Ernesto Ekaizer
Em Madri
Neste 20 de novembro, completam-se 60 anos do início do primeiro julgamento de Nuremberg contra os comandantes nazistas por crimes contra a humanidade e agressão. Os processos de Nuremberg certificaram o nascimento do direito internacional. Tanto seus avanços na década passada, com a atuação da justiça da Espanha e do Reino Unido no caso Pinochet, como sua essência (as convenções de Genebra e o convênio da ONU contra a tortura, entre outras) estão ameaçados pela guerra contra o terror promovida pelo governo Bush.
Às 10h da manhã de 20 de novembro de 1945 em Nuremberg, a sala de julgamento estremece. Vinte e um acusados fazem sua entrada. O ex-marechal Hermann Goering, vestindo o uniforme degradado da Luftwaffe, a força aérea do Reich, mostra algumas folhas de papel. Quer fazer uma declaração. O tribunal recusa o pedido. Tem a palavra Robert Jackson, o juiz americano que atua como promotor-chefe da acusação. Jackson, que chegou à cidade alemã alguns dias antes, vindo de Washington, falará durante toda a sessão.
Mas esta é sua mensagem essencial: "Não devemos esquecer que os parâmetros pelos quais julgamos hoje estes acusados são os parâmetros pelos quais a história nos julgará amanhã. Passar a estes acusados um cálice envenenado é pôr esse cálice em nossos próprios lábios. Devemos observar em nossa conduta tal imparcialidade e integridade que a posteridade possa elogiar este julgamento por ter cumprido as aspirações da humanidade de que se faça justiça".
Passaram-se 60 anos menos dois dias. Na sexta-feira, 18 de novembro de 2005, o advogado Reed Brody, da organização Human Rights Watch, está em Dacar, Senegal. Ali ele colaborou, esta semana, para a detenção do ex-ditador do Chade entre 1982 e 1990, Hissène Habré, cumprindo uma ordem internacional de detenção da justiça da Bélgica para sua extradição a esse país.
"Habré escapou da justiça durante 15 anos. Eu vi como o traziam preso em 15 de novembro para o juizado. Parece, e digo parece, porque nunca se tem certeza nessas questões da jurisdição universal, que a justiça finalmente caiu sobre ele", explicou Brody nesta sexta-feira (18) ao El País em entrevista telefônica de Dacar. "Conseguimos que o tribunal adiasse a decisão sobre a extradição para o próximo dia 22. Já é alguma coisa", acrescentou.
O ex-professor de direito internacional da Universidade Livre de Bruxelas Eric David perguntava-se em meados dos anos 80 se Nuremberg "é uma espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça de cada ditador e cada torturador, ou é um produto congelado e enterrado no refrigerador do aparato legislativo dos Estados". Sua resposta: "O direito de Nuremberg é um pouco as duas coisas". Segundo David, é um "direito adormecido". O "direito fantasma".
O fantasma e Bush
Esse fantasma é o que percorreu a Europa e a África e tomou forma nos tribunais dos anos 90 para Ruanda e a antiga Iugoslávia. Um processo que seria arrematado em 1998 com a criação do Tribunal Penal Internacional, cuja inexistência manteve a convenção da ONU contra o genocídio transformada em papel molhado durante longos anos.
No meio desse processo, em 1996, um vento forte e inesperado começou a soprar do sul da Europa. A justiça espanhola, liderada pelo juiz Baltasar Garzón, começou a investigar os crimes da ditadura de Jorge Rafael Videla, na Argentina, e de Augusto Pinochet, no Chile.
"A doutrina de Nuremberg inspirou nossa experiência no caso Pinochet", lembra o advogado Joan Garcés, que apresentou a denúncia contra o ex-ditador chileno em julho de 1996. "O conflito entre impulsos criminosos e humanistas continuará sendo permanente. Estamos vendo todos os dias exemplos dessa praga. A doutrina de Nuremberg continua sendo um dos instrumentos racionais para enfrentá-los".
