terça-feira, setembro 20, 2005

Porque avião não decola sem co-piloto

Arthur Baker
16.09.05

1977. Larry Levan, no Paradise Garage, é ícone do pleno apogeu da disco. "Kind of Life", canção de um garoto de 22 anos, é sucesso nas mãos do DJ. Ele assina para o selo West End e atende pela alcunha North End, mas seu nome é Arthur Baker. Filho de Boston, Massachussets, era recém-chegado na Big Apple e levava na memória seus dias de discotecar, principalmente influenciado pela escola do soul da Filadélfia. "Nunca fiz uma música realmente boa sem ter saído para dançar no dia anterior", diria décadas após.

Dois anos depois, encontra o cantor Joe Bataan, especialista em soul latino. Em sociedade, recrutados para o selo Salsoul, compõem "Rap-O, Clap-O", que, Bataan jura, é ainda mais antiga que "King Tim III", da Fatback Band, e "Rapper's Delight", da Sugarhill Gang", podendo levar o título de primeiro hip hop gravado na história.

1981. Vendedor de uma loja de discos, Arthur Baker investia suas horas de descanso em passeios a parques, onde podia escutar sons que vinham do gueto e ver o que aprontavam os b-boys. A toda hora, "Trans-Europe Express", do Kraftwerk, nas caixas. O tecladista John Robie, seu braço direito, um tal Kevin Donovan, homem Nação Zulu Universal, e sua trupe Soul Sonic Force, se unem a ele em parceria. Donovan, já revelado Afrika Bambaataa, entra no estúdio segurando uma cópia do disco "Super Sporm", de 1978, single do baixista Captain Sky. "Taí a batida. Vamos usar", diz firme. Deu pitaco, Baker executou. Estava eleito o break de "Planet Rock", logo sucedida por "Looking For The Perfect Beat" e "Renegades of Funk", um todo alienígena e meio ameaçador, mas absolutamente inovador. Eram as vigas, então, do que chamaríamos de electro. Experiência adquirida por Baker para as suas artimanhas em "Put The Needle To The Record", de 1987, feita sob seu pseudônimo Criminal Element Orchestra, "Breaker's Revenge", de 1984 (da trilha do essencial filme "Beat Street"), "I.O.U.", do Freeez, e "Walking On Sunshine", do "Rockers Revenge", ambas de 1982.

1983. Uma banda chamada New Order cruza o Atlântico em direção a Nova York, a fim de colher as glórias de "Blue Monday", e encontra um cicerone especial. Era Baker. Dias no estúdio do produtor renderam "Confusion", que equilibrava a perspectiva electrofunk e soul do americano e a instumentação melódica dos rapazes de Manchester. Foi a primeira vez que o New Order viu uma música ser feita e tocada na mesma data. Arthur a incluiu em seu set, à noite.

Hoje, do alto de 60 anos, Baker olha para seus cerca de quarenta anos de carreira e rememora uma lista infindável de nomes. Rolling Stones, U2, David Bowie, Cyndi Lauper, Diana Ross, Bruce Springsteen, Ash, Lou Reed, Jimmy Cliff, Robbie Williams, New Kids On the Block, Quincy Jones, Gypsy Kings, Debbie Harry, Oingo Boingo, Tom Tom Club, Bee Gees, Nene Cherry, Lolleatta Hollaway, Morcheeba e tantos mais. A todos, produziu, mixou ou compôs, deixando claro que, sem co-piloto, avião não decola.

Se é viável concentrar em uma só figura o pioneirismo do hip hop, do electro e de larga parte da música eletrônica dançante como a conhecemos hoje, é na de Arthur Baker. E citar estes três campos, apenas, é simplista. Mais influente e imitado do que ele? Díficil. Como seria a música de hoje sem o dedo do homem na história? Incógnita.

Arthur Baker é atração da edição 2005 do Tim Festival.


