sexta-feira, novembro 11, 2005

Para Foucault, o poder é menos uma propriedade do que uma estratégia; não tem essência: é operatório.

Michel Foucault alcança notoriedade intelectual, na França e no exterior, com a publicação de As Palavras e as Coisas, em 1966. O horizonte teórico é então fortemente marcado pelo estruturalismo, pela psicanálise e pelo marxismo, destacando-se Lévi-Strauss, Lacan, Althusser, Barthes. Por outro lado, o pensamento e a militância política franceses têm em Sartre seu mais importante paradigma. A proximidade dele com o marxismo determina as categorias – dialética, dominação, repressão, ideologia – com as quais, naquele momento, se constrói a teoria e se fundamenta a prática política. É em face deste quadro teórico e no contexto do engajamento político que Foucault se situará e se afastará.

Em Foucault, o engajamento e a prática política não têm estatuto próprio, à parte da teoria. Talvez Deleuze tenha melhor percebido a forma peculiar de implicação entre teoria e prática para Foucault. Dialogando com ele, Deleuze afirma que nenhum deles concebe a prática como aplicação da teoria, nem a teoria como um pensamento inspirado pela prática. Suas relações seriam parciais e fragmentárias: “A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria é um revezamento de uma prática a outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a prática para atravessar o muro”.

O engajamento político em Foucault só poderá ser compreendido se cotejado com a elaboração e os deslocamentos de seu pensamento. Já os primeiros, segundo distintos enfoques de uma “história arqueológica”, delineiam uma crítica à filosofia do sujeito, filosofia na qual o homem aparece como sede da verdade. Nos escritos da “arqueologia”, ao descrever os solos históricos que determinam o aparecimento e organização dos saberes de uma, Foucault distancia-se tanto de uma concepção da verdade como essência quanto da categoria de um sujeito transcendental. A figura do homem que conhecemos é recente. Resulta de uma mudança nas disposições do saber, que cabe à arqueologia de nosso pensamento revelar.

Assim, o engajamento político só fará sentido se não pretender indicar “a” verdade. Depende de reconhecer que a verdade não se situa fora do poder. Para Foucault, como para Nietzsche, a verdade é deste mundo, sendo produzida a partir de múltiplos constrangimentos. O papel do intelectual não será expressar a “consciência de todos”, colocar-se à frente para dizer a muda verdade de todos. O intelectual que atua no domínio do “universal” e do “exemplar” é substituído pela figura do intelectual que necessariamente ocupa uma posição específica. Sua atuação é local e regional. Seu engajamento, como qualquer engajamento político, apenas terá significado se não comportar uma pretensão totalizadora e puder atuar localmente no regime de “verdade/poder” em que estiver inserido.

Não há, portanto, engajamento político que prescinda de uma análise dos mecanismos de poder que atravessam a sociedade em que tal engajamento se dá. O engajamento político, em Foucault, deve ser considerado em seu “revezamento” com suas análises sobre o poder. O pensamento político de Michel Foucault se formula procedendo a deslocamentos. Um primeiro deslocamento afeta as concepções de poder que se apóiam exclusivamente num modelo jurídico ou num modelo institucional. Busca tanto apontar os limites de uma concepção “ontológica” do poder quanto deslocar o foco das análises para as diversas modalidades de seu exercício. O poder é menos uma propriedade do que uma estratégia. Não tem essência: é operatório. Não atua exclusivamente por violência ou repressão: é produtor de gestos, atitudes e saberes.

Se o poder não tem substância, deve-se descrever o funcionamento de seus mecanismos. Quanto à época moderna, esses mecanismos são descritos como mecanismos de normalização. Sua forma de atuação apóia-se nos procedimentos de distribuição espacial, fracionamento do tempo, controle das atividades e composição das forças individuais, cujo efeito é a padronização das ações dos indivíduos em suas diversas realizações. Estes procedimentos técnicos de normalização, que têm como ponto de inscrição privilegiado os “corpos” distribuídos nos espaços institucionais são denominados por Foucault de “disciplina”. Os mecanismos da disciplina atuam no nível capilar dos gestos individuais e seu funcionamento pode ser descrito segundo uma “microfísica”.

Se a novidade conceitual desta leitura do poder permitiu apontar os limites de diferentes abordagens da teoria e da sociologia políticas, ela também se viu confrontada com suas limitações. As críticas à concepção foucaultiana de poder disciplinar-normalizador questionavam sua deficiência em pôr em questão as formas gerais de dominação, como a constituída pelo capital. De que modo a percepção dos mecanismos das relações de forças infinitesimais permitiria considerar o problema da resistência? O engajamento político está restrito à ação pulverizada de indivíduos isolados ou pode também vir a ter sentido orgânico e coletivo?

Além da resposta mais imediata que afirma que “onde há poder, há resistência”, a inquietação que motiva estas críticas deverá ser cotejada com um segundo deslocamento ocorrido no interior da própria “analítica do poder” elaborada por Foucault. A partir do ano de 1976, com a publicação de A Vontade de Saber e com o curso “Em defesa da sociedade”, proferido no Collège de France, as análises sobre os mecanismos da normalização disciplinar serão integradas no interior de uma rede de inteligibilidade mais ampla.

Estudando o biopoder, Foucault direciona sua abordagem para os dispositivos de normalização considerados enquanto “mecanismos de regulação” da vida. Nos procedimentos da biopolítica, não se trata apenas de distribuir, vigiar e adestrar os indivíduos dentro de espaços determinados, mas de dar conta dos fenômenos amplos da vida biológica. Trata-se de atuar sobre os fenômenos naturais que se manifestam numa determinada população. Este é o domínio constituído pelo que Foucault chamará de “arte de governar”, entendida como a racionalidade política que determina a forma de gestão das condutas dos indivíduos de uma dada sociedade.

Na medida em que esta abordagem possibilita desfibrar uma determinada racionalidade política, identificar sua gênese histórica e descrever seu funcionamento, também deverá abrir espaço para uma reflexão sobre as “contra-condutas” possíveis. No reverso das análises das governamentalidades políticas se contém, de maneira indissociável, uma interrogação sobre as “crises de governamentalidade.

Nesses trabalhos do final dos anos 70 e início dos anos 80, há um forte apelo do pensamento político de Foucault às novas formas que podem assumir as modalidades de luta e de resistência. Elas terão a densidade de contracondutas individuais, mas também coletivas. Podem se configurar como as ações e os movimentos que se opõem às formas de condução das condutas no interior de uma racionalidade política.

Num manuscrito sobre a governamentalidade, após comentar que a análise das governamentalidades implica que “tudo é político”, Foucault afirmará: “Melhor dizer: nada é político, tudo é politizável, tudo pode tornar-se político”. O engajamento, na perspectiva de Foucault, deve ser situado em referência a esse vasto domínio. Se não tem pretensão totalizadora nem assume forma exemplar, ele encontra-se aberto, em sua forma e conteúdo, ao amplo domínio do politizável.

Por Márcio Alves da Fonseca


Márcio Alves da Fonseca é professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP, autor de Michel Foucault e o Direito (Max Limonad) e Michel Foucault e a Constituição do Sujeito (Educ).



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