A data chave é 16 de outubro de 1998, dia em que o juiz Garzón envia a Londres a ordem internacional de prisão contra Pinochet. Em 24 de março de 1999, a Câmara dos Lordes, para determinar se o ex-ditador podia ser submetido a um julgamento de extradição no Reino Unido, votou uma sentença capital: nem Pinochet nem qualquer ex-chefe de Estado poderá invocar imunidade diante do delito de tortura.
Essa sentença está pesando agora sobre os EUA. Scott Horton, presidente da comissão de direito internacional da Associação Americana de Advogados, acredita que seja assim.
"O cálice envenenado do juiz Jackson parece estar diante dos lábios do governo Bush, que retirou o país de seu respeito tradicional ao direito internacional e descumpre seus compromissos com as convenções de Genebra e a convenção contra a tortura. É o fantasma de Nuremberg. Por que motivo o presidente Bush e o vice-presidente Cheney ameaçam vetar a emenda de John McCain no Senado que proíbe a tortura? Querem garantir sua imunidade diante de um futuro processo penal", explicou Horton a este jornal.
Enquanto isso, Brody reflete no Senegal: "Sou um americano que anda pelo mundo tentando fazer que os tiranos e torturadores compareçam diante da justiça. Hoje a parte mais dura de meu trabalho é ser norte-americano. Por quê? Porque aos olhos dos demais represento a dupla vara de medir e o imperialismo judicial".
Carlos Castresana, o promotor que apresentou a primeira denúncia sobre os crimes da ditadura argentina e, mais tarde, contra os cometidos pela chilena, adverte da Califórnia, onde reside, sobre os perigos do furacão Bush contra o direito internacional.
"A doutrina de Nuremberg tem, depois do 11 de Setembro, no contexto da chamada guerra contra o terror, maior vigência que nunca: os crimes internacionais são semelhantes, embora a lei interna autorize abusos como os que ocorrem em Guantánamo, na Chechênia ou em Abu Ghraib".
E os assessores de Bush e Cheney, que planejaram a tortura sob a guerra contra o terror? O advogado britânico Philippe Sands diz a El País: "A convenção contra a tortura também criminaliza as pessoas que são cúmplices. Os EUA, por outro lado, condenaram Josef Altstotter e outros advogados que colaboraram para as leis nazistas e os decretos de Hitler por sua participação em um sistema organizado de crueldade. A sentença do tribunal diz que a adaga do assassino estava oculta sob a toga dos juristas".
Às 10h da manhã de 20 de novembro de 1945 em Nuremberg, a sala de julgamento estremece. Vinte e um acusados fazem sua entrada. O ex-marechal Hermann Goering, vestindo o uniforme degradado da Luftwaffe, a força aérea do Reich, mostra algumas folhas de papel. Quer fazer uma declaração. O tribunal recusa o pedido. Tem a palavra Robert Jackson, o juiz americano que atua como promotor-chefe da acusação. Jackson, que chegou à cidade alemã alguns dias antes, vindo de Washington, falará durante toda a sessão.
Mas esta é sua mensagem essencial: "Não devemos esquecer que os parâmetros pelos quais julgamos hoje estes acusados são os parâmetros pelos quais a história nos julgará amanhã. Passar a estes acusados um cálice envenenado é pôr esse cálice em nossos próprios lábios. Devemos observar em nossa conduta tal imparcialidade e integridade que a posteridade possa elogiar este julgamento por ter cumprido as aspirações da humanidade de que se faça justiça".
Passaram-se 60 anos menos dois dias. Na sexta-feira, 18 de novembro de 2005, o advogado Reed Brody, da organização Human Rights Watch, está em Dacar, Senegal. Ali ele colaborou, esta semana, para a detenção do ex-ditador do Chade entre 1982 e 1990, Hissène Habré, cumprindo uma ordem internacional de detenção da justiça da Bélgica para sua extradição a esse país.
"Habré escapou da justiça durante 15 anos. Eu vi como o traziam preso em 15 de novembro para o juizado. Parece, e digo parece, porque nunca se tem certeza nessas questões da jurisdição universal, que a justiça finalmente caiu sobre ele", explicou Brody nesta sexta-feira (18) ao El País em entrevista telefônica de Dacar. "Conseguimos que o tribunal adiasse a decisão sobre a extradição para o próximo dia 22. Já é alguma coisa", acrescentou.
