sexta-feira, janeiro 06, 2006

Professor Levado a Sério
Flavio tonnetti



Não é a primeira vez que eu tento me tornar um professor da rede pública de ensino do estado de São Paulo. Foram duas as vezes que tentei. Esta é a segunda. Portanto, ainda tento. Sobre a primeira falarei mais adiante.
Estou novamente em meio à burocracia do Estado, após ter sido, desta vez, aprovado em concurso. E chove. Chove muito.
Somos mais de mil em uma mesma fila. Muitos professores vieram de longe, de outras cidades, a muitos km da cidade de São Paulo, em busca de um laudo médico - laudo necessário para ser admitido e iniciar o nobre trabalho de docência no serviço público estadual.
Mais de vinte mil profissionais do ensino professores ingressaram neste concurso.
E foram todos mandados ao mesmo local para os exames.
Enquanto aguardo na fila, numa espera de 3 horas, procuro, juntamente com meus colegas, me abrigar sob as marquises. E, ao mirar para cima, esperando ver o céu, na busca de algum concreto que me proteja, vejo, penduradas, nas paredes externas que dão para a rua local onde estamos as bandeiras do meu país.
Vejo as bandeiras do meu país e do meu estado tremularem ao vento. Mas as bandeiras do meu país e do meu estado tremulam sem vontade sob a chuva; e sobre a fila.
E é tão singelo este momento.
Seria belo, não fosse a fila e a chuva.
Enquanto aguardamos resignados nessa espera sem projeto, uns desiludem, uns anestesiam, uns bufam.
Ninguém fica indiferente ao fato de esperar 3 horas na rua em uma fila debaixo de chuva.
Contam-me, enquanto espero, algo sobre a pedagogia do Amor, pedagogia do querido secretário de Educação do meu Estado. O mesmo que organiza as filas, as pessoas e as chuvas. Ele não está lá. Ouvi dizer que ele não dá aulas na rede pública. Parece que em universidades particulares. É o que eu ouvi dizer. Onde é muito bem pago, imagino.
E enquanto nada sabemos sobre o Amor só o secretário o comércio da região se incrementa. Surgem homens vendendo doces, capas de chuva, e até um com uma máquina que datilografa é que cometem muitos erros aqueles funcionários que preencheram os documentos e as fichas dos quase recém contratados professores.
A fila, vai ver, é proposital: um motor para a micro-economia local e um combustível para os ambulantes.
Na fila, sob as bandeiras do meu estado e sob a chuva, penso na minha própria condição de vida; na minha profissão; na minha inocência. Penso que no meu país ser professor não é escolha, é resignação.
A gente é o que sobra.
Porque quem deu certo como ser humano, não se digna a passar na chuva todas essas horas; esta espera sem explicação.
E penso no serviço público de meu país. No sucesso da política. No planejamento e na organização. E só me resta duas possibilidades de pensamento: que meus dirigentes esses mesmo dirigentes que sabem tanto sobre Amar ou são ingênuos ou são cínicos.
Não acredito em gente ingênua na política de meu país.
E há ainda a incompetência. Mas não posso imaginar que a incompetência possa ocupar cadeiras das direções políticas ou mesmo as cátedras de universidades particulares. Talvez seja algo relacionado à incompatibilidade das duas funções. E fico a pensar qual delas remuneraria mais.
Se nossos funcionários e políticos, sempre solícitos e ao nosso dispor, falham no planejamento, é compreensível. Afinal, é claro que não havia se cogitado sequer uma operação especial para atender esses milhares de quase novos funcionários; algo muito difícil de se fazer já que as datas e admissões foram publicadas muito antes e eram sabidas há muitos meses. Se a falha na organização é compreensível e nós compreendemos, tanto que não quebramos nada e esperamos pacientemente na fila há algo que não soa bem: nosso imponente serviço público falha também no treinamento de seus funcionários e no atendimento daqueles que chegam em busca do almejado laudo médico: falham no atendimento dos professores na fila.
Os atendentes que nos recebem sabem pouco. Na verdade eles não sabem nada. As informações são desencontradas. Ninguém sabe de nada e todos os atendentes acabam sempre por desferir aquela frase que os torna imunes: ah, a culpa não é minha! E como a culpa não é de ninguém e ninguém sabe de nada, com Amor, esperamos. Na fila. E sob a chuva.
No meu país e no meu Estado ser professor é desespero. Desespero de não poder exercer outra profissão. De não ter qualidades atraentes ao mercado global ou simplesmente de ter escolhido uma equivocada graduação. Ser professor é não ter vocação para a política, para o discurso inflamado ou para o insucesso de qualquer outro trabalho assalariado onde se precise convencer sem ter verdadeira empolgação. Meu país é subdesenvolvido. Mesmo no maior Estado da Nação, onde circulam o maior capital e as maiores mentes, só nos resta esperar, na fila, pelas sobras.
