Véronique Mortaigne
Crítica do Le Monde
Já vai longe o tempo em que Madonna cantava canções, baladas pop. "Confessions on a Dance Floor" acaba de uma vez por todas com todos aqueles ornamentos de gosto duvidoso. O 10º álbum de estúdio da star nova-iorquina é um fluxo rítmico, cujo principal objetivo pretendido é agitar os corpos. Ele é construído como se Madonna, aos 47 anos, quisesse começar pelo fim, pelos remixes --a passagem pós-natalina obrigatória dos títulos de sucesso para o universo dos computadores e da eletrônica dançante--, realizados por DJ hábeis, para os notívagos.
Chang W. Lee/The New York Times
Madonna desafia convenções ao beijar Britney Spears em premiação em 2003
Este disco conduzido num compasso infernal chega dois anos e meio depois de "American Life", no qual a cantora aparecia como uma revolucionária, trajando um boné guevarista, numa encenação criada por dois artistas gráficos parisienses, M & M.
Nele, a star nova-iorquina, recentemente convertida à cabala, transmitia a sua opinião enviesada da América belicosa e achincalhava o "star system". George W. Bush acabava de ordenar a invasão do Iraque e o clipe da música "American Life" mostrava uma espécie de decadência guerreira sem fé nem lei, enquanto aparecia o sósia de um Bush débil brincando de arremessar granadas.
No auge de um movimento de obsessão por segurança, o pequeno filme de Jonas Akerlund havia sido criticado com violência pela América profunda. A própria Madonna acabou retirando a peça promocional das telinhas de televisão.
Assim, "Confessions on a Dance Floor" tomou o trem expresso do telefone celular (na França, por meio de um acordo de exclusividade fortemente criticado entre a sua gravadora, a Warner, e France Télécom).
Ele incorporou com tudo a difusão online (amparado por dispositivos de segurança de última geração, no site vh1.com). Ele tem por objetivo também de levar ao conhecimento de todos, os valores de duas gerações de "clubbers" hedonistas (1970-1980 para a disco e a pós-disco music, 1990-2000 para a house music). Pela primeira vez, Madonna aborda de frente a revolução eletrônica.
O contexto geográfico-político mudou, muito depressa --um tique-taque de despertador e toques de sinos e campainhas decoram "Hung Up", o primeiro título deste novo álbum. Isso não acontece apenas porque a América de George W. Bush vai se atolando na Mesopotâmia, um problema com o qual Madonna, que vive daqui para frente na Inglaterra, parece não se preocupar nem um pouco.
Mas, cuidado com as aparências: aqui está ela, balançando seu desprezo pelos "néo-cons" (neo-conservadores) em meio a citações de "I Love New York", o hino à liberdade da sua cidade natal.
Se "Confessions..." marca a passagem dos tempos, é porque a dominação da economia parece ter tomado conta definitivamente e na velocidade de um relâmpago da indústria do disco. Para tentar evitar um marasmo previsível (as vendas de "American Life" haviam decepcionado, com "apenas" 5 milhões de discos vendidos em todo o mundo), Madonna ousou dar um grande salto no fosso do universo digital.
"Confessions on a Dance Floor", ou seja, "confissões na pista de dança", foi lançado mundialmente nesta segunda-feira (14/11). O álbum encampa todas as atitudes da disco music, com o seu culto do corpo e da festa. A própria Madonna apresenta-se com um corte de cabelos anos 70, trajando um vestido laminado prateado, no estilo das bolas espelhadas que giram acima da pista de dança, com elementos cor-de-rosa brilhantes e azuis relacionados, nos limites do kitsch.
A concepção gráfica que acompanha cada um dos álbuns de Madonna é assinada desta vez por um ítalo-americano, o publicitário Giovanni Bianco, um cúmplice de longa data de Louise Ciccone. Isso para o capítulo da embalagem.
O disco revela ser astucioso e cultivado, eficiente, contemporâneo. Nele, não se vêem apenas as referências cúmplices a um passado feliz. É verdade que na abertura, "Hung Up" reproduz a amostragem recorrente de uma frase musical emprestada do grupo sueco Abba --"Gimme, Gimme, Gimme (A Man after Midnight)".
Outras citações: "Sorry" inclui um trecho de "Can You Feel It", dos Jackson Five (1981), enquanto "Future Love" "faz cola" com o queridinho dos clubbers, Giorgio Moroder, o produtor de Donna Summer ("I feel Love").