O ex-professor de direito internacional da Universidade Livre de Bruxelas Eric David perguntava-se em meados dos anos 80 se Nuremberg "é uma espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça de cada ditador e cada torturador, ou é um produto congelado e enterrado no refrigerador do aparato legislativo dos Estados". Sua resposta: "O direito de Nuremberg é um pouco as duas coisas". Segundo David, é um "direito adormecido". O "direito fantasma".
O fantasma e Bush
Esse fantasma é o que percorreu a Europa e a África e tomou forma nos tribunais dos anos 90 para Ruanda e a antiga Iugoslávia. Um processo que seria arrematado em 1998 com a criação do Tribunal Penal Internacional, cuja inexistência manteve a convenção da ONU contra o genocídio transformada em papel molhado durante longos anos.
No meio desse processo, em 1996, um vento forte e inesperado começou a soprar do sul da Europa. A justiça espanhola, liderada pelo juiz Baltasar Garzón, começou a investigar os crimes da ditadura de Jorge Rafael Videla, na Argentina, e de Augusto Pinochet, no Chile.
"A doutrina de Nuremberg inspirou nossa experiência no caso Pinochet", lembra o advogado Joan Garcés, que apresentou a denúncia contra o ex-ditador chileno em julho de 1996. "O conflito entre impulsos criminosos e humanistas continuará sendo permanente. Estamos vendo todos os dias exemplos dessa praga. A doutrina de Nuremberg continua sendo um dos instrumentos racionais para enfrentá-los".
A data chave é 16 de outubro de 1998, dia em que o juiz Garzón envia a Londres a ordem internacional de prisão contra Pinochet. Em 24 de março de 1999, a Câmara dos Lordes, para determinar se o ex-ditador podia ser submetido a um julgamento de extradição no Reino Unido, votou uma sentença capital: nem Pinochet nem qualquer ex-chefe de Estado poderá invocar imunidade diante do delito de tortura.
Essa sentença está pesando agora sobre os EUA. Scott Horton, presidente da comissão de direito internacional da Associação Americana de Advogados, acredita que seja assim.
"O cálice envenenado do juiz Jackson parece estar diante dos lábios do governo Bush, que retirou o país de seu respeito tradicional ao direito internacional e descumpre seus compromissos com as convenções de Genebra e a convenção contra a tortura. É o fantasma de Nuremberg. Por que motivo o presidente Bush e o vice-presidente Cheney ameaçam vetar a emenda de John McCain no Senado que proíbe a tortura? Querem garantir sua imunidade diante de um futuro processo penal", explicou Horton a este jornal.
Enquanto isso, Brody reflete no Senegal: "Sou um americano que anda pelo mundo tentando fazer que os tiranos e torturadores compareçam diante da justiça. Hoje a parte mais dura de meu trabalho é ser norte-americano. Por quê? Porque aos olhos dos demais represento a dupla vara de medir e o imperialismo judicial".
Carlos Castresana, o promotor que apresentou a primeira denúncia sobre os crimes da ditadura argentina e, mais tarde, contra os cometidos pela chilena, adverte da Califórnia, onde reside, sobre os perigos do furacão Bush contra o direito internacional.
"A doutrina de Nuremberg tem, depois do 11 de Setembro, no contexto da chamada guerra contra o terror, maior vigência que nunca: os crimes internacionais são semelhantes, embora a lei interna autorize abusos como os que ocorrem em Guantánamo, na Chechênia ou em Abu Ghraib".
E os assessores de Bush e Cheney, que planejaram a tortura sob a guerra contra o terror? O advogado britânico Philippe Sands diz a El País: "A convenção contra a tortura também criminaliza as pessoas que são cúmplices. Os EUA, por outro lado, condenaram Josef Altstotter e outros advogados que colaboraram para as leis nazistas e os decretos de Hitler por sua participação em um sistema organizado de crueldade. A sentença do tribunal diz que a adaga do assassino estava oculta sob a toga dos juristas".
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