quarta-feira, setembro 21, 2005

Sarcasmo sobre racismo tem efeito bumerangue

A situação dos negros na França não é diferente de Nova Orleans
John Tagliabue
Em Paris

Os veículos de informação franceses foram cativados pelo furacão Katrina. Eles apontam de que maneira a reação pífia do governo americano ao desastre trouxe à tona, e à vista de todos, a triste condição de muitos negros americanos. Mas, desta vez, os franceses, que há muito têm criticado o racismo da América, não puderam evitar traçar alguns paralelos com o que ocorre no seu próprio território.


Sissouo Cheicka teve dificuldade para obter empréstimo ao abrir sua loja, que dá lucro
"É verdade que as devastações do Katrina expuseram cruelmente à luz do dia as feridas da América, a multiplicação dos guetos na sociedade, a pobreza, a criminalidade, as tensões raciais e territoriais", afirma o diário conservador "Le Figaro", num editorial publicado em 8 de setembro. "Na França, os que discordam com essa situação apressam-se a apedrejar o `modelo americano' e o seu presidente neo-conservador. Mas será que eles ao menos viram o estado em que se encontra o seu próprio país?".

Quatro dias apenas antes disso, um incêndio havia destruído um apartamento no sul de Paris, matando doze pessoas, a maioria das quais era negra. E poucos dias antes disso, 17 negros morreram num único incêndio. Desde abril, 48 pessoas, a maioria das quais eram crianças e todas elas negras, morreram em quatro incêndios diferentes em Paris.

Em cidades suburbanas tais como Château Rouge, lotadas de centenas de milhares de imigrantes não-brancos, entre os quais alguns árabes, mas, sobretudo uma maioria de negros, os quais a França foi absorvendo ao longo dos anos, vindos das suas ex-colônias na África e no Caribe, dá para sentir a cólera das pessoas no ar.

"Pode até ser uma coincidência", diz Sissouo Cheickh, num tom amargo, "mas há uma pergunta à qual os franceses precisam responder: Das 48 pessoas que morreram, por que todas as 48 eram negras?".

Cheickh, 28, obteve um diploma universitário na França, mas em vez de trabalhar para alguma pessoa ou empresa e de ter de encarar aquilo que ele e outros jovens negros chamam de "baixo teto de vidro da França", ele optou por iniciar o seu próprio negócio. Seis meses atrás, ele juntou algum dinheiro e abriu uma loja.

"Você vê esses tecidos? Tudo isso vem da África, da minha família", diz Cheickh, que é originário do Mali, gesticulando em volta de rolos de panos multicoloridos.

Há muito a França se gaba de ser o berço dos direitos humanos e um baluarte contra o racismo. No passado, regularmente, ela denunciava o racismo nos Estados Unidos, abria as suas portas para artistas que se dispunham a fazer a viagem de Harlem até Paris, convidava negros americanos talentosos tais como a dançarina Josephine Baker, músicos como Sidney Bechet e escritores como Richard Wright e James Baldwin.

Mas a insistência dos franceses em defender a igualdade entre os homens os empurra fora da realidade, segundo afirmam os seus críticos negros, uma vez que eles perpetuam com isso a ficção de uma sociedade sem minorias.

O censo na França não classifica as pessoas por raças. Com isso, enquanto se supõe que o número de negros seja de cerca de 1,5 milhão, para uma população total de 59 milhões, ninguém sabe realmente qual é o número exato, o qual na realidade, segundo outras estimativas, é bem mais elevado.

Não há praticamente negros no mundo empresarial francês, enquanto os negros não têm praticamente nenhuma representação política. Nenhuma pessoa negra tem assento na Assembléia Nacional ou num parlamento regional, e raros são aqueles vistos atuando nas câmaras municipais. A União Européia financia programas de ajuda às minorias, mas não na França, por causa da sua recusa a reconhecer a existência das minorias.