» É verdade que você tem um salão de sinuca em Londres atualmente? Você tem feito algo em sua carreira artística?
Sou dono de um restaurante chamado Harlem Soul, e tenho sociedade em uma rede de salões de sinuca chamada The Elbow Room. Mas a música está novamente em meu horizonte, tanto através das minhas discotecagens na minha noite itinerante “Return To New York”, que está viajando o mundo todo, quanto pelo fato de estar produzindo um álbum novo para ser lançado no início de 2006. Ainda estou no páreo!

» Você concorda que seus experimentos com edição e produção de sons de batidas quebradas e eletrônicas definiram boa parte da música dançante dos últimos vinte e cinco anos?
Sempre fui um fã de música com mente bem aberta, desde o rock'n'roll dos Rolling Stones e do David Bowie até o funky soul de James Brown e de Sly & The Family Stone, ou a eletrônica do Kraftwerk. A combinação de todos estes elementos me fez querer experimentar. Por sorte, o período em que eu fui começar coincidiu com o advento de uma nova tecnologia em produção musical, que incluía scratches, o uso de samples, a prática de uso dos loopings, além de programar e seqüenciar. Inicialmente, o processo se deu com bandas ao vivo, depois através de edição de fitas de rolo e do o uso de baterias eletrônicas, e finalmente com o uso de laptops e computadores durante todas as fases do processo. A verdadeira quebra de normas ocorreu quando se começou a emular música ao vivo a partir de equipamentos eletrônicos, e quando se começou a pensar em produzir faixas para os clubes, especialmente quando se tinha como inspiração um repertório para clubes como o Paradise Garage ou o Fun House.

» O breakdance é considerado um marco essencial para as cenas de hip hop e electro-funk dos anos oitenta. Por que você acha que este movimento emergiu justamente dos guetos americanos?
Tudo eclodiu a partir da cidade de Nova York porque foi ali que se desencadeou a valorização do DJ e a era disco do meio dos anos setenta. As gravadoras estavam lá, assim como DJs criativos e grandes lojas. Outro fator interessante é que a Big Apple atraía imigrantes de lugares como Jamaica e Porto Rico. Era uma grande mistura cultural e musical. A combinação destas culturas está na origem do hip hop, movimento que abrange o rap (contração para "Rhythm And Poetry"), os grafiteiros e o breakdance. Os jovens de Porto Rico eram os mais influentes no breakdance, e muitos grafiteiros eram de origem espanhola.

» Por falar nisso, tem uma faixa sua chamada “Jamaica”. Ela nos lembra da importância que teve a cultura musical jamaicana através do dub, dos Mestres de Cerimônia (MCs) e dos movimentos musicais populares de rua...
Foi mesmo de uma importância fundamental, porque a cultura DJ era muito forte por lá durante as décadas de sessenta e setenta, e foram eles os verdadeiros pais do rap como movimento. A idéia de se improvisar falas em bases instrumentais de dub veio da Jamaica. As trajetórias de DJs como François Kevorkian, Larry Levan, e, de uma forma mais direta, Kool DJ Herc e Afrika Bambaataa, é significativa. Todos eles foram diretamente influenciados pelo dub jamaicano.

» O início da sua parceria com o New Order parece ter mudado para sempre a trajetória da banda. Que contribuição você honestamente acredita ter dado?
Nós servimos de inspiração um para o outro. É assim até hoje. Eles já estavam interessados em disco, na música eletrônica e dançante já antes de me conhecerem, mas creio que acabaram aprendendo comigo a não ter medo de arriscar em estúdio, de tentar. Ali não tem erro: tudo pode ser usado no processo criativo.

» Alguns dizem que é de 1982, outros juram que foi em 1981, então, por favor, esclareça essa dúvida tão pertinente de nós, pobres mortais e fãs deste clássico: quando foi que vocês lançaram o “Planet Rock”, do Afrika Bambaataa & The Soulsonic Force? Teria sido este o primeiro grande estouro do gênero?
Pelo que recordo, foi feito em 1981, e lançado, se não me engano, entre o final de 1981 e o início de 1982. Me lembro de tocar a demo dela numa festa de natal de 1981. Virou o hino da cena, e foi tocada desde o Paradise Garage até o Fun House... realmente não tinha como deixar de ouvir. No momento em que a gravamos, sabia que estávamos entrando para a história da música.