E professor é o que sobra. É inadequação na vida.
No país em que vivo é assim. Veja: estão ali os que não deram certo. Os que falharam. E mesmo estes, que são um estrato dos 20 mil que foram aprovados num concurso, são muito mais bem sucedidos que outros 120 mil, que trabalham num regime alternativo, já que do Estado não são funcionários oficiais.
Foi sob este regime alternativo que tentei engrossar o corpo de docentes do Estado de São Paulo pela primeira vez. Na ocasião, lembro-me bem, eu tentava me integrar como "professor eventual", uma designação inexata para um professor que cobre lacunas dos professores que faltam.
O professor eventual é uma espécie de distraidor - ou bedel - dos alunos na ausência do professor titular.
É mais ou menos assim: quando um professor falta, e eles faltam bastante, o professor eventual que no fundo não é professor nem nada assume o espaço da aula.
O professor dá uma aula qualquer, ou não dá nada. E ninguém além dos alunos sabe o que o professor eventual fez ou faz. Os alunos também não sabem nada. É por isso que o professor eventual não precisa fazer nada. Apenas cuidar para que os alunos não quebrem a escola, se matem uns aos outros, façam sexo explícito e nem nada do gênero. Porque a estrutura existe como existe, porque existe gente que realmente pensa que essas coisas acontecem porque essas coisas acontecem, é claro. E que "acreditam na educação" e na eficiência do magistério além de acreditar na eficiência e utilidade dos professores eventuais, claro.
Mas os professores eventuais podem muito bem assumir sua própria carga completa de aulas. E isso é muito comum já que faltam 120 mil professores oficiais. Tanto que esses 120 mil professores que faltam são substituídos por professores que se submetem e se resignam a lecionar nesses regimes alternativos de trabalho.
Funciona mais ou menos assim essa história de começar a lecionar na rede pública do Estado de São Paulo: ou você é aprovado no concurso (como eu fui desta segunda vez) ou, no início do ano, numa data bem específica, você vai lá na Diretoria de Ensino mais próxima da sua casa, leva uma centena de documentos e faz sua inscrição como professor disposto a lecionar na região daquela diretoria de ensino. Lecionar aquela matéria no qual você é habilitado e que sobrou para você. Que "sobrou", porque justamente os concursados escolhem primeiro as aulas que darão justo, já que eles são concursados mas como os concursados são poucos, eles escolhem logo e deixam muitas escolas e aulas para os professores eventuais, inscritos e afins. Isso porque a rede estadual de Ensino não tem em seus quadros de funcionários, professores suficientes para atender a demanda de ensino do Estado.
Mesmo depois de escolher as aulas e as escolas onde darão aulas, os professores concursados podem "pedir afastamento", porque, afinal, ninguém quer deixar de usufruir dos seus direitos de funcionário público; e nada como ficar afastado deste ambiente horrível e hostil que é a sala de aula. Isso é um sentimento muito comum entre os professores concursados. Ou deve ser, já que a quantidade de gente que se afasta ou pede licença não é das menores.
Sobre a escolha de aulas feita por esses professores não concursados é assim: há uma pontuação, que corresponde à quantidade de aulas dadas. Uma espécie de ranking. Quem deu mais aula sai na frente e escolhe primeiro. Cada um na sua disciplina, claro. Diferente do eventual que podem dar aula de qualquer coisa, afinal eles são eventuais. Os professores que conseguem cargas horárias não. Esses não podem dar qualquer aula, apenas aquelas nas quais são habilitados. A não ser que não sobre carga horária pra eles que então podem dar aulas como eventual e assim podem dar aula de qualquer coisa bastando que o professor titular falte.
Mas essa coisa de ranking não é algo assim tão injusto. E digo isso não pelo fato de não levar em conta critérios de qualificação, produtividade e eficiência do professorado além da seriedade, é claro; mas esta, em se tratando de ensino, não pode ser computada.
Digo que essa coisa de ranking tem um lado justo porque contém uma série de critérios justos e ultrapassados de medir a funcionalidade do funcionário, igualando-os em termos de oportunidades. São critérios de desempate como critérios de idade, quantidade de filhos e coisas assim.
Uma coisa nisso tudo é certa e justa: dada a lógica do sistema, quem nunca deu aulas na rede estadual, e está tentando dar aulas pela primeira vez, começa com zero pontos, claro. Fim do ranking. Esses sim, ficam com a sobra da sobra da sobra. Porque são os que escolherão aquilo que ninguém escolheu.
