O sociólogo e historiador francês Laurent Mucchielli é um importante estudioso da violência em seu país. Integra o prestigioso Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e o CESDIP (centro de pesquisas sociológicas sobre direito e instituições penais). No pequeno artigo que escreveu para a revista "Hommes et Migrations" (nº 1.241, de 2003) intitulado "Délinquance et Immigration: le sociologue face au sens commun", ele já rebatia algumas interpretações que, agora, voltam a ser expostas a propósito da revolta da juventude suburbana no país. Eis o que depreendo de sua argumentação, adaptando-a ao fenômeno de hoje:
- O que se diz e o que se quer dizer
Quando parte dos políticos franceses associa delinqüentes a imigrantes, comete uma esperta impropriedade. A absoluta maioria dos jovens que têm incendiado carros pelas periferias francesas é nascida na França; são cidadãos e eleitores franceses. Seus pais e avós é que são imigrantes. Essa operação retórica de quem busca votos _que caminham mais e mais para a direita isolacionista no país_ esconde esse fato, trata todos como "imigrantes" e reforça a idéia de que são cidadãos de segunda classe.
- Haveria uma razão "cultural" na origem da delinqüência?
Estudos não estimulam a tese de que jovens de ascendência africana, especialmente os que vêm do Magreb (Argélia, Tunísia, Líbia, Marrocos, Mauritânia e Saara Ocidental) estejam sempre sobre-representados nas estatísticas da criminalidade, como se o padrão cultural que trazem da origem os levasse a isso. Em Amiens (norte do país) não há comportamento desviante nesse quesito dos jovens de ascendência africana em relação aos jovens de famílias pobres em geral. Já em Mantois, um dos lugares mais depauperados e degradados da periferia parisiense, nota-se que os de origem africana delinqüem mais que a média. Para o país em geral, quando se nota mais criminalidade nos jovens de origem africana, nota-se também que, nesses casos, eles moram nas periferias, têm menos supervisão paterna; seus pais têm nível de renda e escolarização mais baixo; e que tais jovens têm taxa mais alta de abstenção escolar. Donde a única conclusão possível, que exclui o determinismo cultural, é que só analisando o contexto de cada localidade "problemática" é que se chega a explicações melhores. Esse contexto é o das banlieues, as periferias superpopulosas, "onde a população estrangeira e de origem estrangeira é amplamente majoritária, onde a taxa de desemprego é particularmente elevada, onde a proximidade com o centro das grandes cidades acentua ainda mais a frustração, onde o estigma dos lugares que essas populações habitam reforça o seu próprio estigma e contribui fortemente para a discriminação no contexto das instituições e do local de trabalho".
- A dialética da socialização
A juventude filha de pais estrangeiros que migraram para a França está historicamente exposta duas forças básicas que atuam no processo de formação de sua identidade: "De um lado, uma forte pressão para conformar-se à opinião do país que acolheu seus pais, no sentido de rejeitar precocemente a cultura de origem de seus pais, tida como inferior e arcaica; (...) de outra parte, um movimento de contestação que visa a rejeitar o estigma e a fazer respeitar no espaço público a sua especificidade". E de que depende, especificamente, o maior ou o menor sucesso das estratégias de formação da identidade dessas populações? Da integração socioeconômica, especialmente na fase crucial da escolarização; dos determinantes familiares, basicamente a atitude dos pais perante a escola e os valores do país que os acolhe; e dos elementos do contexto imediato de vida, em particular "as experiências mais ou menos precoces e intensas de racismo e das influências exercidas pelos grupos de amigos."
- O discurso da vitimização
As grandes vagas de imigração africana para a França, a partir dos anos 1950, décadas depois despejaram um contingente de filhos de imigrantes nas periferias das grandes cidades, mas lhes retiraram a perspectiva de ascensão social. As "trente glorieuses", as três décadas de prosperidade européia após o fim da Segunda Guerra deram lugar à estagnação econômica a partir de meados da década de 1970. Mas os jovens estavam lá, baby-boomers da periferia. Nesse contexto, surgiu um discurso da "vitimização coletiva" nessa massa desesperançada, um sentimento que, por vezes "se reduz a uma teoria do complô: o complô de uma sociedade injusta e racista".