» Você chegou a discotecar no início da sua carreira, não? É verdade que foi em um clube em Boston? Como era a cena daquela região dos Estados Unidos na época?
A cena no nordeste dos EUA era muito próxima à de Nova York, só que com alguns meses de atraso durante o início da era disco [1972-1974]. Depois disso, esse atraso musical passou a ser de cerca de uma semana. Muitos ítalo-americanos estiveram envolvidos na cena disco americana e vários dos grandes DJs desta época, tanto de Nova Iorque quanto de Boston, eram ítalo-americanos. Uma das minhas primeiras faixas, “Kind Of Life (Kind Of Love)”, lançada pela gravadora West End [a mesma pela qual o EP do paulistano Anderson Soares foi lançado recentemente], era um tributo à região italiana de Boston.

» Por outro lado, através do famoso selo Emergency (por onde Shannon e Kano lançariam seus clássicos tempos após), você deu alguns de seus primeiros passos, também no final dos anos setenta. Como foi que surgiu a oportunidade?
Por pura e simples perseverança. Inicialmente, nós gravamos em Boston a faixa “Happy Days” [do projeto North End, de Baker, Russell Presto e Tony Carbone] em parceria com Maurice Starr e Michael Jonzun [o mesmo que fez parte do Jonzun Crew, New Edition e anos após do New Kids On The Block]. Levamos a demo ao Sergio Cossa, o homem por trás da Emergency [e por acaso um ítalo-americano também] e finalizamos a produção com músicos de Nova York e a ajuda de Tee Scott nas mixagens. Através dos repertórios do DJ Larry Levan, a faixa se tornou um grande sucesso no Paradise Garage. Foi o meu primeiro grande hit de clubes, e o último no qual eu não usei baterias eletrônicas.

» Você foi chamado pelo pessoal da Salsoul [selo essencial de disco] para trabalhar em parceria com o Joe Bataan em um projeto chamado “Rap-O-Clap-O”, praticamente no mesmo período em que “Rapper’s Delight” (1979), da Sugar Hill Gang, era lançada fazendo uso de samples do hit de disco “Good Times”, do Chic. Será que isso serve de prova de que havia um respeito mútuo entre as cenas de hip hop e da disco da época?
Não havia duas cenas naquele tempo. Havia uma só. Os clássicos de breaks que os b-boys dançavam também faziam parte dos repertórios dos DJs na cena (inclusive nos clubes de ‘disco’). As faixas do Kraftwerk, por exemplo, eram bastante tocadas antes mesmo de “Planet Rock” vir à tona. Os rappers e os b-boys amavam disco.

» “Play At Your Own Risk” foi um dos marcos iniciais do freestyle, não?
Acho que a idéia de uma bela música com vocais em uma base de electro serviu definitivamente de base para inspirar os jovens do freestyle, do hip hop com raízes latinas e os produtores de miami bass que viriam após, e serve até hoje – como no caso do Timba Crew e do Lil’ Jon And The Nerd.

» No seu hino “Breaker’s Revenge”, você usou um sample de “Girls Just Wanna Have Fun”, da Cindy Lauper. Mas, na verdade, parece que as suas faixas foram muito mais alvo de samples do que o contrário: a “Renegades Of Funk” foi sampleada por uma série de produtores do período do hardcore, como em "The Phantom", do Renegade Soundwave, ou, no caso do sucesso da samplemania, "M/A/R/R/S – Pump Up The Volume", que usou o “Put The Needle To The Record”, do seu projeto Criminal Element Orchestra. Como você se sente a respeito?
Sampleei primeiro, então não poderia me incomodar se outros fizessem o mesmo com as minhas faixas. Mas se tem gente ganhando muito dinheiro com minhas músicas, não me incomodo de ganhar uma porcentagem...


Alain Patrick e Jamille Pinheiro

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