É esse o caso da maioria dos professores eventuais.
É nessa onda que eu tentei entrar na rede estadual de ensino pela primeira vez. Mas não chovia. Na verdade chovia sim. Eu bem me lembro. Mas a chuva era menor. E havia abrigo para os professores. Que não era um aconchegante abrigo, mas tinha um teto, é verdade.
Dessa vez passada eu não fiquei largado na rua.
Foi lá na diretoria de ensino, onde levei os documentos. Peguei fila, claro. Fiz o cadastro. Depois esperei pelo ranqueamento. De milhares eu era o penúltimo - lembrem-se: se eu estava iniciando é porque nunca havia dado aulas na rede pública estadual. Ao menos não oficialmente. E como não tenho filhos e sou jovem... zero pontos; e fim. A moça que ficou por último também tinha zero pontos assim como muitos outros provavelmente ela não tinha filhos assim como eu e provavelmente fosse alguns poucos meses mais jovem que eu, que era o penúltimo. É que os mais velhos têm preferência, justo.
Então, de posse de nossa colocação na lista, devemos ficar de olho nas datas de atribuição de aulas.
Todos esses não concursados vão escolher suas aulas conforme seus pontos e sua colocação nessa lista. E isso não é feito com agendamento de hora numa sala confortável com uma enorme poltrona. Não. Determina-se que determinadas matérias serão distribuídas em determinadas escolas. Então, os professores daquelas matérias em questão vão, em massa, até a dita escola para a qual foram alocados que está vazia porque está de férias. Geralmente cada disciplina é encaminhada para ser atribuída em uma escola específica. Então o professor de Geografia se dirige para a escola onde será feita a distribuição das cargas horárias de Geografia as que sobraram.
Cada um na sua escola, os professores entram no pátio e aguardam. Geralmente não há ninguém para recebê-los. Eles ficam no pátio mesmo. No pátio tem uma lista com a colocação dos candidatos. Quem está em primeiro escolherá primeiro. E aguardam... Até que chegue alguém com uma pasta. E chega atrasado, quase sempre. Na pasta tem uma relação das aulas e escolas que sobraram. E iniciam-se as escolhas. Como são muitos os professores e só dá pra atender uns 50 por vez/dia então os outros tem que ficar indo e vindo durante a semana inteira, período em que dura esta primeira etapa da atribuição. Algo natural já que professores são desempregados em potencial e, portanto, podem ficar indo e vindo durante a semana inteira.
Nessa ocasião, como o meu número ultrapassava o dos duzentos não fui escolhido.
Não fui escolhido, mas havia ainda uma segunda atribuição, as sobras das sobras. Dessa vez juntam-se todos os professores de todas as disciplinas que não conseguiram aulas. O mesmo processo, mas numa outra escola. Escolhe-se uma escola e coloca-se todo mundo lá os professores no pátio. Uma zona. Porque professor é igual criança: bobo. E é que nem aluno que num fica quieto. É assim professor. E parece boi ali no curral reunido. Mas boi muge. Professor também, às vezes. Embora zurre mais. A diferença entre o gado e o professor é o tratamento: bois tem água e tem comida, à disposição. E tem direção.
Então sobe uma pessoa em cima de uma mesa. Essa pessoa, que nem parece uma pessoa, mas um espantalho, grita. Divide aquelas centenas de professores ou gado e manda cada um para uma sala, onde será feita, conforme a disciplina, uma nova atribuição. Como nesse dia eu também não consegui aulas, volto semanalmente à diretoria de ensino, que publica num mural as sobras das sobras das sobras. É muita sobra.
E pouca organização.
Nesse mural sempre tem uma escola que precisa de eventual. Têm várias, na verdade. Algumas precisam de alguém que ensine religião, disciplina que ainda existe no Estado laico, ou que dê aulas de matemática, rara profissão.
Professor de línguas também sempre falta, mesmo depois de toda essa atribuição e tribulação.
Então você escolhe nesse painel uma escola que seja perto de sua casa pra não gastar com a condução e vai até lá, onde há uma nova fila com alguns professores que também não conseguiram nenhuma aulinha, e torce pra descolar alguma coisa, nem que seja aquela prometida vaga de eventual mesmo. Afinal, todo mundo tem que começar de algum lugar, não é? E os começos são sempre duros...
Se você consegue essa maravilhosa vaga de tão nobre profissão, e eu consegui, então uma secretária, geralmente muito atrapalhada e de pouco humor, lhe dará todas as instruções para a obtenção dos laudos e exames médicos.