- Ódio da polícia como repúdio às instituições
A partir da década de 1990, a delinqüência juvenil na França começa a crescer nos seguintes quesitos: furtos, consumo e tráfico de drogas, destruição de bens públicos e violência contra agentes da força pública. A revolta dos subúrbios tem que ver com a dimensão antiinstitucional, notada nos dois últimos itens. E tem na polícia o seu principal alvo. "Várias pesquisas indicam claramente que as relações entre jovens de origem africana e a polícia nesses bairros ditos muitos sensíveis funcionam com os ciclos de provocação, respostas, represálias etc., de parte a parte". Quando as revoltas eclodem, elas se batem (e aqui Mucchielli cita seus colegas C. Bachman e N. Le Guennec) "contra um inimigo sem rosto; contra os que reprimem [esses jovens] cotidianamente, os condenando à inexistência social e lhes reservando um futuro em forma de impasse."
- Parte da história global das periferias
A revolta francesa não tem identidade cultural no Oriente nem no islamismo. O fato de seus protagonistas serem oriundos da África ou serem muçulmanos não é determinante do fenômeno. É tão incidental quanto o fato de as periferias de Los Angeles serem abarrotadas de latinos, ou as de Nova Orleans, de oriundos da África negra escravizados na América, ou as paulistanas, de migrantes nordestinos. É apenas parte da crônica universal das grandes aglomerações urbanas contemporâneas, das periferias que se formam ao seu redor no intuito, ao final vão, de partilhar dos frutos de sua pujança econômica. É frustração acumulada. "Os determinantes da delinqüência juvenil dos estrangeiros residentes na França e dos franceses nascidos de pais estrangeiros derivam de problemas familiares e escolares que não são próprios a essa população, mas parecem ao contrário comparáveis aos problemas postos no passado pelas populações francesas oriundas do êxodo rural ou por outras populações trabalhadoras estrangeiras em períodos de crise econômica. Os mecanismos sociais globais propostos neste artigo se encontram igualmente um boa parte de outros países ocidentais."
Vinicius Mota, 32, é editor do caderno Mundo da Folha. Foi também editor de Opinião (coordenador dos editoriais) e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.
- O que se diz e o que se quer dizer
Quando parte dos políticos franceses associa delinqüentes a imigrantes, comete uma esperta impropriedade. A absoluta maioria dos jovens que têm incendiado carros pelas periferias francesas é nascida na França; são cidadãos e eleitores franceses. Seus pais e avós é que são imigrantes. Essa operação retórica de quem busca votos _que caminham mais e mais para a direita isolacionista no país_ esconde esse fato, trata todos como "imigrantes" e reforça a idéia de que são cidadãos de segunda classe.
- Haveria uma razão "cultural" na origem da delinqüência?
Estudos não estimulam a tese de que jovens de ascendência africana, especialmente os que vêm do Magreb (Argélia, Tunísia, Líbia, Marrocos, Mauritânia e Saara Ocidental) estejam sempre sobre-representados nas estatísticas da criminalidade, como se o padrão cultural que trazem da origem os levasse a isso. Em Amiens (norte do país) não há comportamento desviante nesse quesito dos jovens de ascendência africana em relação aos jovens de famílias pobres em geral. Já em Mantois, um dos lugares mais depauperados e degradados da periferia parisiense, nota-se que os de origem africana delinqüem mais que a média. Para o país em geral, quando se nota mais criminalidade nos jovens de origem africana, nota-se também que, nesses casos, eles moram nas periferias, têm menos supervisão paterna; seus pais têm nível de renda e escolarização mais baixo; e que tais jovens têm taxa mais alta de abstenção escolar. Donde a única conclusão possível, que exclui o determinismo cultural, é que só analisando o contexto de cada localidade "problemática" é que se chega a explicações melhores. Esse contexto é o das banlieues, as periferias superpopulosas, "onde a população estrangeira e de origem estrangeira é amplamente majoritária, onde a taxa de desemprego é particularmente elevada, onde a proximidade com o centro das grandes cidades acentua ainda mais a frustração, onde o estigma dos lugares que essas populações habitam reforça o seu próprio estigma e contribui fortemente para a discriminação no contexto das instituições e do local de trabalho".
