A singularidade brasileira
Por Luiz Felipe de Alencastro
A escravidão no Brasil se estendeu sobre a totalidade do território, envolveu todas as camadas sociais e amarrou a opinião pública nacional em torno de seu sistema
Todos os países americanos tiveram em seu solo escravos africanos. Mas nenhuma parte do Novo Mundo praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de 11 milhões de africanos deportados para as Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1850). O outro grande país escravista, os Estados Unidos, que praticou o tráfico negreiro durante um século apenas (1700 e 1808 ), recebeu uma proporção muito menor, perto de 600.000, ou seja, 5,5% do total. No final, o Brasil aparece como o agregado político americano que recebeu o maior número de africanos e que praticou durante mais tempo a escravidão.
Num debate de idéias com o historiador cubano Manuel Moreno Fraginals, o historiador americano Dale Tomich procurou distinguir a escravidão articulada às economias européias dos séculos XVI, XVII e XVIII dos sistemas escravistas que evoluíram no século XIX conectados à Revolução Industrial. Tomich observa que a produção de algodão, açúcar e café para os mercados dos países industrializados oitocentistas, inseriu as plantações escravistas do Sul dos Estados Unidos, do Brasil, de Cuba e de Porto Rico num quadro bancário, num processo produtivo (uso de máquinas, de transporte ferroviário e de navegação a vapor) e num mercado consumidor (formado por uma participação crescente de classes médias e trabalhadoras européias e norte-americanos) mais evoluído do que o contexto social e econômico predominante nos séculos anteriores. A análise de Tomich está correta, mas ela lida com fatores econômicos e sociais, fazendo abstração da esfera política, onde ocorre o verdadeiro impacto da modernização do escravismo. E é nesta última dimensão que aparece mais uma vez a singularidade brasileira.
Tomemos as diferenças existentes entre Cuba e o Brasil, os dois maiores importadores de africanos na primeira metade do século XIX. Em primeiro lugar, a condição política cubana -colônia da Espanha até 1901- restringia a margem de manobra dos dirigentes e dos habitantes da ilha. Em seguida, Cuba estava submetida a um jogo complexo de influências, no qual, além de Madri e Londres (interessada na supressão do tráfico negreiro praticado pelos cubanos até 1867) também intervinha Washington. À caça de navios negreiros, a marinha de guerra inglesa não podia penetrar nas águas cubanas porque atraía a oposição da Espanha e dos Estados Unidos.
No Brasil, o quadro era diferente. O país se apresentava como a única nação independente envolvida no tráfico negreiro e dotada de um sistema escravista de dimensões continentais. Declarado ilegal em 1831 pela legislação brasileira editada sob pressão britânica, o comércio negreiro prosseguiu até 1850 e a escravidão só foi abolida em 1888.
Note-se as circunstâncias históricas que caracterizam a especificidade do escravismo entranhado no Estado nacional, como nos Estados Unidos e no Brasil.
Deportado da África ou nascido no solo brasileiro, o cativo incorporava-se ao campo das leis civis, comerciais e penais. Tais leis eram debatidas e redigidas no Parlamento, nas assembléias provinciais e nas câmaras municipais. É também nos tribunais brasileiros que se definia a jurisprudência na matéria. Nas faculdades de direito de São Paulo e de Recife, juristas e futuros advogados, cuja vida e profissão se imiscuía no cotidiano dos escravos, estudavam os efeitos disarmônicos da penetração do direito positivo na sociedade escravista. Era ainda nas instâncias nacionais que se decidia o futuro do sistema, de sua atualização ou de sua eventual abolição e das alternativas presentes no horizonte dos cidadãos. O mesmo ocorria no Sul dos Estados Unidos.
Consequentemente, no Brasil e no Sul dos Estados Unidos, o caráter local, nacional, das normas e das leis, levava à refundação da escravidão no quadro do direito moderno e da contemporaneidade. Desde logo, a afirmação da escravidão como fundamento da soberania nacional define, no Sul dos Estados Unidos e no Brasil, um campo histórico específico.
Isto posto, é importante sublinhar também a diferença entre os dois países. Dada a organização federal americana, o abolicionismo conseguiu consolidar-se na esfera regional. Quando o tráfico negreiro para os Estados Unidos foi abolido em 1808, a escravidão já havia sido eliminada em oito Estados e só existia em nove Estados americanos. Dai para a frente, o sistema só subsistiu nos Estados sulistas como uma prerrogativa regional vigorosamente combatida pelos outros Estados da federação.
No Brasil, ao contrário, a escravidão se estendia sobre a totalidade do território, envolvendo todas as camadas sociais e amarrando a opinião pública nacional em torno do sistema. Para se ter uma idéia, na província do Rio de Janeiro, o número de escravos (294.000) ultrapassava o número de livres e libertos (264.000). Na cidade do Rio de Janeiro, corte de uma monarquia que pretendia representar a civilização européia no Novo Mundo, viviam na mesma data, por volta de 1850, 266.000 habitantes dos quais 110.000 (41%) eram escravos, formando a maior concentração urbana de cativos das Américas. Este largo consenso nacional sobre a propriedade escrava compôs o fundamento histórico do escravismo brasileiro.