É nessa fase que estou pela segunda vez. Sob a chuva.
Da primeira, com muito trabalho, consegui os laudos. E digo "com muito trabalho" porque os laudos são obtidos em repartições e hospitais públicos, o que dificulta muito a vida da gente. Porque o funcionário público quase nunca quer atender o público. Da primeira vez, um ano atrás, consegui os exames, mas desisti quando voltei à escola. Quando percebi que a secretária sequer conseguia me atender, e que havia outro eventual com quem eu deveria competir por aulas. Achei melhor desistir. Porque eventual só ganha se der aulas. Ele mora na desgraça do sistema. Na ausência dos outros é que vive o eventual. Ele vive aonde os outros não vivem. E ele torce para que seus colegas faltem para, assim, poder ganhar algum dinheirinho; e experiência e pontuação, para da próxima vez conseguir escolher algo melhor.
Dessa vez, como eventual, achei que o desgaste físico e financeiro não valeria a pena para participar de uma farsa como essa que é a farsa da educação pública da rede estadual de ensino do Estado de São Paulo.
Nesse momento, desisti de me tornar professor.
Mas como passei um ano sem arrumar emprego, e houve a abertura de um edital para um concurso para professor, resolvi fazê-lo. Pensei que ser professor contratado oficialmente seria diferente. Mas, como eu disse, professor não é opção, é remédio. Remédio para uma vida sem sucesso. E que deveria ser remédio pra esse povo sem nação e sem educação.
Fracassado e resignado aceitei o desafio que se seguiria. Fiz o concurso e passei. Sou um desses 20 mil aprovados nesse último concurso. E foram muitos os colegas professores que não passaram. Mesmo dentre esses 120 mil, muitos prestam e não passam. Há anos. Deve ser pelo motivo de haver professores de português que não sabem ler direito e professores de matemática que não entendem regra de três. Mesmo assim, eles continuarão engrossando o caldo da rede estadual de ensino. Agora, eu também engrossarei este caldeirão, mas numa melhor situação: de sobra que escolheu primeiro. De sobra menos sobra.
A rede estadual de ensino é a sobra do que sobrou da vida.
Nesse meio tempo, em que estou na fila, refletindo sobre tudo isso, eis que os funcionários públicos começam a se recusar a atender os futuros professores que chegam. São três horas da tarde, e os funcionários, tapando a entrada do prédio onde agendamos a perícia médica, nos impedem de entrar. Eu, que estou na parte da fila que está do lado de fora do prédio, indignado, ligo para a polícia. Recomendo que outros façam o mesmo. E eles fazem. Logo chega a polícia com 5 viaturas e lanternas acessas. Mas eles não vêm para garantir o direito dos futuros professores de serem atendidos pelos funcionários públicos. A polícia vem pra proteger o prédio, porque afinal, além de vagabundo que pode passar o dia inteiro na fila professor é vândalo. É engraçado porque no fundo todos ali são funcionários públicos. A Polícia também, claro. Os professores quase. Estão tentando. E todos falam: a culpa não é minha! O problema não é meu! Até os policiais falam eles que vão para lá sem saber direito o que está acontecendo. Essa fala, os professores também, logo falarão.
O impasse do atendimento continua. Surge então um vereador. Não sei o que ele diz aos funcionários que estão postos na frente da repartição ou que argumentos ele usa. E ele deve ter precisado dizer alto, já que a fila inteira gritava senha! senha! senha!, porque depois de três horas na fila o mínimo que se espera é uma garantia de que se será atendido no dia seguinte.
O atendente que não dava ouvidos as ponderações racionais dos professores, no entanto, se sensibiliza pelo apelo do vereador.
O problema do atendimento esta resolvido.
E ficamos contentes por existirem autoridades preocupadas com o bem-estar dos seus eleitores. Mas por outro, ficamos tristes porque o funcionário público só entende a voz da autoridade e não a consideração pelo ser humano, seja em qual condição e situação for.
Consigo marcar a minha consulta para a retirada do laudo médico. Ficou agendada para umas duas semanas posteriores a esta data em que me encontro na fila.
A chuva deu uma aliviada. Eu corro para pegar o trem o voltar para minha cidade, posto que eu, também, não sou dali. A chuva aperta, chego à estação todo molhado. Mas vou feliz e amoroso afinal, estou de exame médico marcado; e sou um quase professor da rede estadual de ensino do estado de São Paulo, estado que escolhi para continuar minha vida e existência. Sou um quase funcionário público.
Colegas! Abram os braços. Estou chegando.
Assim é o meu país.


04/01/2006
Flavio Tonnetti

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