Com isso, hoje, os negros não aparecem nem um pouco na ordem do dia francesa. Depois dos recentes incêndios, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, propôs implantar um programa de ação afirmativa e um projeto de lei visando a pôr fim à ocultação da identidade racial ou étnica de uma pessoa. Mas os outros membros do ministério, inclusive o ministro para a igualdade das oportunidades, rejeitaram essas idéias, alegando que elas ofendem o princípio fundamental de igualdade.

"Os franceses gostam de dizer: `Os negros são um problema social, não racial"', diz Gaston Kelman, 52, um nativo de Camarões autor de muitos livros sobre a população negra na França. "Por esta razão, as nossas instituições não têm meios para resolver o problema".

Até recentemente, praticamente todos os negros encontravam-se no degrau mais baixo da escada social. No entanto, aos poucos, uma nova geração, da qual faz parte Cheickh, recebe uma educação, uma formação, abre empresas e gradualmente vai dando à luz uma classe média negra. Eles estão sentindo a discriminação que, segundo eles impregna a sociedade francesa e estão começando a resistir.

Após ter obtido em diploma em economia e processamento de dados, Claude Vuaki fez a sua aprendizagem em vários empregos antes de decidir iniciar o seu próprio negócio.

Junto com a sua mulher, Kibe, ele abriu um salão de beleza na região central de Paris. Mas a procura de Vuaki de um capital para a sua start-up foi típica dos sofrimentos que os negros costumam suportar. "Eles disseram imediatamente, nada de empréstimo, nada de dinheiro", conta Vuaki, 52. Junto com a sua mulher, ele conseguiu reunir algum dinheiro economizado pela sua família para auto-financiar sua loja.

Agora, os negócios vão indo tão bem que eles planejam abrir uma segunda loja, em Nice ou em Cannes. Kibe Vuaki viaja regularmente para os Estados Unidos onde ela estuda os cortes de cabelos afro-americanos.

Ainda assim, ela se inclui dentro de uma minoria relativamente pequena. A maioria dos negros é empregada em trabalhos domésticos ou servis, na construção civil ou nos transportes. O que incentiva pessoas como Vuaki é que o teto de vidro que os jovens negros que têm acesso a uma formação sentem com tanta freqüência não os deixa desencorajados, mas, cada vez mais, os motiva a irem à luta por conta própria.

"Muitas pessoas que eu conheço querem criar algo por conta própria", diz ele, com freqüência nos setores do paisagismo, da construção e dos serviços de entrega.

Mesmo assim, Kelman precisa que esta pequena abertura não está inibindo muitos jovens africanos que receberam uma educação de irem embora para a Grã-Bretanha, o Canadá ou os Estados Unidos, onde eles acreditam que encontrarão maiores oportunidades.

Indagado se o povo francês é racista, Kelman respondeu: "É um racismo matizado. Todo francês lhe dirá imediatamente: `Um dos meus melhores amigos é negro"'.

Kelman acrescenta que as políticas de habitação e de emprego criam uma "fábrica de guetos institucionalizada". Ele descreve dando boas risadas uma típica entrevista para um emprego para um candidato negro.

Quando o patrão percebe que o candidato é negro, ele começa celebrando as paisagens e os sons da África, que ele descobriu durante suas mais recentes férias neste continente: As praias de perder de vista, a vegetação belíssima, o vasto céu. Nem é preciso dizer que o candidato não consegue o emprego.

Nas escolas, os alunos brancos são normalmente incentivados a darem prosseguimento aos seus estudos, enquanto as crianças negras não raro são orientadas a seguirem estudos vocacionais. A influência dos afro-americanos, por intermédio da televisão, dos filmes e dos esportes, está em toda parte.

Alguns jovens negros acabam se voltando para o afrocentrismo (filosofia que faz da África o centro do mundo), explica Kelman, outros para os rappers e outros ainda para os grupos de negros muçulmanos. O que eles não fazem é se inserir na corrente principal da sociedade francesa.

"Nós estamos num impasse", conclui Kelman.

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