Mas se ele se limitasse a essas referências, "Confessions on a Dance Floor" não seria o formidável exercício de reflexão musical que ele revela ser. Isso porque a tecnologia musical evoluiu consideravelmente nos últimos vinte anos, o que é comprovado por inúmeras outras citações subliminais, pelas amostragens de tirar o fôlego (a voz de Yitzhak Sinwani, interpretando "Im Nin Alu", um canto tradicional iemenita, inserido em "Isaac", um título cujo tom místico otimista valeu a Madonna comentários desabonadores por parte dos rabinos conservadores).
O cardápio das citações amplia-se rapidamente: nele podem ser encontradas também referências à própria Madonna, do período "Ray of Light" (1998), ao Police ou ao Daft Punk, com a obsessiva linha de infra-baixos característica desta dupla francesa ("Get Together"), sem contar os ancestrais alemães do Kraftwerk.
Acima de tudo, "Confessions..." volta a explorar o eletro pop de Depeche Mode, New Order ou Human League --todos os quais são grupos que os jovens DJs de Berlim, Londres ou Paris voltaram a pôr em evidência por gosto pessoal. De tudo isso, pode-se concluir que a cantora possui um talento fenomenal para se situar dentro do seu tempo.
O artesão dessas proezas que foram agenciadas em ritmo de fluxo contínuo chama-se Stuart Price, o baixista do grupo durante as duas turnês mais recentes de Madonna, mas que é também um DJ inteligente, conhecido pelos nomes de Rythmes Digitales ou de Jacques Lu Cont.
Nem por isso, o DJ e produtor franco-afegão Mirwais (ex-Taxi Girl) foi riscado do mapa. Ao contrário, aquele que impôs a Madonna uma espécie de minimalismo eletrônico que prevaleceu nos álbuns "Music" (2000) e "American Life" (2003) imprime aqui e lá a essas confissões diversas sonoridades orientais, algumas pérolas secas de sons eletrônicos, acondicionadas num escrinho de cordas e de coros. Mas Stuart Price ampliou consideravelmente o registro da discoteca.
No fundo, Madonna abasteceu na sua base de dados pessoal: reflexão sobre a celebridade, sobre a liberdade fundamental (seja você mesmo), sobre a família (Em "Push", ela faz uma declaração ao seu marido, Guy Ritchie) e sobre a esperança de aceder um dia às portas do paraíso; uma meta rumo à qual, quem sabe, o fato de dançar loucamente pode sem dúvida conduzi-la.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
Chang W. Lee/The New York Times
Madonna desafia convenções ao beijar Britney Spears em premiação em 2003
Este disco conduzido num compasso infernal chega dois anos e meio depois de "American Life", no qual a cantora aparecia como uma revolucionária, trajando um boné guevarista, numa encenação criada por dois artistas gráficos parisienses, M & M.
Nele, a star nova-iorquina, recentemente convertida à cabala, transmitia a sua opinião enviesada da América belicosa e achincalhava o "star system". George W. Bush acabava de ordenar a invasão do Iraque e o clipe da música "American Life" mostrava uma espécie de decadência guerreira sem fé nem lei, enquanto aparecia o sósia de um Bush débil brincando de arremessar granadas.
No auge de um movimento de obsessão por segurança, o pequeno filme de Jonas Akerlund havia sido criticado com violência pela América profunda. A própria Madonna acabou retirando a peça promocional das telinhas de televisão.
Assim, "Confessions on a Dance Floor" tomou o trem expresso do telefone celular (na França, por meio de um acordo de exclusividade fortemente criticado entre a sua gravadora, a Warner, e France Télécom).
Ele incorporou com tudo a difusão online (amparado por dispositivos de segurança de última geração, no site vh1.com). Ele tem por objetivo também de levar ao conhecimento de todos, os valores de duas gerações de "clubbers" hedonistas (1970-1980 para a disco e a pós-disco music, 1990-2000 para a house music). Pela primeira vez, Madonna aborda de frente a revolução eletrônica.
O contexto geográfico-político mudou, muito depressa --um tique-taque de despertador e toques de sinos e campainhas decoram "Hung Up", o primeiro título deste novo álbum. Isso não acontece apenas porque a América de George W. Bush vai se atolando na Mesopotâmia, um problema com o qual Madonna, que vive daqui para frente na Inglaterra, parece não se preocupar nem um pouco.