- A dialética da socialização
A juventude filha de pais estrangeiros que migraram para a França está historicamente exposta duas forças básicas que atuam no processo de formação de sua identidade: "De um lado, uma forte pressão para conformar-se à opinião do país que acolheu seus pais, no sentido de rejeitar precocemente a cultura de origem de seus pais, tida como inferior e arcaica; (...) de outra parte, um movimento de contestação que visa a rejeitar o estigma e a fazer respeitar no espaço público a sua especificidade". E de que depende, especificamente, o maior ou o menor sucesso das estratégias de formação da identidade dessas populações? Da integração socioeconômica, especialmente na fase crucial da escolarização; dos determinantes familiares, basicamente a atitude dos pais perante a escola e os valores do país que os acolhe; e dos elementos do contexto imediato de vida, em particular "as experiências mais ou menos precoces e intensas de racismo e das influências exercidas pelos grupos de amigos."
- O discurso da vitimização
As grandes vagas de imigração africana para a França, a partir dos anos 1950, décadas depois despejaram um contingente de filhos de imigrantes nas periferias das grandes cidades, mas lhes retiraram a perspectiva de ascensão social. As "trente glorieuses", as três décadas de prosperidade européia após o fim da Segunda Guerra deram lugar à estagnação econômica a partir de meados da década de 1970. Mas os jovens estavam lá, baby-boomers da periferia. Nesse contexto, surgiu um discurso da "vitimização coletiva" nessa massa desesperançada, um sentimento que, por vezes "se reduz a uma teoria do complô: o complô de uma sociedade injusta e racista".
- Ódio da polícia como repúdio às instituições
A partir da década de 1990, a delinqüência juvenil na França começa a crescer nos seguintes quesitos: furtos, consumo e tráfico de drogas, destruição de bens públicos e violência contra agentes da força pública. A revolta dos subúrbios tem que ver com a dimensão antiinstitucional, notada nos dois últimos itens. E tem na polícia o seu principal alvo. "Várias pesquisas indicam claramente que as relações entre jovens de origem africana e a polícia nesses bairros ditos muitos sensíveis funcionam com os ciclos de provocação, respostas, represálias etc., de parte a parte". Quando as revoltas eclodem, elas se batem (e aqui Mucchielli cita seus colegas C. Bachman e N. Le Guennec) "contra um inimigo sem rosto; contra os que reprimem [esses jovens] cotidianamente, os condenando à inexistência social e lhes reservando um futuro em forma de impasse."
- Parte da história global das periferias
A revolta francesa não tem identidade cultural no Oriente nem no islamismo. O fato de seus protagonistas serem oriundos da África ou serem muçulmanos não é determinante do fenômeno. É tão incidental quanto o fato de as periferias de Los Angeles serem abarrotadas de latinos, ou as de Nova Orleans, de oriundos da África negra escravizados na América, ou as paulistanas, de migrantes nordestinos. É apenas parte da crônica universal das grandes aglomerações urbanas contemporâneas, das periferias que se formam ao seu redor no intuito, ao final vão, de partilhar dos frutos de sua pujança econômica. É frustração acumulada. "Os determinantes da delinqüência juvenil dos estrangeiros residentes na França e dos franceses nascidos de pais estrangeiros derivam de problemas familiares e escolares que não são próprios a essa população, mas parecem ao contrário comparáveis aos problemas postos no passado pelas populações francesas oriundas do êxodo rural ou por outras populações trabalhadoras estrangeiras em períodos de crise econômica. Os mecanismos sociais globais propostos neste artigo se encontram igualmente um boa parte de outros países ocidentais."
Vinicius Mota, 32, é editor do caderno Mundo da Folha. Foi também editor de Opinião (coordenador dos editoriais) e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.
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