobre o tema do `filho da puta' ou que eles se refiram graficamente à genitália da mãe ou das irmãs do insultado".

O próprio conceito de um xingamento ou de um juramento para rogar uma praga tem origem na importância considerável que as culturas da Antiguidade atribuíam ao nome de um deus ou de deuses. Na antiga Babilônia, utilizava-se o nome de um deus para praguejar para significar uma certeza absoluta contra uma mentira, diz Deutscher, "e esses povos acreditavam que fazer um juramento falso usando o nome de um deus atrairia a terrível cólera daquele deus contra quem o proferisse".

Uma advertência contra todo abuso em relação ao juramento sagrado está reproduzida no mandamento bíblico segundo o qual não se deve "invocar o nome do Senhor em vão", e até mesmo hoje, as testemunhas que comparecem a um processo juram em nome da Bíblia que elas estão dizendo toda a verdade, e nada além da verdade.

Entre os cristãos, a condenação do ato de invocar o nome do Senhor em vão estendeu-se a alusões eventuais ao filho de Deus ou aos sofrimentos corporais do filho de Deus --tampouco se podia mencionar o sangue sobre as feridas ou no corpo, e isso vale para as contrações astuciosas, também.

Hoje em dia, a expressão "Oh, golly!" ("Ó meu Deus") pode ser considerada uma expressão engraça e saudável, mas nem sempre foi assim. "Golly" é uma contração de "God's body" ("Corpo de Deus") e, portanto, foi considerada numa determinada época como uma profanidade.

Ainda assim, nenhum mandamento bíblico e nem o mais zeloso dos censores vitorianos podem impedir a mente humana de seguir caminhos retorcidos na exploração do corpo humano desregrado, as suas demandas crônicas e embaraçosas e a sua triste decadência. O desconforto para com as funções do corpo nunca arrefece, diz Burridge, e a necessidade de manter uma seleção sempre renovada de eufemismos em relação a assuntos sujos serve há muito como um motor impressionante da invenção lingüística.

Toalete

Uma vez que uma palavra se torna associada de maneira excessiva a uma função específica do corpo, acrescenta, uma vez que ele se torna evocativo demais daquilo que não deveria ser evocado, ele começa a ingressar no plano do tabu e deve ser substituído por um novo eufemismo, mais leve.

Por exemplo, a palavra "toalete" deriva de uma palavra francesa que significa "pequena toalha" e era inicialmente usada como uma maneira elegantemente indireta de se referir ao lugar onde fica o penico ou o seu equivalente.

Mas, desde então "toalete" passou a significar a própria privada de porcelana, e como tal soa obtuso demais para ser usada de maneira elegante e bem educada. Em vez disso, as pessoas indagam ao seu anfitrião onde fica o "sala das damas" ("ladies' room") ou a "sala de descanso" ("restroom") ou, ainda, se for necessário, o banheiro.

Da mesma forma, a palavra "caixão" ("coffin") significava inicialmente uma caixa ordinária, mas a partir do momento em que ela foi associada à morte, as pessoas deixaram de lado a palavra e passaram a usar expressões tais como "ele bateu as botas". O valor de tabu do sentido de uma palavra, conclui Burridge, "sempre a leva a adquirir outros significados que aqueles que ela poderia ter tido".

Tradução: Jean-Yves de Neufville

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