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Todos os países americanos tiveram em seu solo escravos africanos. Mas nenhuma parte do Novo Mundo praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de 11 milhões de africanos deportados para as Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1850). O outro grande país escravista, os Estados Unidos, que praticou o tráfico negreiro durante um século apenas (1700 e 1808 ), recebeu uma proporção muito menor, perto de 600.000, ou seja, 5,5% do total. No final, o Brasil aparece como o agregado político americano que recebeu o maior número de africanos e que praticou durante mais tempo a escravidão.
Num debate de idéias com o historiador cubano Manuel Moreno Fraginals, o historiador americano Dale Tomich procurou distinguir a escravidão articulada às economias européias dos séculos XVI, XVII e XVIII dos sistemas escravistas que evoluíram no século XIX conectados à Revolução Industrial. Tomich observa que a produção de algodão, açúcar e café para os mercados dos países industrializados oitocentistas, inseriu as plantações escravistas do Sul dos Estados Unidos, do Brasil, de Cuba e de Porto Rico num quadro bancário, num processo produtivo (uso de máquinas, de transporte ferroviário e de navegação a vapor) e num mercado consumidor (formado por uma participação crescente de classes médias e trabalhadoras européias e norte-americanos) mais evoluído do que o contexto social e econômico predominante nos séculos anteriores. A análise de Tomich está correta, mas ela lida com fatores econômicos e sociais, fazendo abstração da esfera política, onde ocorre o verdadeiro impacto da modernização do escravismo. E é nesta última dimensão que aparece mais uma vez a singularidade brasileira.
Tomemos as diferenças existentes entre Cuba e o Brasil, os dois maiores importadores de africanos na primeira metade do século XIX. Em primeiro lugar, a condição política cubana -colônia da Espanha até 1901- restringia a margem de manobra dos dirigentes e dos habitantes da ilha. Em seguida, Cuba estava submetida a um jogo complexo de influências, no qual, além de Madri e Londres (interessada na supressão do tráfico negreiro praticado pelos cubanos até 1867) também intervinha Washington. À caça de navios negreiros, a marinha de guerra inglesa não podia penetrar nas águas cubanas porque atraía a oposição da Espanha e dos Estados Unidos.
No Brasil, o quadro era diferente. O país se apresentava como a única nação independente envolvida no tráfico negreiro e dotada de um sistema escravista de dimensões continentais. Declarado ilegal em 1831 pela legislação brasileira editada sob pressão britânica, o comércio negreiro prosseguiu até 1850 e a escravidão só foi abolida em 1888.
Note-se as circunstâncias históricas que caracterizam a especificidade do escravismo entranhado no Estado nacional, como nos Estados Unidos e no Brasil.
Deportado da África ou nascido no solo brasileiro, o cativo incorporava-se ao campo das leis civis, comerciais e penais. Tais leis eram debatidas e redigidas no Parlamento, nas assembléias provinciais e nas câmaras municipais. É também nos tribunais brasileiros que se definia a jurisprudência na matéria. Nas faculdades de direito de São Paulo e de Recife, juristas e futuros advogados, cuja vida e profissão se imiscuía no cotidiano dos escravos, estudavam os efeitos disarmônicos da penetração do direito positivo na sociedade escravista. Era ainda nas instâncias nacionais que se decidia o futuro do sistema, de sua atualização ou de sua eventual abolição e das alternativas presentes no horizonte dos cidadãos. O mesmo ocorria no Sul dos Estados Unidos.
Consequentemente, no Brasil e no Sul dos Estados Unidos, o caráter local, nacional, das normas e das leis, levava à refundação da escravidão no quadro do direito moderno e da contemporaneidade. Desde logo, a afirmação da escravidão como fundamento da soberania nacional define, no Sul dos Estados Unidos e no Brasil, um campo histórico específico.
Isto posto, é importante sublinhar também a diferença entre os dois países. Dada a organização federal americana, o abolicionismo conseguiu consolidar-se na esfera regional. Quando o tráfico negreiro para os Estados Unidos foi abolido em 1808, a escravidão já havia sido eliminada em oito Estados e só existia em nove Estados americanos. Dai para a frente, o sistema só subsistiu nos Estados sulistas como uma prerrogativa regional vigorosamente combatida pelos outros Estados da federação.
No Brasil, ao contrário, a escravidão se estendia sobre a totalidade do território, envolvendo todas as camadas sociais e amarrando a opinião pública nacional em torno do sistema. Para se ter uma idéia, na província do Rio de Janeiro, o número de escravos (294.000) ultrapassava o número de livres e libertos (264.000). Na cidade do Rio de Janeiro, corte de uma monarquia que pretendia representar a civilização européia no Novo Mundo, viviam na mesma data, por volta de 1850, 266.000 habitantes dos quais 110.000 (41%) eram escravos, formando a maior concentração urbana de cativos das Américas. Este largo consenso nacional sobre a propriedade escrava compôs o fundamento histórico do escravismo brasileiro.
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Luiz Felipe de Alencastro
É professor de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O trato dos viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul (Companhia das Letras).
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