Mas, cuidado com as aparências: aqui está ela, balançando seu desprezo pelos "néo-cons" (neo-conservadores) em meio a citações de "I Love New York", o hino à liberdade da sua cidade natal.
Se "Confessions..." marca a passagem dos tempos, é porque a dominação da economia parece ter tomado conta definitivamente e na velocidade de um relâmpago da indústria do disco. Para tentar evitar um marasmo previsível (as vendas de "American Life" haviam decepcionado, com "apenas" 5 milhões de discos vendidos em todo o mundo), Madonna ousou dar um grande salto no fosso do universo digital.
"Confessions on a Dance Floor", ou seja, "confissões na pista de dança", foi lançado mundialmente nesta segunda-feira (14/11). O álbum encampa todas as atitudes da disco music, com o seu culto do corpo e da festa. A própria Madonna apresenta-se com um corte de cabelos anos 70, trajando um vestido laminado prateado, no estilo das bolas espelhadas que giram acima da pista de dança, com elementos cor-de-rosa brilhantes e azuis relacionados, nos limites do kitsch.
A concepção gráfica que acompanha cada um dos álbuns de Madonna é assinada desta vez por um ítalo-americano, o publicitário Giovanni Bianco, um cúmplice de longa data de Louise Ciccone. Isso para o capítulo da embalagem.
O disco revela ser astucioso e cultivado, eficiente, contemporâneo. Nele, não se vêem apenas as referências cúmplices a um passado feliz. É verdade que na abertura, "Hung Up" reproduz a amostragem recorrente de uma frase musical emprestada do grupo sueco Abba --"Gimme, Gimme, Gimme (A Man after Midnight)".
Outras citações: "Sorry" inclui um trecho de "Can You Feel It", dos Jackson Five (1981), enquanto "Future Love" "faz cola" com o queridinho dos clubbers, Giorgio Moroder, o produtor de Donna Summer ("I feel Love").
Mas se ele se limitasse a essas referências, "Confessions on a Dance Floor" não seria o formidável exercício de reflexão musical que ele revela ser. Isso porque a tecnologia musical evoluiu consideravelmente nos últimos vinte anos, o que é comprovado por inúmeras outras citações subliminais, pelas amostragens de tirar o fôlego (a voz de Yitzhak Sinwani, interpretando "Im Nin Alu", um canto tradicional iemenita, inserido em "Isaac", um título cujo tom místico otimista valeu a Madonna comentários desabonadores por parte dos rabinos conservadores).
O cardápio das citações amplia-se rapidamente: nele podem ser encontradas também referências à própria Madonna, do período "Ray of Light" (1998), ao Police ou ao Daft Punk, com a obsessiva linha de infra-baixos característica desta dupla francesa ("Get Together"), sem contar os ancestrais alemães do Kraftwerk.
Acima de tudo, "Confessions..." volta a explorar o eletro pop de Depeche Mode, New Order ou Human League --todos os quais são grupos que os jovens DJs de Berlim, Londres ou Paris voltaram a pôr em evidência por gosto pessoal. De tudo isso, pode-se concluir que a cantora possui um talento fenomenal para se situar dentro do seu tempo.
O artesão dessas proezas que foram agenciadas em ritmo de fluxo contínuo chama-se Stuart Price, o baixista do grupo durante as duas turnês mais recentes de Madonna, mas que é também um DJ inteligente, conhecido pelos nomes de Rythmes Digitales ou de Jacques Lu Cont.
Nem por isso, o DJ e produtor franco-afegão Mirwais (ex-Taxi Girl) foi riscado do mapa. Ao contrário, aquele que impôs a Madonna uma espécie de minimalismo eletrônico que prevaleceu nos álbuns "Music" (2000) e "American Life" (2003) imprime aqui e lá a essas confissões diversas sonoridades orientais, algumas pérolas secas de sons eletrônicos, acondicionadas num escrinho de cordas e de coros. Mas Stuart Price ampliou consideravelmente o registro da discoteca.
No fundo, Madonna abasteceu na sua base de dados pessoal: reflexão sobre a celebridade, sobre a liberdade fundamental (seja você mesmo), sobre a família (Em "Push", ela faz uma declaração ao seu marido, Guy Ritchie) e sobre a esperança de aceder um dia às portas do paraíso; uma meta rumo à qual, quem sabe, o fato de dançar loucamente pode sem dúvida conduzi-la.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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